Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Folha de S. Paulo

‘O jornalista Luiz Alberto Bahia morreu na madrugada de ontem, aos 82 anos, no Rio. Ele integrou o Conselho Editorial da Folha desde sua criação, em 1978. Entre 1977 e 1980, foi colunista da página dois do jornal, onde escreveu sobre política nacional e internacional, seus temas preferidos. Entre 1959 e 1962, dirigiu o jornal ‘Correio da Manhã’, então um dos mais importantes do país.

Bahia estava internado havia um mês na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do hospital Samaritano. Nesse período, sofreu sucessivos derrames, que o deixaram inconsciente. Enfrentou problemas nos pulmões e nos rins e, às 3h30 de ontem, teve falência múltipla dos órgãos.

O corpo de Bahia foi enterrado às 17h35, no cemitério São João Batista (Botafogo, zona sul do Rio). Ao velório e ao sepultamento compareceram cerca de 150 pessoas, entre jornalistas, professores universitários e representantes da Universidade Candido Mendes, do Tribunal de Contas do Município do Rio e do Tribunal de Contas do Estado do Rio.

Bahia foi conselheiro do TCM entre 1980 e 1993, quando se aposentou ao completar 70 anos. Também era conselheiro da Sociedade Brasileira de Instrução, ligada à Candido Mendes.

Embora tenha exercido diversas atividades, ocupando funções públicas e desenvolvendo um original percurso intelectual -em que aproximava catolicismo, espiritismo e marxismo-, ele dizia que o jornalismo era sua ‘constante’.

‘Ele foi um jornalista destacado, importante, autor de artigos marcantes e com uma competência muito grande nas análises políticas’, disse o presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Maurício Azêdo.

Teve passagens por ‘O Globo’, ‘Jornal do Brasil’ e pela revista ‘Visão’. Chegou à Folha depois de um período de estudos de dois anos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra.

Mesmo após deixar de ser colunista, continuou escrevendo artigos para o jornal, em sua maioria publicados na seção Tendências e Debates. No último, de 21 de setembro de 2002, fazia uma análise das eleições presidenciais então em curso e antecipava a polarização entre Lula e Serra, que ocorreria no segundo turno.

Bahia freqüentemente dava sugestões e opiniões à Folha. ‘Ele sempre foi muito ativo. Nos últimos anos, estava desencantado da política. Preferiu se dedicar mais à família’, disse o filho Luiz Henrique. Ele deixa também outro filho, Mário José, a mulher, Maria de Jesus Nunes Bahia, quatro netos e dois bisnetos.’

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‘Estilo e poder de análise política são destacados’, copyright Folha de S. Paulo, 29/11/05‘O senador e ex-presidente José Sarney (PMDB-AP), que conheceu Luiz Alberto Bahia quando ele ainda trabalhava no ‘Jornal do Brasil’, disse ontem em Brasília que ‘ele pertencia a uma das gerações mais brilhantes que fizeram a transição entre o jornalismo do passado e o da modernidade’.

‘Era um homem de grande talento e deu uma contribuição importante à história do jornalismo contemporâneo, sobretudo por suas virtudes profissionais e morais’, acrescentou Sarney.

O jornalista Alberto Dines, que foi editor-chefe do ‘Jornal do Brasil’ entre 1962 e 1973, afirma que Bahia, editorialista daquele diário entre 1963 e 1964 (e que mais tarde, nos anos 70, voltaria ao ‘JB’), ‘foi uma daquelas vozes com uma retórica muito bonita, que deu importância aos editoriais do jornal’. ‘Ele representou uma época. Tinha um estilo retórico que não chamaria ‘à antiga’, já que gosto disso, um estilo retórico retumbante’, afirmou Dines.

Para o presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Maurício Azêdo, Bahia ‘foi um jornalista destacado, autor de artigos marcantes e com uma competência muito grande nas análises políticas’.’

