‘Sei muito bem que domingo de Carnaval não é dia para ninguém resmungar. Sucede que os resmungos de hoje são, por assim dizer, carnavalescos, de modo que, se não os resmungar agora, perco a ocasião. Não obstante, devo esclarecer que não se trata de um resmungar ocasional, tanto que, já faz três anos, desisti de ir à Marquês de Sapucaí assistir ao desfile das escolas de samba.
E olhem que eu fazia isso desde 1954, quando o desfile era na avenida Presidente Vargas, onde não havia arquibancadas de nenhum tipo, o público ficava de pé nas calçadas, de um lado e outro da avenida, e as escolas desfilavam sobre uma passarela de um metro de altura talvez.
Depois, o desfile passou para a avenida Rio Branco e, mais tarde, para a Antônio Carlos, antes de se transferir definitivamente para a Marquês de Sapucaí.
Ali, nos primeiros anos, as arquibancadas, construídas com tubos de metal e placas de madeira, eram desmontáveis, o que resultava em grandes despesas para a prefeitura. Decidiram então construir arquibancadas em caráter definitivo, cujo projeto foi encomendado ao arquiteto Oscar Niemeyer; nasceu assim a passarela do samba que se tornou conhecida pelo nome não apropriado de Sambódromo.
Naquela época -antes da passarela definitiva-, lá pelos anos 60, nosso grupo de amigos chegava à avenida por volta das 18h e só saía de lá quando terminava o desfile, muitas vezes às 13h do dia seguinte. Foi a época de ouro dos desfile das escolas de samba, que começou com as inovações introduzidas pela Salgueiro nas fantasias e nos carros alegóricos, pondo fim às figuras patéticas de condes e marqueses a sambar com chapéus de pluma empapados de suor.
As escolas cresciam de tamanho com a adesão da classe média da zona sul do Rio. Desfilando com 4.000, 5.000 figurantes, o grande risco era ‘atravessar’ o samba e perder pontos no quesito harmonia. Para resolver esse problema, juntou-se ao desfile um carro de som com alto-falantes poderosos, onde iam o ‘puxador’ do samba e dois tocadores de cavaquinho; melhorou, mas não resolveu satisfatoriamente o problema.
A solução surgiria com a construção do Sambódromo, mas a emenda saiu pior que o soneto: instalou-se uma rede de alto-falantes ao longo da passarela que agora transmite a voz do ‘puxador’ e o som dos instrumentos numa altura insuportável. Ao contrário de antigamente, quando se ouvia o samba enquanto a escola estava passando e, ao chegar ao final da sua exibição, nossos ouvidos descansavam até começar o samba da escola seguinte, agora você tem que agüentar dez ou 12 horas de cantoria repetitiva em som altíssimo, sem nenhuma trégua; verdadeira tortura para o espectador, particularmente os de certa idade, como eu…
Mas isso é o de menos. Muito piores foram as mudanças que terminaram por descaracterizar a apresentação das escolas de samba, hoje transformadas em empreendimento comercial, visando mais o lucro do que a qualidade e a autenticidade dessa manifestação cultural popular, originalmente carioca, hoje nacional.
A necessidade de limitar a duração do desfile levou à aceleração rítmica do samba de enredo, que hoje de samba tem muito pouco. Por isso mesmo costumo dizer, em tom de brincadeira, que as escolas de samba deveriam passar a se chamar ‘escolas de marcha’. Entregue a realização do desfile à Liga das Escolas de Samba, dominada por ‘bicheiros’, muitos deles ligados ao tráfico de drogas, o interesse econômico se sobrepôs a tudo, desde a escolha do enredo e do samba até as fantasias e alegorias, que já quase nada apresentam de novo, pois se tornaram meras cópias de tudo o que foi criado há duas décadas pelo menos.
Em razão de tudo isso, os preços dos ingressos, de tão altos, estão fora do alcance dos moradores dos morros e subúrbios cariocas, as comunidades que deram origens às escolas de samba e às quais elas permanecem ligadas. Os turistas estrangeiros compram, em seu país de origem, um kit que inclui, além de passagem e hospedagem, uma fantasia e o direito de desfilar numa escola de sua preferência, mesmo que não saibam dançar nem cantar samba.
Não falo dos camarotes, cujo preço para os dias do desfile equivale ao de um pequeno apartamento. Hoje, são comprados por grandes empresas que os usam para se promoverem.
Por isso mesmo o público assiste a um desfile que, a cada dia, inclui mais gente de classe média e turistas estrangeiros, uma vez que, nas grandes escolas, o preço das fantasias exclui a participação do povão. A tradicional ala das baianas só desfila porque a fantasia é paga pela escola. Como diz um amigo meu, chegará o dia em que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro terá a seguinte composição: brancos desfilando, brancos assistindo e crioulos na bateria… Estes talvez ainda ali permaneçam por algum tempo por ser necessário manter alguma coisa da autêntica escola de samba, de saudosa memória. Mas não se sabe até quando, porque o que já tem de japonês, holandês e sueco aprendendo a tocar tamborim, agogô e reco-reco não está no gibi.
Mas isso é bom, dirá o leitor mais aberto a tais mudanças, para quem estes meus resmungos de hoje não são carnavalescos, mas apenas saudosistas.’
Danuza Leão
‘‘Quem não chora não mama’’, copyright Folha de S. Paulo, 6/02/05
‘É preciso ser muito animado para estar no centro da cidade do Rio, às 10h da manhã de sábado de Carnaval, para sair no Cordão do Bola Preta. Pois duas horas antes a Cinelândia já fervia, com milhares de pessoas concentradas esperando a saída do bloco.
O público era diferente do que costuma aparecer nas revistas e na televisão. Aparentemente, nenhum dos foliões – porque esses são os verdadeiros foliões – jamais passou pela porta de uma academia de ginástica. As barriguinhas eram visíveis e ninguém estava nem aí.
A criatividade popular é infinita. As fantasias não eram nada, praticamente: uma fitinha na cabeça com o nome do bloco, uma peruca de ráfia, um homem de minissaia e batom, outros de touca de bebê e chupeta na boca, tudo simplesinho, todos com uma latinha de cerveja na mão – isso às 9h da manhã. No ar, um aroma embriagante de churrasquinho de gato.
