Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Flávio Pinheiro

‘Em 1965, Gay Talese publicou na revista Esquire ‘Frank Sinatra está resfriado’, um perfil fluvial que mais tarde ocupou 55 páginas de livro, produto de mais de 100 entrevistas – entre elas uma com a senhora que levava numa mochila para cima e para baixo as 60 perucas do cantor. Estávamos no império do lead. Lead é a palavra inglesa que define o primeiro parágrafo de uma reportagem. Devia responder às seguintes perguntas: o que, onde, quando, por que e como. Melhor que respondesse a todas elas em exíguas cinco linhas. Sem ponto.

O lead era o triunfo da objetividade sobre a pastosa consistência do ‘nariz de cera’, imensas camadas de coisa nenhuma recheadas de palpitações gongóricas onde a leitura patinava até se chegar ao que realmente importava. O lead produziu objetividade, é verdade, mas também suas seqüelas. A burrice e a falsa impressão de imparcialidade, pragas duradouras, foram as piores. Em algumas Faculdades de Comunicação flagelava-se a rapaziada com um semestre inteiro de aulas só sobre lead.

É difícil imaginar quem publicaria no Brasil em 1965 uma reportagem que começasse assim:

Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele. Mas ele não dizia nada; passara boa parte da noite calado’.

Sinatra estava resfriado, não custa repetir. Rouco, de saco cheio, intratável. Não falou nem com Talese. A reportagem está na antologia das melhores da história. Virou raridade bibliográfica no Brasil, onde foi publicada pela primeira vez em 1973 no livro ‘Aos Olhos da Multidão’, editado pela carioca Expressão e Cultura e reeditado só agora. Fazia parte do livro Fame and Obscurity, coletânea de reportagens de Talese, republicado agora com tradução literal ‘Fama & Anonimato’. Nada contra, mas o título original soava melhor. Assim como ‘Bando Selvagem’, tradução mais literal do filme Wild Bunch, empobreceria o português heróico de ‘Meu Ódio Será Tua Herança’.

Gerações de jornalistas, aprisionados no lead e em outros grilhões do pesado cenário político, sorviam sofregamente o livro. Passavam-no de mão em mão. As gerações seguintes xerocavam páginas sebentas de exemplares raros e progressivamente despedaçados.

A nova edição traz dois brindes. Fez parte do naco de anonimato da primeira edição a reportagem sobre a construção da ponte Verrazano-Narrows, que ligava o Brooklin a Staten Island, distritos de Nova York, no início dos anos 60. Talese a acompanhou passo a passo, ‘rebite a rebite’, como diz Humberto Werneck no esplêndido posfácio da atual edição. Seus heróis são todos anônimos. Em dezembro de 2002 a revista New Yorker publicou uma reportagem de Talese revisitando locais que descreveu e sobreviventes que entrevistou.

O outro bônus é ‘Como não entrevistar Frank Sinatra’, uma exemplar reflexão sobre o que foi fazer ‘Frank Sinatra está resfriado’. Nela Talese côa no tempo as lições do perfil e investe contra novas algemas do jornalismo. A devoção ao gravador, por exemplo, que ele abomina porque transforma a arte de escrever em ‘mera transcrição, para o papel, de entrevistas radiofônicas’. E a disseminação de um certo jornalismo de gabinete, que prescinde do olhar, que ‘não suja os sapatos’, para ficar no exemplo de Ricardo Kotscho, citado por Werneck.

A primeira e perene lição de ‘Frank Sinatra…’ é a de que é possível escrever um bom perfil sem entrevistar o perfilado, mas entrevistando todo mundo que está à sua volta e observando-o com uma atenção que não se esgota nos gestos, mas nas intenções deles. Talese tentou de tudo para falar com Sinatra e não desistiu até a última hora. Mas achou que já tinha informação suficiente para escrever depois de cinco semanas em Los Angeles. E tinha.

A liberdade quase literária colore descrições e permite que o fio condutor de páginas e mais páginas seja um resfriado. ‘Sinatra estava doente. Padecia de uma doença tão comum que a maioria das pessoas a considera banal. Mas quando acontece com Sinatra, ela o mergulha num estado de angústia, de profunda depressão, pânico e até fúria. Frank Sinatra está resfriado.’ E ‘Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível’.