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‘Jornalismo é distinguir o real do aparente, dizia Bahia’, copyright Folha de S. Paulo, 29/11/05‘Luiz Alberto Ferreira Bahia (1923-2005) foi um dos jornalistas que mais contribuíram para elevar os padrões intelectuais do jornalismo brasileiro. Comandou o ‘Correio da Manhã’ entre 1959 e 1962, foi editorialista de ‘O Globo’ e do ‘Jornal do Brasil’, colunista da Folha e membro do seu Conselho Editorial.

Nascido em Botafogo (zona sul do Rio), filho de um oficial da Marinha e de uma professora primária, ambos católicos tradicionais, estudou no Colégio Santo Inácio, dos jesuítas, e depois no Colégio Militar, onde se tornou agnóstico. Aos 18 anos, empregado como arquivista do Itamaraty, começou a ler os clássicos de economia e de política e conheceu as obras dos marxistas. Não concluiu o curso de direito.

Em 1945, estreou como jornalista militante no recém-lançado ‘Vanguarda Socialista’, semanário feito por trotskistas e socialistas independentes, dirigido pelo crítico de arte Mário Pedrosa.

Em 1945, Bahia foi apresentado ao dono do ‘Correio da Manhã’, Paulo Bittencourt. Iniciou, então, a longa carreira jornalística que só seria interrompida com os problemas políticos que teria de enfrentar a partir de 1962.

Depois de um intervalo de três anos, nos quais foi diretor no Brasil do British News Service, voltou para o ‘Correio’ em 1953. Quatro anos depois, tornou-se secretário de Redação e, em 59, assumiu o cargo mais alto do jornal, o de redator-chefe.

Jornal de combate

O ‘Correio’ reunia uma elite intelectual formada por jornalistas como Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Antônio Callado, Franklin de Oliveira e Carlos Heitor Cony. Era, na definição de Bahia, ‘um jornal de combate’.

Da experiência na direção do ‘Correio’, Bahia forjou ‘a fórmula de sucesso de um grande jornal burguês’, que repetia com humor: ‘Conservador em economia, liberal em política e revolucionário em cultura’.

Bahia foi demitido em 1962. Ele atribuía sua saída ao relacionamento com o então ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas (1911-64). San Tiago foi contra a posição dos Estados Unidos, que queriam a expulsão de Cuba da OEA (Organização dos Estados Americanos).

O apoio do ‘Correio’ a Cuba nesta questão, segundo Bahia, desencadeou uma forte pressão das agências de publicidade americanas, que o acusavam de estar fazendo ‘o jogo comunista’. Seu passado trotskista foi ressuscitado. ‘As classes empresariais me carimbaram’, lembraria quase 40 anos depois.

Outro fator importante para a sua saída foram os enfrentamentos seguidos e violentos que teve com o então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-65).

A renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 61, provocou o movimento entre os militares e as forças direitistas para impedir a posse do vice-presidente, João Goulart. O ‘Correio’ se posicionou a favor da posse e sofreu as conseqüências do enfrentamento entre golpistas e legalistas.

Lacerda liderou as ações contra o ‘Correio’ e isso afetou o relacionamento com Bahia, seu antigo vizinho de mesa na redação do próprio jornal, que chegou a ser apreendido.

O episódio da apreensão do jornal foi relatado por Bahia, em entrevista a Marcelo Beraba, atual ombudsman da Folha, em 27 de setembro de 2001: ‘Eu tive um episódio dramático com um coronel irmão do Figueiredo [general João Baptista Figueiredo, presidente da República entre 1979 e 1985]. Ele ocupou o jornal e exigiu a censura. Eu disse a ele que não aceitava. Foi um episódio dramático, ele sentado de um lado, eu do outro. Ele dizia: ‘Mas o senhor tem que me entregar os originais’. Eu disse: ‘Não entrego. Então, o senhor me prende. O senhor toma o meu lugar, eu vou preso, aí o senhor censura, mas eu aqui nesse lugar não [permitirei]. Ninguém censura o jornal’. E o jornal não foi censurado, mas foi apreendido na boca da máquina, pelas Forças Armadas.’