Mas o que tem o Bola Preta para ser, há 86 anos, o bloco mais animado do Rio?
Talvez a alegria e a espontaneidade do bloco tenham a ver com a liberdade; o Bola Preta não tem patrocínio, não obriga os carnavalescos a usar a mesma camiseta, ninguém pretende se exibir para arrasar na imprensa, ninguém faz lipo nem põe silicone para o Carnaval, as músicas são aquelas antigas que todo mundo conhece, e não é preciso ter boas relações para ganhar uma credencial e ter o direito de se divertir. O Bola Preta é a verdadeira democracia.
Ao primeiro repique da bateria, a multidão espocou cerveja na avenida como se fosse champanhe, e cantou o hino do bloco: ‘Quem não chora não mama, segura meu bem, a chupeta’. Foi um delírio: além de sambar, estavam todos rindo, felizes, como se não tivessem um só problema na vida. A idade média era 60 anos – mas havia também crianças de colo – e a renda per capita não devia passar de uns R$ 800,00. As caras, os corpos não sarados, o total descompromisso com a exibição para os fotógrafos, davam a impressão de estarmos diante de um grande painel de A vida como ela é -ou como deveria ser.
O comércio informal de camisinhas faturou alto – claro; depois de um momento tão cívico – com todo o respeito – ninguém costuma voltar para casa sozinho. Porque todo mundo sabe que ‘lugar quente é na cama e no Cordão do Bola Preta’.’
Luiz Fernando Vianna e Pedro Soares
‘Rio faz hoje o desfile mais caro da história’, copyright Folha de S. Paulo, 6/2/05
‘Quando a Mocidade Independente de Padre Miguel pisar na Marquês de Sapucaí hoje, às 21h, estará começando o mais caro desfile da história das escolas de samba. Além dos R$ 2 milhões repassados a cada agremiação pela Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) – R$ 360 mil da prefeitura e o restante, de publicidade e direitos de transmissão pela TV- as escolas conseguiram, entre patrocínios e apoios, mais de R$ 15 milhões.
Só a Mangueira, financiada por empresas estatais, revela o tamanho do seu suporte financeiro: R$ 4,5 milhões dados por Petrobras e Eletrobrás. A Mocidade, patrocinada pela Tim, conseguiu cerca de R$ 1,5 milhão.
Como sua mecenas é uma empresa italiana, a Mocidade exaltará a Itália, sua cultura e sua culinária. A escola do carnavalesco Paulo Menezes tem o difícil desafio de voltar a vencer, após nove anos, sendo a primeira das 14 escolas a desfilar, fato que nunca aconteceu no Sambódromo.
Outras seis sucedem a Mocidade na avenida nesta noite. A primeira é o Império Serrano, nove vezes campeã, outrora grande, hoje apostando na tradição e na garra de seus componentes para não correr risco de rebaixamento.
‘A escola recebeu muita gente nova no ano passado [por causa da reedição do enredo ‘Aquarela Brasileira´], está se modernizando e vem com carros muito bonitos’, afirma Quitéria Chagas, 24, rainha da escola e que, sambando no chão, é um dos maiores destaques do Império.
Em seu terceiro ano como carnavalesco do Salgueiro, Renato Lage -campeão três vezes pela Mocidade na década de 90- finalmente tirou da gaveta seu projeto de fazer um enredo sobre o fogo. Em 91, ele foi campeão falando da água. Lage abordará desde a descoberta do fogo pelo homem e o mítico Prometeu -herói grego que roubou o fogo de Zeus para dar aos homens- até a ‘chama que não se apaga’, referência ao entusiasmo dos foliões.
O Salgueiro estreará a atriz Carol Castro como rainha da bateria e também terá Gisele Itiê entre suas mulheres bonitas.
No final do desfile, haverá uma homenagem aos bicheiros Waldemir Garcia, o Miro, e Waldemir Paes Garcia, Maninho, pai e filho que eram patronos da escola e morreram em 2004.
Por conta de seu patrocínio, a Mangueira terá como enredo a energia. Para driblar a aridez do tema, o carnavalesco Max Lopes tentou expandi-lo: falará dos quatro elementos essenciais da natureza (ar, água, terra e fogo), das energias ‘positiva’ e ‘negativa’ e da energia do carnaval.
A escola fará um desfile milionário e, no que depender de seu carnavalesco, inovador. Lopes diz que dividiu as alas verticalmente, cada lado vestindo uma fantasia diferente, e que adotará um estilo ‘barroco futurista’, por conta da riqueza de detalhes.
A vice-campeã Unidos da Tijuca, a grande surpresa de 2004, repetirá a fórmula de trazer alegorias humanas para a avenida, como fez no impressionante carro do DNA: o abre-alas deste ano terá 247 pessoas.
O enredo de Paulo Barros sobre lugares imaginários -que só existem na mitologia, em livros e escritos religiosos- terá Dom Quixote, de Cervantes, apresentando ao público lugares como o Sítio do Pica-Pau Amarelo.
A primeira noite se encerrará com duas escolas menores, mas que vêm impulsionadas por patrocínios: a Tradição, financiada por empresas do setor, falará da soja; a Vila Isabel, com apoio da indústria naval, apresentará ‘Singrando em Mares Bravios… Construindo o Futuro’.
Dissidência da Portela que nunca conseguiu se firmar como uma escola grande, a Tradição aposta na criatividade de seu carnavalesco Mario Borrielo, campeão em 1993 pelo Salgueiro com o enredo ‘Peguei um Ita no Norte’.
O enredo da Vila é de Joãosinho Trinta, que está internado depois de um segundo derrame e não irá à avenida. O Carnaval foi completado pelo assistente Vany e falará dos mares sob vários aspectos: a Arca de Noé, as Grandes Navegações e, é claro, a construção naval no Brasil. A falta de Joãosinho é lamentável, já que foi ele o principal carnavalesco da era milionária dos desfiles, esta que chega em 2005 a seu ápice. A ele é atribuída a frase ‘quem gosta de miséria é intelectual; pobre gosta de luxo’.
Se, em 2005, tanto luxo será sinônimo de originalidade ou mero esbanjamento, as escolas começarão a dizer hoje.’