O perfil sem o perfilado é visto com desconfiança até com boas razões. Serviu a perfídias e a prerrogativas nada escrupulosas de jornalistas, para além dos frouxos limites do espírito crítico. Mas a recusa ao perfil sem o perfilado empalideceu jornais e revistas mundo afora. É uma patrulha da opinião e sem opinião não se faz bom jornalismo. Talese coloca-se diante de Sinatra:

‘(Sinatra) tem a liberdade de um homem solteiro, não se sente velho, faz com que homens velhos se sintam jovens, faz com que pensem que, se Sinatra é capaz de fazer alguma coisa, ela pode ser feita; não que eles mesmos sejam capazes de fazê-la, mas agrada-lhes saber que, aos cinqüenta anos, essa coisa ainda é possível’.

Quase tudo em ‘Fama & Anonimato’ é muito bom. Sinatra resplandece. Mas sobra brilho em ‘O Perdedor’, perfil de Floyd Patterson, boxeador, campeão na categoria dos pesos-pesados, que acabara de ir à lona demolido por Sonny Liston, que por sua vez mais tarde desmoronaria diante de Mohamed Ali (então Cassius Clay). Talese começou a vida como jornalista de esportes. Escreveu ao todo 36 artigos e reportagens sobre Patterson. Certamente por isso o conhece muito bem e devassou sua intimidade sem deixar um único ponto de sombra.

A descrição de Patterson do nocaute é uma preciosidade, pela ausência de cautelas, de vergonha. ‘Na verdade é uma sensação boa. Você não sente dor, só se sente fortemente inebriado. Você não vê anjos nem estrelas; você se sente numa névoa agradável. Depois que Liston me acertou em Nevada, senti, por uns quatro ou cinco segundos, que todos no estádio estavam junto comigo no ringue, rodeavam-me como uma família’.

Aqui, de novo, o jornalismo de Talese não envelheceu. Na sociedade do espetáculo o senso comum privilegia vencedores, espana da vitrine os perdedores. Mais: não há um escasso jargão do esportês. Apesar de muitos progressos ainda existem altos teores de economês, politiquês e, por que não, esportês no defendido jornalismo especializado.

Talese sabe que não é só por conspirações malignas que o jornalismo que praticou foi expelido de jornais e revistas. Custa caro deixar um repórter perseguindo um único personagem ou assunto por semanas, às vezes meses. Além disso as bênçãos do talento não se espalham uniformemente. Quem não sabe fazer o chamado ‘jornalismo literário’ confunde a liberdade do gênero com desbragada cascata – invencionice vestida de belas palavras. Jayson Blair, o mentiroso do The New York Times, é o paradigma contemporâneo da cascata.

Ele ensina que não haveria New Journalism sem princípios elementares do velho jornalismo como ‘incansável trabalho de campo e fidelidade à verdade e precisão dos fatos’. Poderia acrescentar um atributo sempre revigorante para empreitadas de apuração – o papel de fiscalização dos poderes, do poder político, do poder econômico, de todo o tipo de poder.

A precisão dos fatos em Talese era às vezes obsedante como quando ele cita os 34 quilômetros de fio dental desenrolados a cada dia na Nova York dos anos 60. O prazer da curiosa minudência gerou dois cacoetes: o enciclopedismo do corriqueiro, que irradiou-se como metástase, e o feitiço do número, a idéia de que só tem precisão o que se pode expressar com números, o que transforma miséria e violência (para citar apenas dois exemplos) em banalidades opacas.

Lido quarenta anos depois, Talese ainda ensina muita coisa. Que o repertório vocabular do jornalismo não precisa ficar confinado a 500 palavras. Mas isso, a bem da verdade, já não é mais assim. O maior dos ensinamentos talvez seja o do insubstituível testemunho de quem reporta um fato ou define uma pessoa. Seu jornalismo é o do grau zero do oficialismo. Explicando melhor: os fatos podem dispensar a chancela de autoridades (do político, do ministro, dos médicos, dos bombeiros, da polícia). Existem porque existem. Basta flagrá-los.

‘Fama & Anonimato’, de Gay Talese. Tradução de Luciano Vieira Machado. Posfácio de Humberto Werneck. Editora Companhia das Letras; 536 páginas; R$ 52,00.’



Paula Barcellos

‘‘Nossos jornalistas comem nas mãos da Casa Branca’’, copyright Jornal do Brasil, 24/04/04

‘Por incrível que pareça, o homem que, no final da década de 50, ao lado de Tom Wolfe e Norman Mailer, revolucionou o jornalismo, hoje, em pleno século 21, é totalmente avesso a inovações. Ao menos, as tecnológicas. O americano Gay Talese, 71 anos, um dos nomes mais representativos do new journalism, ignora a internet e não se corresponde por e-mail. A tecnologia mais moderna que usa – e só em raras exceções – é o fax. E foi por intermédio dele que Talese concedeu esta entrevista ao JB.