Serviço público

Em 1962, com 39 anos, Bahia iniciou uma nova etapa da sua vida profissional. Sem abandonar o jornalismo, aceitou empregos públicos que, na sua opinião, foram responsáveis pelo amadurecimento de suas idéias sobre economia e política. ‘Eu vi o ventre do processo político e econômico.’

Foi consultor político do Ministério da Fazenda. Depois, fez parte do Conselho Administrativo do então BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), onde ficou até 1967, já no regime militar. Ocupou a chefia da Casa Civil no governo Negrão de Lima (1901-81), contestado pelos militares linha-dura, na Guanabara.

Negrão governou até 71. Bahia foi seu secretário até 68 e se afastou com a decretação do AI-5 (Ato Institucional nº 5), em 13 de dezembro daquele ano.

Enquanto esteve no serviço público, Bahia escreveu artigos semanais para a revista ‘Visão’ (entre 1962 e 1970) e editoriais para o ‘Jornal do Brasil’ (1963 e 64) e para ‘O Globo’ (64 e 65). Em 69, após a saída da Casa Civil, ele voltou a fazer editoriais para ‘O Globo’. Em 72, regressou ao ‘Jornal do Brasil’.

Vida acadêmica

Em 1970 e 71, Bahia foi professor convidado do Centro para Estudos Internacionais (Center for International Affairs) da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Em 1975 e 76, foi membro do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

De volta ao Brasil, passou a assinar, a partir de 16 de março de 1977, uma coluna diária na Folha, que foi publicada até 2 de novembro de 1980. Naquele ano, recebeu um convite do então governador do Rio, Chagas Freitas (1914-91), para fazer parte da primeira turma de conselheiros do novo Tribunal de Contas do Município.

Católico na infância, marxista-trotskista na juventude, Bahia descobriu, aos 60 anos, por intermédio de Antônio Callado, a obra do cientista e pensador católico Teillard de Chardin (1881-1955).

Ainda jovem, foi apresentado pelos tios ao espiritismo de Alan Kardec (Hipolyte Leon Denizard Rivail, 1804-1869). Mais tarde, se impressionou com as obras do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), do filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) e, principalmente, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), autor de um dos livros que mais o marcaram, ‘O Homem Revoltado’ (1951).

Bahia escreveu três livros: ‘O Fenômeno Divino e Outras Convicções’ (Dublin, 1999); ‘A Dimensão Injusta -Bases para a Revolução Igualitária’ (Zahar Editores, 1968) e ‘Soberania, Guerra e Paz’ (Zahar, 1978, prefácio de Antonio Callado).

Na citada entrevista de 2001, resumiu seu conceito da profissão de jornalista: ‘Há verdades aparentes e verdades reais. O jornalista tem essa tarefa dificílima de descobrir a verdade real por trás da verdade aparente. Então, eu diria a ele que tentasse isso sempre. A primeira verdade que ele deverá procurar é a fraternidade entre as pessoas e o bem das pessoas, seus semelhantes. A segunda é mais difícil de alcançar, é a justiça. A justiça dos homens é justa e injusta ao mesmo tempo. De maneira que não radicalizar nunca a idéia de que vamos alcançar a justiça absoluta, nem desejar que a injustiça prevaleça’.’



MORTES NO JORNALISMO
Eduardo Ribeiro

‘Safra de pêsames, para nossa tristeza’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 23/11/05

‘O jornalismo brasileiro perdeu em pouco mais de duas semanas nada menos do que seis profissionais, motivo mais do que suficiente para enlutar tantos quantos amam e trabalham nessa fascinante, apaixonante e sofrida atividade. Um de nossos mortos é Augusto Mário Ferreira, profissional brilhante, ético, texto refinado, mas certamente desconhecido das novas gerações, uma vez que estava há anos afastado do dia-a-dia profissional, primeiro pela mudança de área (das redações para a assessoria) e, depois, pela doença que o acometeu, três anos atrás, interrompendo de forma dramática sua carreira.