Isabelle Moreira Lima
‘Carnaval invade a TV durante cinco dias’, copyright Folha de S. Paulo, 5/2/05
‘De hoje até quarta só vai dar Carnaval na TV. Certo? Em parte. Os canais abertos, em sua maioria, são ‘inundados’ com desfiles das escolas de samba do Rio e de SP, com a festa de rua de Salvador, com bastidores e flashes de diferentes cidades e até com filmes.
Mas, além dos canais abertos resistentes -como é o caso da TV Cultura, que preparou uma seleção de filmes antifolia-, há também a TV paga, que faz uma programação alternativa, com diferentes tipos de especiais de comportamento, música e outros temas.
Para os foliões, a Globo oferece o pacote mais completo. Além das transmissões dos desfiles do Rio e de SP até a terça, o Carnaval entra na grade diária.
A Rede TV! promete uma cobertura completa de bastidores, com os apresentadores Amaury Jr., Monique Evans, Léo Áquilla, Nelson Rubens, Ronaldo Ésper e Sabrina Sato em pontos escolhidos de Salvador, Rio e São Paulo.
A TV Bandeirantes, pelo 12º ano consecutivo, mostra 50 horas ao vivo do Carnaval de Salvador.’
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‘Transmissão hipnotiza carnavalescos da poltrona’, copyright Folha de S. Paulo, 6/2/05
‘Se as vinhetas de confetes e serpentinas que inundam os intervalos da programação de televisão no mês de fevereiro dão arrepios em um grande grupo de pessoas, elas alegram o espírito de muitas outras. Para esses foliões domésticos, o Carnaval na TV tem muitas vantagens sobre o de rua ou o do Sambódromo.
Para o laboratorista fotográfico Carlos Alberto Coutinho, 36, as maiores vantagens de passar o Carnaval no sofá são o preço, o conforto e a informação que, segundo ele, ‘só se consegue na TV’.
‘No Sambódromo, a passarela fica muito longe, e a visão é ruim. Os ingressos em locais mais baixos têm uma vista horrível. Nos outros, o preço é impraticável. É preferível ficar em casa mesmo’, diz Coutinho, que, além de assistir aos desfiles, tem seu próprio arquivo de Carnaval. ‘Gravo as transmissões desde 1990 e também procuro coisas antigas. Consegui encontrar na internet coisas dos anos 80’, conta.
Apesar de todo o amor pela festa na TV, Coutinho se queixa um pouco da forma como é feita. ‘Todos os anos as emissoras querem inventar efeitos especiais que atrapalham. Como eu tenho arquivos antigos, posso comparar. Antes era melhor, linear. Apesar de hoje explicarem o enredo, eles pecam pelo excesso. Se fosse mais simples, seria melhor.’
O estudante de ciências sociais Ricardo Valadão, 26, outro viciado nos desfiles de escolas de samba mostrados na TV, reclama dos excessos da transmissão. No entanto, reconhece o ‘esforço’ dos comentaristas, principalmente, para manter os espectadores acordados. ‘Chato é quando cortam desfile para mostrar celebridade, camarote.’
Em resposta às críticas, a TV Globo, que tem exclusividade na transmissão dos desfiles cariocas e paulistanos, diz, em nota, que ‘há 18 anos, a emissora tem alcançado ótimos índices de audiência’. ‘Nossa intenção é sempre buscar fazer a melhor transmissão, procurando agradar a totalidade de nosso público. Divergências e críticas são naturais (…), mas nosso compromisso continua sendo o de produzir o melhor espetáculo.’
Foliões, caseiros e solitários
De tão fanático por Carnaval, o jornalista Marco Antônio Falopa Guarizzo, 24, chegou a brigar com a avó há alguns anos porque ela se incomodou com o volume da televisão de madrugada. ‘Agora já está tudo bem, mas eu não passo mais o Carnaval na casa dela’, conta ele, que geralmente assiste sozinho.
Guarizzo é um militante das transmissões. Irrita-se com os irmãos que vão para festas de música eletrônica e acredita que a TV, além de ser ‘uma grande alternativa para quem não pode ir ao Sambódromo’, ajuda a manter vivas as tradições da festa. ‘O Carnaval vem perdendo espaço para raves. A transmissão segura o Carnaval de certa forma’, diz.
Entre os carnavalescos caseiros há ainda um grupo que chega a viajar, mas não larga a televisão por nada no mundo. O estudante Filipe Sousa Costa, 17, faz parte do grupo. Todos os anos ele vai para alguma praia com a família e sempre escolhe o quarto dos fundos da casa para não atrapalhar o sono de ninguém com o barulho da transmissão. ‘Todo ano sempre fico sozinho em frente à TV até dormir’, diz.
Mas, mais que os quatro dias de desfiles carioca e paulista, Costa gosta mesmo é da apuração. ‘É muito mais emocionante, eu não perco nunca’, diz o estudante.’
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‘Repórter Vesgo será porteiro no Gala Gay’, copyright Folha de S. Paulo, 6/2/05
‘As mulheres já sabem que é preciso muito cuidado -ele não só beija de supetão, como lambe. Agora, os gays, lésbicas e simpatizantes que se cuidem: Rodrigo Scarpa, 23, o Repórter Vesgo do ‘Pânico na TV’ (Rede TV!) estará na porta do Gala Gay, o mais tradicional baile de Carnaval do público GLS brasileiro, que acontece na noite de terça-feira, no Rio de Janeiro. A partir das 23h30, Vesgo e seu fiel escudeiro Silvio (Santos, interpretado por Wellington Muniz, o Ceará) recepcionarão os foliões com a apresentadora oficial do evento, Monique Evans.
Em entrevista à Folha, Scarpa fala da cobertura do baile e de sua experiência como o Repórter Vesgo, diz que o limite é o ‘bom senso’ e revela que nunca calçou as sandálias da humildade.
Folha – Vocês terão cuidado com as brincadeiras no Gala Gay para não parecerem preconceituosos?