O jornalismo em si – e não poderia ser diferente – pautou a conversa. Mas Talese não se limitou a falar das transformações do new journalism, classificação que, por sinal, rejeita. Pelo contrário: fez uma dura análise da atual complacência da imprensa americana com o governo George Bush.

– Os jornalistas nunca enxergam com realidade os problemas da administração Bush, tampouco questionam severamente. Se o fizessem, algumas verdades sobre a conduta moral de Bush, Rumsfeld e todos esses generais do Pentágono viriam à tona – dispara.

Em Fama e anonimato (Companhia das Letras, 504 páginas, R$ 52), uma reedição, revista e ampliada, da famosa coleção de reportagens Aos olhos da multidão, de 1973, Talese incluiu dois textos inéditos, mas não abandonou a divisão temática que fez tanto sucesso há mais de 30 anos. Num curioso retrato de Nova York, personagens anônimos e famosos se esbarram neste livro, em que Talese transforma banalidades em reportagens que fizeram história. Numa delas, ele parte de bizarras estatísticas – 150 mil pessoas andam diariamente por Nova York com olhos de vidro ou 25 gatos vivem 22 metros abaixo do Grand Central Terminal – para fazer uma análise antropológica da cidade. Também pela Companhia das Letras, Talese já publicou no Brasil A mulher do próximo e O reino e o poder.

– Em ‘A festa acabou’, um dos artigos de Fama e anonimato, o senhor escreveu que as notícias são encenadas para as câmeras e os críticos dançam de olhos fechados. Como fica uma imprensa sem notícia do que, de fato, acontece e acrítica?

– Reitero aqui a minha observação. Vejamos os jornalistas que são pagos para cobrir o governo americano em Washington: os olhos de todos eles parecem fechados para o que está acontecendo. Eles nunca enxergam os reais problemas da administração Bush, tampouco a questionam severamente. Se o fizessem, algumas verdades sobre a conduta moral de Bush, Donald Rumsfeld (secretário de Defesa) e todos esses generais do Pentágono viriam à tona. Assim, emissoras como a CNN e a Fox, por exemplo, não estariam nos dizendo que a invasão do Iraque foi saudada com flores pelo adorável povo. A imprensa virou uma espécie de mascote dos militares. Quando um repórter é protegido por um comandante de tanque ou por um fuzileiro, ele se torna um companheiro dos militares, de maneira que – e isso quero enfatizar – sua imparcialidade é afetada.

– Qual a influência da cobertura jornalística na opinião pública americana?

– Nós, americanos, somos um público desinformado há muitos meses, acalmado por nossa frouxa imprensa de Washington e por nossos repórteres embutidos no front, que acreditam que Bush, Condoleezza Rice (assessora de Segurança Nacional) e Rumsfeld estão libertando o mundo e nos defendendo de novos ataques terroristas. É fato que está havendo mais destruição lá (no Iraque) nos últimos meses do que em qualquer momento desde o início da guerra, há um ano. Nos anos 60, os Estados Unidos tinham uma imprensa boa e, sobretudo, muito crítica. Harrison Salisbury, do The New York Times, foi a Hanói em 1966 e descobriu que bombardeios americanos estavam destruindo casas de civis e hospitais (o contrário do que a assessoria da Casa Branca dizia). Salisbury foi condenado pela Casa Branca como um jornalista simpático aos inimigos, um apologista dos vietnamitas. David Halberstam, também no Vietnam, foi um dos jovens jornalistas que contaram a verdade, e foi criticado pelo presidente John F. Kennedy. Mas, e daí? Halberstam e outros corajosos jornalistas conseguiram colocar a opinião pública contra a guerra. Quem, entre os jornalistas de 2004, são os novos Halberstams ou Salisbury? Ninguém que eu saiba. Tem Seymour Hersh, que escreve boas matérias de investigação para a revista The New Yorker, e alguns outros. Mas nosso jornalismo parece ser formado por pessoas cegas.

– Qual é o problema dos repórteres hoje?

– Nossos repórteres não estão nas ruas com as pessoas, nossos jornalistas políticos andam em rebanhos como um grupo de comadres na capital do país: falando um do outro, comendo nas mãos da Casa Branca e se preocupando com a possibilidade de serem atacados pelas Forças Armadas se forem muito críticos no que escrevem. Suas visões estão embaçadas pela tela do computador. Eles não são inovadores e investigadores como os jornalistas da época da Guerra do Vietnam.

– Quais seriam os reflexos de uma imprensa conduzida por ‘homens de olhos fechados’?