Em 2002 ele sofreu o primeiro AVC e nunca mais foi o mesmo, embora tenha lutado heroicamente contra a doença, com uma vontade de viver comovente e que enchia os olhos de quem acompanhou seu sofrimento e sua garra. Era um gentleman, um nordestino arretado, amigo, camarada e que deixou amigos por onde passou. E passou por O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, revista Manchete, Rádio Gazeta, assessoria de imprensa do Banco de Tóquio, IPT… Até fundador de jornal de bairro ele foi, aventurando-se por alguns anos com a Gazeta de Moema, jornal que fez história no segmento, mas que não conseguiu sustentação econômica no médio e longo prazos.

Tive a oportunidade de visitá-lo, já doente e com um dos lados do corpo semi-paralisado, na sua casa, na região da Raposo Tavares, e o fiz numa tarde de sábado, acompanhado de Mara Ribeiro, outra amiga de fé e irmã camarada minha, e também de Augusto Mário, que o acompanhou nos bons e maus momentos. Foi uma tarde diferente, agradável, singela, em que tanto ele quanto nós vibrávamos a cada novidade (uma nova palavra reaprendida, passos morosos mas firmes, um carinho dos filhos, da esposa ou dos netos, algumas boas histórias de redações…).

Meses depois, já um pouco melhor, ele resolveu retribuir a visita e simplesmente apareceu sozinho na porta do escritório do J&Cia, sorrindo como criança ao ver o meu jeito estupefato de encará-lo, como se estivesse vendo um fantasma. Ficamos mais de hora proseando, até que, pouco antes de se despedir, ele retirou da sacola que portava (com a dificuldade de quem só conseguia manejar com relativa destreza uma das mãos) um exemplar de ‘O enclave Y’, livro que escreveu durante a doença, mas que era, em verdade, um projeto muito antigo. Foi como se estivesse me entregando um troféu (e era mesmo) e que para mim representou exatamente isso: aquele era o troféu da vida dele. Despediu-se de mim com um até breve e lá se foi, encontrar-se com a esposa que o pegaria na esquina no horário combinado, como de fato ocorreu.

Mais não nos vimos certamente por culpa única e exclusivamente minha, que, chafurdado em tarefas e trabalhos, tenho negligenciado demais as outras coisas da vida, particularmente o convívio com as pessoas que aprendi a amar e respeitar ao longo de minha vida. Quando me dei conta, já era tarde. Foi exatamente com a triste notícia de que ele se tinha ido, sem se despedir. Bom não estava, mas também não dava mostras de que partiria tão de repente. Partiu, mas não sem antes pregar uma peça. Quer dizer escrever uma peça, apaixonado que era pelo teatro. O nome é ‘O bosque dos eucaliptos’, legado que fica para seus filhos e para o próprio teatro. Deixou esposa, um casal de filhos e quatro netos. Tinha 68 anos.

Também se foi, uma semana antes de Augusto Mário, no começo deste aziago novembro, o fotógrafo Paulo Higarashi, aos 56 anos, de complicações decorrentes de uma cirurgia no coração. Paulo teve grande parte de sua carreira (ou quase toda ela) vinculada à revista Transporte Moderno, publicação técnica parida pela Editora Abril, mas que acabou ganhando independência e vida própria nas mãos dos editores que então a dirigiam, Higarashi entre eles. Era de todos conhecido no agitado mundo da imprensa automotiva pelos anos de convívio. Mesmo depois que deixou a sociedade da revista, continuou colaborando com ela e foi justamente cobrindo um evento do setor, o Salão Internacional do Transporte, no dia 22/10, que ele começou a se sentir mal. Foi internado, operado, mas não resistiu. Deixou esposa e dois filhos.