Rodrigo Scarpa – Não, é uma brincadeira. A gente brinca com todos os tipos de classe, de pessoas. Desde os gays até as celebridades. Não tem uma característica de preconceito, não tem nada a ver. Geralmente os gays são bem-humorados, entram no espírito da brincadeira, até mais do que alguns artistas, que são arrogantes. Eu acho que vai ser muito bacana, acho que eles gostam da gente também. Eu tenho essa impressão porque a gente já foi chamado para a ‘G Magazine’, eu e o Ceará.
Folha – Vocês foram chamados para posar?
Scarpa – Já chamaram duas vezes. Tem louco para tudo. É, no mínimo, engraçado.
Folha – Qual é o limite da brincadeira com vocês?
Scarpa – O limite do bom senso. Aliás, é o que a gente sempre usa nas nossas reportagens. A gente está aprendendo também, bastante. No começo, eu achava que podia tudo. Depois, fui me policiando um pouco mais. Hoje, eu acho que estou mais bem-humorado do que crítico. Lógico que o Repórter Vesgo se caracteriza pela crítica. Mas sem agressividade, sem desrespeitar o entrevistado, respeitando o espaço do entrevistado, o bom humor dele.
Folha – Isso não vai de encontro às sandálias da humildade?
Scarpa – Não necessariamente. A gente dá as sandálias para pessoas arrogantes, que se acham a última bolacha do pacote. O Clodovil, por exemplo, não recebeu não só porque recusava as brincadeiras do ‘Pânico’, mas porque ele se acha o apresentador único, o cara que revolucionou a televisão brasileira. As pessoas são escolhidas por um fato, não porque a gente já zoou com elas.
Folha – Você já se sentiu ridículo alguma vez? Já ficou constrangido?
Scarpa – Não, acho que não. Vergonha o Rodrigo sempre tem de fazer as coisas. Eu tive muita vergonha do lance da Roberta Miranda. Eu me senti muito constrangido ali. Era uma das minhas primeiras reportagens. Eu fui dar um selinho e ela veio com tudo. Me deixou muito sem graça.
Folha – Ela já sabia que você era o Repórter Vesgo?
Scarpa – Ela nem sabia, era a segunda matéria que eu fazia. Ninguém me conhecia. Foi a primeira vez que eu saí no jornal, por causa da Roberta Miranda. Estava todo mundo lá, e ninguém entendeu nada. Todo mundo viu o beijo e começou a tirar foto.
Folha – Já ficou com pena de alguém?
Scarpa – Já fiquei com pena da Mariana Kupfer. Hoje, eu me policio mais. Não quero que o Vesgo seja um vilão. Quero que seja um entrevistador brincalhão. Crítica, a gente sempre vai fazer. A gente já tá pensando em coisas de notícia, coisas de vilões que apareceram, tipo Sérgio Naya, várias pessoas. Criminosos que não foram punidos, a gente está pensando em fazer alguma coisa com isso. O Vesgo se ampliou bastante, não está limitado só a celebridades hoje.
Folha – Você teve alguma inspiração para criar o Vesgo?
Scarpa – O Vesgo surgiu do nada. Foi surgindo porque ninguém queria ir ao ‘Pânico’ no começo, ninguém sabia como era o programa. Tinha a briga Faustão e Gugu, esses rolos de gravação, e, como o artista não podia ir, a gente foi até o artista. Comecei a ir às festas e a gente começou a brincar, a zoar, e acabou surgindo.
Folha – Qual é o número e a marca das sandálias da humildade?
Scarpa – Nem marca têm. As sandálias da humildade são sandálias simples, que a gente pegou no meio de um saco de fantasias. Segundo informações, elas eram da [escola de samba paulistana] Rosas de Ouro, de uma fantasia. Eu nem sei o número.
Folha – Você nunca calçou?
Scarpa – Eu nunca calcei, mas no dia em que alguém pedir, eu calço. Acho que cabe em mim.
Folha – Eu queria que você fizesse um ranking das cinco pessoas que mais merecem as sandálias.
Scarpa – Cinco? É difícil…
Folha – Então faça o ranking de quem já recebeu oferta. Três lugares em escala de humildade.
Scarpa – O Clodovil precisa calçar urgentemente. Tem o Maradona, agora que a gente tá atrás dele. E, em terceiro lugar, a Luiza Tomé, que ainda não calçou. É difícil julgar as pessoas sem que elas tenham feito nada.’
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‘Desfiles pela TV irritam antifoliões’, copyright Folha de S. Paulo, 6/2/05
‘‘O luxo do Carnaval é muito bacana, a melhor coisa. O problema é a transmissão. É muito chata, cansativa, interminável’, afirma o estudante de moda Douglas Garcia Oler, 22. Oler integra o grupo de pessoas que detestam passar o Carnaval assistindo aos desfiles de escolas de samba em frente à televisão.
O estudante faz parte da ala mais radical desse grupo: os que, além de não gostarem das transmissões, não gostam da festa em si. Para este ano, programou uma viagem com a família para uma serra ‘bem longe das farras’, para fazer trilhas.
Mas, apesar da ojeriza, Oler conta que já passou os quatro dias da festa em frente a uma TV. A saída? ‘Aluguei um monte de vídeos. Mas, mesmo assim, não teve jeito. Fatalmente eles acabaram, e eu liguei a TV’, conta. Sobre a experiência, que espera jamais repetir, Oler afirma que não foi contagiado pela magia da festa. ‘Os desfiles, apesar de terem arte e cultura, não conseguiram me envolver, ou porque eu não estava no clima ou porque a TV não transmite o que é o Carnaval de verdade’, diz. ‘Acho que, às vezes, os carnavalescos até têm boas idéias, mas não conseguem colocar em prática. Fica tudo muito sem graça. Um festival de exposição e nudez.’
A relações públicas Gabrielle Calado Souza Bennet, 27, também faz parte desse grupo. Faz tanto tempo que não assiste ao Carnaval na televisão, que nem se lembra da última vez que viu os desfiles das escolas de samba do sofá.
Bennet não costuma pular o Carnaval. Geralmente, viaja para uma fazenda, ‘sempre para descansar’. Neste ano, no entanto, ela corre o risco de se render às transmissões dos desfiles. ‘Vou usar a TV a cabo para fugir, mas há o risco de o meu namorado querer ver algum desfile’, conta.