– Críticos de olhos fechados nós estamos cansados de ver na televisão, principalmente quando falam das audiências de Washington e nos alertam, como porta-vozes do governo, da CIA e do FBI, para a possibilidade de ataques terroristas. Acredito que a falha na estratégia do FBI e da CIA também é reflexo da falha da cobertura jornalística. Nós não estamos lá fora, nas ruas, como deveríamos. Não estamos nos misturando com as massas. Estamos trancados entre quatro paredes, assistindo a tudo pela tela do computador. Não enxergamos mais a realidade, porque as telas nos cegam. Não estamos ligando os pontos, como se diz, e eu pergunto o motivo. Respondo: porque estamos voltados para dentro, em vez de estarmos apurando a realidade com nossos melhores instintos e energias.

– Embora seja sempre citado como um dos fundadores do novo jornalismo, o senhor sempre renegou o título. Então, como define sua participação na imprensa?

– Como você mesma disse, sempre tentei fugir de rótulos. Até hoje, não sei o que há de novo no novo jornalismo. Tom Wolfe estava tentando me honrar quando se referiu a mim como um dos pais do new journalism. Mas é uma paternidade que não posso reconhecer. Temo que o novo jornalismo tenha se transformado numa matéria elegante para se estudar nas universidades dos anos 70 e 80. Sou um devoto do velho jornalismo: apurar os fatos corretamente, escrever com clareza, de maneira interessante e sem a mínima tolerância para com falsificações ou exageros. Uma das maiores satisfações e recompensas que tive ao escrever por tantos anos foi a credibilidade que conquistei e o fato de nunca ter sido acusado de inventar histórias ou de optar pelo caminho mais fácil e nem sempre correto.

– Como o senhor analisa os escândalos na imprensa americana, como o recente caso de Jayson Blair, que admitiu ter inventado informações e personagens em reportagens do jornal The New York Times?

– Embora admire muito Tom Wolfe, eu acredito que muitos jovens ‘novos jornalistas’ estão mais interessados em dar o furo, escrever rápido, do que apurar os fatos corretamente. Wolfe é um grande pesquisador, assim como um escritor muito original. Mas muitos dos seus novos admiradores priorizam o estilo ao conteúdo e acabam se perdendo nos fatos. Não estou falando do exemplo mais escandaloso, como o caso de Jayson Blair. Ele nunca foi um bom escritor e nunca tentou sê-lo. Blair foi apenas um repórter mentiroso. Era muito bom em mentir, e só isso.

-Qual a relação entre jornalismo e literatura, não-ficção e ficção?

– Como faço tanto literatura quanto jornalismo, vejo uma relação fortíssima entre os dois. No entanto, devo ressaltar que não seria completamente adequado dizer que faço jornalismo, quando não sou mais um repórter diário. Sou, na verdade, um escritor de não-ficção. Minha não-ficção é baseada em minhas pesquisas de campo, no meu contato com as pessoas e em minhas observações. E isso é seguido por um organizado e particular programa de ação, que reflete a minha noção de qual seria a melhor maneira de contar a história. E, finalmente, depois de ter o material organizado, começo a escrever e reescrever até eu finalmente achar que não possa fazer melhor em cada parágrafo e em cada página escrita.

– Mas o senhor não tinha problemas por descumprir prazos, ultrapassando o famoso deadline, no jargão jornalístico?

– Obviamente, tenho meu tempo e não ligo para deadlines ou, ao menos, não me importo muito. Há 40 anos, quando era repórter diário de The New York Times, eu era obrigado a fazer uma matéria por dia. Confesso nunca ter sido muito bom nisso. E, na verdade, estava sempre infeliz. Eu raramente pensava que havia feito um bom trabalho, com propriedade. Queria e precisava de mais tempo. Finalmente, quando estava com 32 anos, em 1965, pedi demissão. A pressão do deadline diário estava devorando meu espírito. Foi aí que fui tentar escrever para revistas (para a Esquire com um contrato de um ano – 1965/66). Desde então, comecei a escrever livros que me tomam cada vez mais tempo. Eu apenas espero viver o bastante até este verão (inverno no Brasil) para poder terminar o livro que estou escrevendo desde 1993. Mas nem me pergunte sobre o que é. Só sei que gostei do que escrevi até agora. Tenho 500 páginas empilhadas na minha mesa. Demorei nove anos para concluir Unto the sons e mais nove escrevendo A mulher do próximo. Honor thy father e O reino e o poder levaram seis e cinco anos, respectivamente. Quando eu escrevia para revistas, nos anos 60, levava meses para fazer um único artigo. Demorei mais de três meses para escrever ‘Frank Sinatra teve um resfriado’.’