Ainda em São Paulo, tivemos neste último domingo (20/11) a morte prematura e trágica de João Roberto Baumer, editor assistente da Agência Estado (do AE Agronegócios), que, aos 36 anos, sofreu um infarto fulminante, sem chances sequer para um socorro médico, que chegou rápido, mas nada pôde fazer. Baumer teve o mal súbito dentro de seu apartamento. Era catarinense de Joinville, onde foi enterrado na manhã desta terça-feira (22/11) e estudou em Porto Alegre. Veio para São Paulo logo depois de formado, iniciando a carreira na capital paulista na publicação Safras & Negócios. Passou, depois, por Agência Folha e programa Panorama Rural (Band), de lá saindo para a Agência Estado, onde estava há seis anos. Era separado e deixa uma filha de 7 anos, Doris, que mora em Porto Alegre. A missa de 7º dia será celebrada no próximo sábado (26/11), na Igreja da PUC, à Rua Monte Alegre, 948 (Perdizes), às 12h15.

No Rio de Janeiro, também perdemos Elaine Rodrigues, aos 50 anos, na última quarta- feira (16/11). Formada pela UFF, Elaine participou do movimento estudantil nos anos 70, atuando na APML e no MR-8. Desde os anos 80, trabalhou em O Globo e era considerada uma das pioneiras no jornalismo investigativo no Rio, especializada na área de Saúde. Travou longa luta contra o câncer – que já tinha levado outras pessoas de sua família – e conseguiu trabalhar este ano até pouco antes do Carnaval.

Registramos ainda a perda de Magno Madureira no último dia 17/11 (quinta-feira), de câncer. Casado com a também jornalista Rosane Quaresma, Magno trabalhou nas sucursais de O Globo e Estadão entre as décadas de 70 e 90 e foi assessor da Telemar entre 1992 e 99, quando se aposentou. Atuou também, no início de carreira, no Jornal de Minas. Deixou dois filhos.

E por último, dizemos adeus a Marco Uchôa. Repórter do programa Fantástico, da TV Globo, ele travou uma batalha de dois anos contra o câncer. Internado há mais de uma semana no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, não resistiu à doença e morreu na manhã desta quarta-feira. O Comunique-se trará mais informações sobre o velório de Uchôa.

A todos eles, é claro, o carinho e o sentimento de toda esta imensa comunidade do Comunique-se.’



CRÔNICA JORNALÍSTICA
Carlos Heitor Cony

‘Amenidades e leitores’, copyright Folha de S. Paulo, 28/11/05

‘Leitores, se os tenho, reclamam aos canais competentes dos assuntos que costumo abordar em minhas crônicas, que não considero colunas, mas crônicas mesmo. O país pegando fogo, escândalos pipocando, ídolos despencando de seus pedestais históricos, tudo isso constitui o pão, pão, queijo, queijo da mídia nos dias de hoje.

Eventualmente, e meio contra a vontade, abordo temas que têm a ver com a situação. Nada entendendo de política e, além disso, mal-informado como sempre, não me entusiasmo e muito menos me esbofo em comentar, criticar ou elogiar o que se passa no cenário nacional.

Prefiro, como em crônica recente, escrever sobre a corrida de barquinhos a vela que vi aqui na Lagoa, diante de minha varanda, num sábado de sol e preguiça. Perda de tempo e espaço, reclamam os leitores que não os tenho -mas o jornal os tem. Ficam indignados com o desprezo que dedico aos grandes temas que sacodem a nossa vida pública.

Penso em minha mãe -pensamento que equivale mais ou menos a pensar na corrida de barquinhos de sábado. Nada a ver com a realidade que atualmente preocupa a nação e estarrece o povo. Ela tentou educar o filho para temas que considerava nobres, botou-me num seminário para que eu salvasse almas, estudasse Sócrates, santo Agostinho, lesse Horácio e Ovídio no original. Ficaria estarrecida ao ver-me falar de Marcos Valério, Lula, Palocci, Delúbio.

Mau filho, mau cronista, vez por outra sou obrigado a falar desse time de pernas-de-pau da humanidade. Em 64, quando processado e preso pelo então ministro da Guerra, minha mãe passou uns tempos decepcionada comigo: ‘Não foi para isso que eduquei meu filho’, dizia.

Não falo com ela há muito, mas, de alguma forma, sinto que ainda me protege, não por concordar comigo, mas por pena, talvez por amor. De maneira que, quando escrevo sobre barquinhos a vela, sinto a mão dela afagando a minha cabeça e me abençoando.’