Membro do grupo menos xiita dos que não vêem TV no período carnavalesco, a engenheira Ignez Alencar, 26, até gosta das festas. Há mais de dez anos, ela viaja para praias do Nordeste para aproveitar o Carnaval de rua. Mas nem sempre foi assim. ‘Acho que fiquei traumatizada. Quando tinha 12 anos, assisti aos desfiles procurando a Xuxa. Passei horas em frente à televisão, não a encontrei e dormi frustrada’, conta.
Para ela, que se considera ‘uma foliã de verdade’, a transmissão do Carnaval de Salvador é a mais chata de todas. ‘Eu fico com vontade de ir para lá. Não faz sentido ver aquilo de longe.’ Apesar de frisar o quanto detesta as transmissões e de nunca ter ido a um sambódromo, Alencar diz que tem escola ‘do peito’ -a Mangueira, no Rio- e que gosta de acompanhar a apuração do resultado na Quarta-Feira de Cinzas.
Direto de Salvador, a publicitária Roberta Gomes, 25, diz que só deve assistir aos desfiles se o namorado ligar a TV. ‘No Carnaval eu esqueço que ela existe e só assisto se não tiver nada melhor para fazer.’ E, segundo ela, até ‘lavar roupa é melhor’ que assistir ao Carnaval pela televisão.’
O Globo
‘Verba dos desfiles vira assunto na CNN e no ‘NYT’’, copyright O Globo, 6/2/05
‘Reportagens publicadas ontem em sites de dois grandes órgãos de imprensa dos Estados Unidos — a rede de televisão CNN e o jornal ‘The New York Times’ — discutem os patrocinadores do carnaval carioca. O jornal mostrou o apoio de grandes companhias multinacionais a algumas escolas de samba do Rio e de São Paulo. Já a CNN reproduziu reportagem da agência Associated Press (AP) sobre o dinheiro ilícito do jogo do bicho, que tradicionalmente financiaria os desfiles mais luxuosos ocorridos na Marquês de Sapucaí.
A reportagem da AP chega a comparar o Rio a Las Vegas, meca americana do jogo e do luxo frívolo. ‘O carnaval brasileiro parece ser o tipo de diversão que precisa ser ilegal para funcionar — e de certa maneira o é’, afirma o texto. A reportagem diz que a tradição da folia carioca está fundada no ‘jogo de números ilegal chamado ‘jogo do bicho’ e afirma que as relações entre os contraventores e as escolas de samba está mais aberta do que nunca este ano.
‘Uma grande escola de samba, Salgueiro, vai homenagear dois proeminentes bicheiros’, diz, referindo-se a Miro e Maninho, pai e filho, patronos da escola, mortos ano passado.
‘Todo mundo sabe que os bicheiros financiam o carnaval, é a forma que eles encontram para ter legitimidade na sociedade’, disse o antropólogo e colunista do GLOBO Roberto DaMatta, citado pela reportagem da AP.
A agência de notícia Reuters noticiou que o carnaval carioca vai pôr na ‘avenida uma mesa farta, patrocinada por multinacionais ligadas ou não ao setor de alimentação’. São citados os enredos da Mocidade, da Grande Rio e do Salgueiro.’
Antônio Gois
"Para antropóloga, Carnaval do Rio passa por momento crítico", copyright Folha de S. Paulo, 7/02/05
"O Carnaval brasileiro é uma festa democrática, mas um de seus mais visíveis espetáculos -o desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro- corre o risco de ser desfigurado pelo poder do tráfico de drogas.
O alerta é da antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, 50, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e autora de dois livros sobre o Carnaval carioca. Ela estudou e acompanhou de perto os bastidores dos desfiles de escolas de samba na década de 90, auge da visibilidade do mecenato dos banqueiros de jogo do bicho na festa.
‘(O Carnaval) passa por um momento crítico, importante de ser acompanhado. E não é só o Carnaval. É um drama do Rio de Janeiro. Está aumentando terrivelmente a presença do tráfico nas comunidades, e as escolas expressam isso. O samba não consegue ficar de fora dessa influência’, diz a antropóloga.
Ela cita como exemplo recente dessa influência o assassinato do presidente da bateria da Mangueira, Robson Roque, que pode ter sido morto por traficantes do morro da Mangueira que, de acordo com uma das linhas de apuração do crime, não teriam ficado satisfeitos com a escolha da rainha da bateria.
Para ela, há uma diferença muito grande entre a influência do jogo do bicho e do tráfico no Carnaval. ‘O bicheiro quer aparecer e se integrar à sociedade. Para isso, é importante que a escola dele ganhe. Já o tráfico não pode aparecer. Sua interferência é mais imediatista e seu código, muito mais bárbaro’, explica.
Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha:
Folha – A tese de que, no Carnaval, a sociedade brasileira é, em certo sentido, mais democrática e inclusiva continua atual?
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti – Acho que sim. No Carnaval, a sociedade brasileira é realmente mais democrática porque cabem todos na festa. Cabe o certo e o errado, a mulher bonita e a feia, o homem magro e o barrigudo. No Carnaval, a sociedade se abre para todos. O [antropólogo] Roberto DaMatta estudou muito isso.
Embora a sociedade brasileira tenha se democratizado muito nos últimos 20 anos, ela ainda é hierarquizada e valoriza as relações pessoais. Este período de folia, no entanto, é excepcional, um momento que rompe com as regras estabelecidas na vida ordinária, onde o que não é permitido passa a ser permitido, onde o que não costuma aparecer aparece.
Os pobres, por exemplo, ganham visibilidade na cena social. A escola de subúrbio aparece nas primeiras páginas dos jornais de elite de maneira extremamente positiva, como um lugar de gente profundamente trabalhadora e disciplinada.
Folha – A senhora acha que até mesmo os desfiles de escolas de samba do grupo especial do Rio sempre foram democráticos?
Cavalcanti – Acho que o desfile é democrático no sentido de que todos ali se reúnem para disputar a partir de regras consensualmente estabelecidas quem é melhor. Essa é uma das graças do desfile. Você pode ter assistido a todos os desfiles e acompanhado de perto o trabalho no barracão, mas nunca sabe quem vai ganhar antes da apuração. Esse aspecto da disputa democrática sempre esteve presente desde que as escolas de samba surgiram no cenário carnavalesco, no final da década de 20 e início da de 30. Nessa disputa, é valorizado o trabalho e o talento. É um espaço igualitário nesse sentido, onde vence o melhor.
Folha – Ou seja, o Carnaval valoriza tudo aquilo que a sociedade brasileira parece deixar em segundo plano?
Cavalcanti – De certa forma sim. É o lugar onde não há problema em assumir a vaidade, em que o sucesso é uma coisa boa, onde se exibe talento.
Folha – Apesar desse caráter democrático que a senhora apontou, a festa não está ficando mais elitista a partir do momento em que cobra ingressos caríssimos para um desfile no Rio ou para vestir um abadá na Bahia?
Cavalcanti – Depende do que a gente está chamando de democrático. Eu coloquei a ênfase no democrático por ser [no caso dos desfiles de escolas de samba] uma competição regida por valores claramente estabelecidos, compartilhados e onde vale a disputa entre todos. Além disso, é preciso lembrar que o Carnaval tem muitas formas. De um ponto de vista amplo, ele é profundamente inclusivo, pois basta vestir uma fantasia e ir para a rua para brincar. É interessante notar esse processo de ressurgimento dos blocos de rua do Rio.
Por outro lado, é verdade que houve um processo de comercialização dos desfiles das escolas do grupo especial do Rio e quem tem mais dinheiro garante o melhor lugar. É uma pena que o ingresso para esse grupo seja tão caro. A concepção original do [arquiteto Oscar] Niemeyer era que o lugar onde ficam as frisas fosse uma espécie de geral para a população ocupar aquele lugar.
O que ocorreu foi sem dúvida uma elitização do ponto de vista do público pagante, mas não é necessariamente uma elitização dos personagens que dão vida a uma escola de samba. As camadas populares que trabalham nessas escolas precisam de dinheiro. Hoje muitas pessoas vivem de Carnaval. Dizer que a cobrança de ingressos caros não é democrática tem esse lado um pouco cruel. É como se você dissesse que o povo não precisa de dinheiro, que deve ficar fazendo samba de raiz para a gente achar bonito e não ganhar nada com isso.
Folha – Desde quando começou esse processo de comercialização mais profissional do Carnaval?
Cavalcanti – Um marco extraordinário desse processo foi o ano de 1984, quando foi criada a Liga Independente das Escolas de Samba e construído o sambódromo. Foi naquele ano em que, pela primeira vez, o desfile virou rentável.
Folha – Foi nesse período que os bicheiros entraram no Carnaval?
Cavalcanti – Os bicheiros sempre estiveram no meio popular, desde o fim do século 19. No processo de formação das escolas, na década de 20, eles se misturavam a outros tipos de comerciante que ajudavam as escolas assinando o ‘livro de ouro’. A Portela, por exemplo, já nasce sob a égide de um bicheiro, o Natal da Portela. Com a clandestinidade do jogo nos anos 40, cresce a importância das escolas para os bicheiros, porque elas começam a servir de elemento de mediação da aceitação deles na sociedade.
Nesse processo de atuar como mecenas das escolas, eles ganham enorme aceitação e legitimidade social. Ganham relações, ganham contatos, e isso é uma moeda que vale ouro. Todo ano, por exemplo, eles dialogam oficialmente com o prefeito da cidade por meio da liga das escolas de samba. É uma estratégia extremamente arguta que, a partir de 1984, parece ser mais consciente.
Folha – Mas houve um auge dessa presença dos bicheiros no Carnaval, não houve?
Cavalcanti – Eu fiz minha pesquisa sobre Carnaval no início da década de 90 e acompanhei de perto durante o ano todo a Mocidade Independente de Padre Miguel. Eu vi o Castor de Andrade [patrono da escola que morreu em 1997] ser preso num ano e ovacionado pelo público na passarela no ano seguinte.
Hoje, essa presença dos mecenas do bicho nas escolas está mais discreta, mas ela continua acontecendo em muitas escolas. Vale lembrar que, nos anos em que a cúpula do jogo do bicho ficou na cadeia na década de 90, o padrão de vitória das escolas não se modificou, ou seja, continuou ganhando quem tinha um patrono forte. Ainda hoje, no entanto, os bicheiros são autoridades oficialmente reconhecidas e têm a liga como associação. E é uma liga extremamente profissionalizada.
É bom lembrar que eles são comerciantes e têm que saber organizar muito bem o espetáculo. Eles foram tão organizados que tiraram a prefeitura de toda a dimensão artística e cultural da festa. Esse é um paradoxo interessante, possível apenas no Carnaval: os bicheiros modernizaram o Carnaval sob uma égide extremamente conservadora, que é a da patronagem.
Folha – Não há hoje o risco de o tráfico de drogas ocupar o lugar do bicho?
Cavalcanti – Em algumas escolas, isso já está acontecendo. É só ver o que aconteceu com o presidente da bateria da Mangueira. O Carnaval carioca passa por um momento crítico, que precisa ser acompanhado. E não é só nas escolas, esse é um drama do Rio de Janeiro. A presença do tráfico nas comunidades está aumentando terrivelmente e as escolas de samba acabam expressando isso, não há como elas ficarem de fora desse processo.
Eu não estou dizendo que a presença dos bicheiros seja boa, mas ela é inegavelmente melhor do que a do tráfico. O mecenas do bicho quer aparecer e se integrar na sociedade. Ele quer que a escola dele seja campeã. Quando há uma liderança forte na escola, ela pode dar total liberdade para o carnavalesco e não deixa que a escolha do samba, por exemplo, seja influenciada por outros fatores que não a escolha do melhor.
O traficante, no entanto, não pode aparecer. Sua presença é sempre mais obscura e o interesse é mais imediatista. São códigos de conduta bastante diferentes. O tráfico é muito mais bárbaro. O bicheiro também é violento, mas permite alguma troca positiva. Não estou dizendo que isso é bom, mas que é assim que funciona.
Folha – Há espaço no Carnaval para uma escola ser viável sem presença de bicheiros ou traficantes?