DANIELA CENSURADA
Deonísio da Silva

‘Daniela Mercury proibida no Vaticano’, copyright Jornal do Brasil, 29/11/05

‘A mídia está invertendo o seu papel. Em vez de garantir a controvérsia, busca padronizações globais. O caso mais recente foi o veto do Vaticano à cantora Daniela Mercury.

O que se pede de quem manifesta uma opinião? Que arroste a sua liberdade, pensará qualquer filho das luzes que as tochas da Revolução Francesa acenderam. Por que a Santa Sé, o Papa ou qualquer autoridade da Igreja deveria render-se à opinião de uma cantora sobre preservativos? Ou todos devemos submissão aos juízos de nossos artistas?

‘Depois de se apresentar no Faustão, a cantora Daniela Mercury estará hoje no programa Show Business com João Doria na Rede TV à (sic) partir das 23h00 e no Fantástico na Globo à (sic) partir das 20h30’. Assim estava informado na noite de domingo em www.centraldanielamercury.blogger.com.br. Como se vê, não é apenas a crase que é excessiva, também a inconformidade com o veto à sua participação no Concerto de Natal da Santa Sé, a realizar-se em Roma no próximo 3 de dezembro.

Até o Le Monde caiu na esparrela: ‘Le motif avancé par le Vatican est que Daniela Mercury a fait la campagne publicitaire télévisée du ministère brésilien de la Santé prônant l’utilisation de la ‘petite chemise de Vénus’ (nom du préservatif au Brésil) comme moyen de prévention du sida, lors du dernier Carnaval. L’Eglise ne reconnaît pas l’efficacité du préservatif et prêche l’abstinence sexuelle.’

E se o Vaticano aprofundasse a pesquisa e verificasse o que mais tem feito ou deixado de fazer o ministério da Saúde, a questão talvez pudesse ganhar em compreensão do problema. Não há a mesma disposição para combater a verminose, o carrapato, a corrupção nas maciças compras de remédios, os remédios vencidos nas prateleiras de farmácias de hospitais públicos etc.

Qual é o cerne da confusão da mídia? O mesmo de sempre. A mídia simula ambiente de liberdades ilimitadas, desde que não seja ela a criticada. Mas é preciso pelo menos diferenciar o seguinte: se a Igreja não aprova o preservativo e prega a abstinência sexual, este é um problema dos católicos, cuja grei obedece a uma complexa hierarquia em cujo topo está o Papa, atualmente Bento XVI.

O Domingão do Faustão supôs que altas autoridades eclesiásticas não tinham mais o que fazer, como a maioria da população brasileira nas tardes de domingo, e estavam de olho, não na televisão, mas especificamente naquele programa. Senão como dar a entender ao distinto público que aquelas autoridades citadas poderiam contrariar o Papa?

Precisamos separar as coisas, pois Igreja e Estado, felizmente, estão separados. Ou os críticos da proibição querem inverter de vez a História e pôr no lugar de um totalitário poder teocrático um poder leigo que submeta a Igreja a seus desígnios? No Brasil, a mídia já denuncia, indicia, julga e devasta reputações com a velocidade comum dos irresponsáveis, prejudicando com isso a imprensa séria, que procura comprovar o que apresenta ao público.

Se o leitor pertence a um clube, associação ou entidade, sabe que há leis, estatutos, regimentos a acatar. Muitos católicos discordam das prescrições da Igreja a respeito de temas candentes da modernidade, dos quais o controle da natalidade e das doenças sexualmente transmissíveis é bom exemplo.

Mas como negar à Igreja o direito de convidar para um show determinados artistas e não outros?

Se o Papa tivesse apoiado alguma bandeira da mídia, mesmo que representasse intromissão indevida em assuntos leigos, sua voz seria aceita sem questionamentos.

Portanto, discordar somente quando lhe convém deixa a mídia em situação muito vulnerável. Não é a liberdade que está em questão. É a ditadura de uma mesma opinião sobre qualquer coisa.’

RODAPÉ