Cavalcanti – Há exemplos de escolas que não têm tráfico ou bicho, como a Unidos da Tijuca e a União da Ilha. Além disso, há esse fenômeno do merchandising que se ensaia de uns cinco Carnavais para cá. Isso coloca um desafio para as escolas porque, mesmo com patrocínio, o enredo precisa ser bom. As escolas caminham hoje em direções mais diversificadas e dependem menos do dinheiro do patrono. O patrocínio e o patrono podem até se complementar, mas algumas escolas podem também trilhar um caminho alternativo sem depender mais do bicheiro."
Claudia Bojunga "CNN diz que desfile de escolas do Rio é ilegal", copyright JB Online (www.jb.com.br), 6/02/05
A reportagem comenta que é conhecido dos cariocas o caráter contraventor de uma das mais importantes festas brasileiras e diz que o fato estaria patente, por exemplo, pela homenagem do Salgueiro aos bicheiros Miro e Maninho, no enredo deste ano. Imagens de pai e filho, que morreram no ano passado e eram patronos da escola, foram mostradas ontem em um carro alegórico.
O Secretário municipal de Turismo do Rio de Janeiro, Rubem Medina, em delaração ao JB , rebateu às críticas de forma veemente.
– Esse é um problema que não cabe à CNN, eles devem estar com raiva porque não têm competência para fazer uma coisa parecida. – afirmou Rubem Medina.
O secretário explicou que o financiamento das escolas de samba vem da arrecadação dos ingressos do Sambódromo, da receita das propagandas e da Prefeitura do Rio.
Além disso, algumas agremiações são patrocinadas por empresas. A Grande Rio, por exemplo, recebeu R$ 2,5 milhões da Nestlé, e a Mangueira ganhou apoio da Petrobrás com o enredo ‘Mangueira energiza a avenida. Carnaval é pura energia e a energia é nosso desafio’.
A novela Senhora do Destino também é citada por exibir a ligação entre o jogo do bicho e as escolas de samba, por meio do personagem de José Wilker, o Giovanni Improtta.
‘Um bicheiro patrono de uma escola que não deixa ninguém chocado por aqui’.
O texto traz também uma explicação do antrolólogo Roberto da Matta sobre a relação ilícita: ‘Todo mundo sabe que os bicheiros sempre financiaram o carnaval. É a forma deles conseguirem uma legitimidade na sociedade.’
A CNN relata que na última década cerca 100 mortes podem ser ligadas ao jogo do bicho. E diz que Maninho teria sido provavelmente executado.
Sobre o assunto, a Associated Press ouviu o prefeito César Maia, que defendeu o carnaval da cidade:
– O financiamento das Escolas de Samba, hoje em dia, é completamente independente do jogo do bicho – afirma o prefeito, na matéria.
A crítica se mantém quando a reportagem fala do caso do governo da Dinamarca que deu US$ 189 mil dólares à Imperatriz Leopoldinense, que tem como enredo o bicentenário do escritor dinamarquês Hans Christien Andersen. O governo da Dinamarca retirou o apoio oficial ao saber, por meio de um jornal local, que o bicheiro Luiz Pacheco Drummond, presidente honorário da Imperatriz, tem ligações com o crime organizado e ficou seis anos na cadeia.
‘Mas como já era tarde para pedir o dinheiro de volta o príncipe Frederik e a princesa Mary, da Dinamarca, cancelaram a vinda ao Rio.’
– Quer proibir, pode proibir. A gente não faz mais e acaba – disse Anísio Abraão David, presidente de honra da Beija-Flor."
SAMBA EM LIVROS
‘Os excluídos da comissão de frente’, copyright O Estado de S. Paulo, 6/2/05
‘Em novo livro, o pesquisador Felipe Ferreira acerta o passo ao mostrar como o carnaval deixou de ser uma festa com formato específico, tornando-se junção de tradições, influências e ritmos populares, mas da qual o povo foi alijado.
Quando buscamos saber sobre as origens e dos significados do carnaval brasileiro, experimentamos a mesma sensação confusa de Sinhô, que, questionado a respeito da questão autoral dos sambas, filosofou: ‘Samba é igual passarinho, é de quem pegar primeiro.’ Porque não são apenas os historiadores, sociólogos, antropólogos, musicólogos que multiplicam suas pesquisas e interpretações, mas também os milhares de atores da própria festa carnavalesca. Como o futebol, ninguém passa por perto sem dar seu palpite inteligente. Quem já não ouviu um samba que conta a história completa do carnaval, da Festa de Ísis aos bailes mascarados de Veneza, terminando, obviamente, com a referência final à sua própria escola? Atento tanto aos intérpretes quanto aos atores, Felipe Ferreira realiza, em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, uma das mais completas sínteses de um tema sobre o qual, a cada ano que passa, se acrescenta mais confusão.
Começando pelas celebrações dos povos antigos, como babilônicos ou egípcios e chegando às home pages das escolas de samba, o autor leva a vantagem de, logo de saída, definir o carnaval brasileiro como ‘um produto de diversos discursos que, ao longo dos últimos 150 anos, vem sendo lentamente elaborado através de variadas disputas de poder’. Mas, logo depois – felizmente – passa longe de definições abstratas: tem muitas fotografias e caricaturas, receita de limão-de-cheiro (um projétil de água colorida que os foliões lançavam na época do ‘entrudo’), histórias curiosas de fantasias e adereços, explicação de como surgiram as alas das escolas carnavalescas, cronologia marcando o ano da introdução do confete, do primeiro desfile do Rei Momo, etc.
Mas quem espera por uma história evolutiva do carnaval brasileiro, vai se decepcionar. Porque como toda história de manifestações populares, ela está mais para uma narrativa do tipo ‘samba do crioulo doido’, do que para enredos bem-comportados e arrumadinhos. É uma história de infinitas fusões, trocas, apropriações, empréstimos, influências, reciclagens – na qual, a única definição verdadeira e consensual é que o carnaval é uma festa de calendário, e uma festa do calendário católico. No rigor do calendário, os dias de fartura e excessos, primitivamente designados como de ‘carnevale’ (adeus à carne) precediam os de penúria e orações: a Quaresma – instituída pelo papa Gregório I em 604 e inspirada nos sofridos dias de jejum de Cristo no deserto, antes da pregação apostólica. Assim, a terça-feira carnavalesca só varia conforme a data da Páscoa, que ocorre sempre no domingo seguinte à primeira lua cheia após o equinócio de março.
Fora dessas certezas, o carnaval é um grande palco onde, no decorrer de uma longa história, aconteceu de tudo. Entraram e saíram os mais diversos atores e brincadeiras, algumas transformadas em verdadeiras batalhas entre classes: o primitivo entrudo e os zés-pereiras; as festas de congos, cucumbis, frevos e maracatus; os bailes de fantasias e os corsos; as sociedades carnavalescas e os cordões, ranchos e blocos – enfim, cada uma dessas modalidades lúdicas cruzando sua própria história com as demais e resultando no carnaval brasileiro, espécie de bolo saboroso do qual é difícil perceber a receita original. Como se costuma dizer, não há essências atrás das aparências. A figura do malandro, tida como originalidade típica do carnaval brasileiro? Não totalmente, pois inspirada nos zooties norte-americanos e mundialmente popularizada pelo cantor Cab Calloway nos anos 40. Fantasia de índio sempre foi a mais comum – até porque era a mais barata. Popularizou-se tanto que, em 1909, a polícia carioca proibiu o uso de ‘fantasias de índio’ no carnaval, alegando que os adereços escondiam armas e recomendando apenas ‘corsos elegantes com pierrôs e colombinas’. Mas a fantasia de índio foi uma invenção européia, pouco relacionada com o habitante original do Brasil. Até a idéia de que o carnaval é uma festa de marketing, atraindo turistas, deixou de ser nova, como se percebe pelo revelador discurso de Berilo Neves, diretor de festejos no carnaval carioca, no longínquo ano de 1932.
Já o carnaval como sinônimo do peculiar arranjo social brasileiro e da singular vitória da miscigenação da raça – que fez, do Brasil, um exemplar único de carisma multicultural para o mundo – foi tese abraçada por diversos estudiosos. Mas, como não perceber a mesma tese por trás dos versos da marchinha Grau Dez, de Lamartine e Ary Barroso, sucesso do carnaval de 1935? Nela, todos os povos se colocam aos pés da mulata, transmutada em grande ícone nacional: ‘O inglês diz yes, my baby/ O alemão diz Yá, corração/ o francês diz bonjour, mon amour/Très bien, très bien, très bien/ o argentino, ao te ver tão bonita/Toca um tango e só diz: milonguita/ o chinês… diz que diz, mas não diz/Pede bis, pede bis, pede bis.’
Ainda hoje, quando vemos o carnaval pela TV, não conseguimos aquele mínimo efeito de distanciamento, essencial para, ao menos, ensaiarmos a organização da nossa desordem interpretativa. Nesse ponto, o livro também acerta o passo, por mostrar, com grande número de detalhes, quanto o carnaval deixou de ser uma festa com formato específico, transformando-se numa junção desordenada de diversas festas, tradições, comportamentos, performances, costumes e ritmos populares. Tanto melhor. Mas, concluir daí que o carnaval seria a síntese do Brasil é voltar ao mar-sem-fundo ou ao famoso dilema de Sinhô – que, no fundo, queria dizer que o samba, tanto quanto o carnaval, sofre de excessos de palpites, ou da doença da superinterpretação. De qualquer forma, parece curioso o destino de um país que fundamenta sua síntese cultural num momento efêmero, mas intenso, forte, embalado na comunhão do ritmo que impera soberano, diluindo o contraste das histórias, a divergência de significados e aplainando as diferenças sociais. Não foi por acaso que Roger Bastide viu nas vibrações dos bumbos carnavalescos uma variação do êxtase religioso. É o ‘Bum bum Paticumbum Prugurundum’ que assinala a vitória cabal do ritmo sobre o enredo. Esquecemos de tudo aquilo que nos oprime – até o fato de estarmos um tanto desafinados, excluídos da comissão de frente, fora do enredo. Não propriamente do samba-enredo, mas daquele outro enredo principal, a narrativa maior da história do País.
Elias Thomé Saliba é historiador, autor de Raízes do Riso’
Paulo Thiago de Mello
‘Batuque nas estantes’, copyright O Globo, 6/2/05
‘Desde que o samba é samba é assim: um dos fenômenos culturais mais reconhecidos como expressão de nossa identidade frente aos outros e a nós mesmos. No entanto, contraditoriamente, essa forma criativa de ser e estar no mundo foi durante muito tempo marginalizada pela elite e uma certa classe média identificadas com outros valores. Apropriado em parte pela indústria cultural, o samba e o carnaval foram transformados em mercadoria exótica, mas seu universo, para além desses usos, permaneceu vivo, embora longe da mídia.
Entretanto, nos últimos anos, à medida que a globalização se aprofundou, curiosamente a busca por raízes locais passou a ser uma questão de sobrevivência existencial e, com isso, o mundo do samba recuperou para boa parte da sociedade que o rejeitava um sentido que ficara guardado nos guetos: o de uma tradição que deve ser cuidada e protegida, pois de sua saúde depende também nossa existência como povo autônomo, com sua inscrição particular no universo.
Das ruas, dos terreiros e dos quintais para as bibliotecas
Os sinais dessa, digamos, reapropriação da própria identidade aparece em várias instâncias, mas sobretudo na presença cada vez maior da classe média nas rodas de samba de raiz (de raiz, sim, porque o pagode comercial já não serve), lotando quadras, terreiros, quintais, botequins, gafieiras e cursos de dança de salão, num movimento responsável, entre outras coisas, pelo renascimento da Lapa como bairro boêmio e do carnaval de rua, através dos blocos e cordões. O samba e seus elementos também estão saindo do quintal e da cozinha da sociedade e invadindo os salões ou, mais precisamente, as bibliotecas com livros dedicados ao tema.
Só neste verão, o leitor tem a seu dispor oito novas publicações sobre o assunto. São livros para todos os gostos, variando de relatos jornalísticos a ensaios acadêmicos e antologias. Três deles — ‘Livro de ouro do carnaval do carnaval brasileiro’, de Felipe Ferreira; ‘No princípio, era a roda: Um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes’, de Roberto Moura; e ‘A velha guarda da Portela’, de João Baptista Vargens e Carlos Monte estão sendo lançados agora, no carnaval.’