SARNEY
É proibido silenciar
‘SÃO PAULO – Uma vez, anos atrás, um acadêmico norte-americano especializado
em América Latina (o nome se perdeu nas brumas da memória) comentou comigo que a
palavra ‘accountability’ não tem tradução fiel, precisa, nem em português nem em
espanhol.
O sentido mais próximo é ‘prestação de contas’. Mas não alcança o mais
profundo do conceito, que é o de introjetar a obrigação de render contas de seus
atos, especialmente se se é agente público.
Posto de outra forma: o funcionário público, de qualquer calibre, tem marcada
na alma a certeza de que deve explicações ao público, mesmo quando o público não
as esteja pedindo.
É essa consciência, indispensável à construção da República, que o senador
José Sarney demonstra não possuir, ao recorrer a uma frase de Sêneca para
calar-se. Essa história de combater o que chama de ‘injustiça’ com ‘o silêncio,
a paciência e o tempo’ não passa de fuga às suas responsabilidades e de traição
ao conceito de ‘accountability’ que ele, como funcionário público da mais alta
graduação, deveria ser o primeiro a defender.
De quebra, Sarney refugia-se na velhíssima e fajutíssima tese de perseguição
da mídia. Não, senador, é perseguição dos fatos, e enquanto eles não forem total
e definitivamente explicados, continuarão a persegui-lo, no Maranhão, em
Brasília, onde for.
É essa fuga à ‘accountability’ que explica os parlamentares que se lixam para
a opinião pública. Ela paga os salários de todo esse ‘band of brothers’, mas
eles não se sentem compelidos a dizer ao púbico o que fazem, o que só aumenta a
suspeita de que o que fazem só cabe mesmo em BOs.
O caso de Sarney é mais grave porque tem um espaço semanal, aqui ao lado, em
que poderia dar todas as explicações sem ser interrompido por perguntas. Prefere
mudar de assunto. Sempre.’
OPINIÃO PÚBLICA
Mídia sem média
‘RIO DE JANEIRO – Ainda não chega a ser um sintoma, mas o indício de que
alguma coisa está mudando na cabeça dos homens públicos, pelo menos aqui no
Brasil. Um deputado e agora um senador declararam que não dão a mínima à opinião
geral do povo, segundo eles, fabricada e massageada pela mídia, notadamente
pelos jornais.
Durante quase todo o primeiro mandato de Lula, com exceção de seus primeiros
meses no poder, o noticiário e os comentários dos informadores de opinião o
massacravam, aludindo entre outras fraquezas à falta de escolaridade e ao
excesso de bebida. Hoje, Lula caminha para quase uma unanimidade nacional e
internacional, com crescentes taxas de popularidade.
Mudando de seara, em seus 50 anos de vida artística, Roberto Carlos foi
execrado pelos entendidos em música popular, tanto como compositor quanto como
cantor. Todos os anos, ao sair um novo disco dele, caíam em cima na base de
‘atingiu o ponto mais baixo de sua carreira’. Brega, repetitivo, suburbano, fim
da picada -ele continuou na dele, não deu bola para a mídia e se transformou no
fenômeno que é, lotando o Maracanã num dia de chuva e com o repertório que os
sábios de Atenas consideram cafona.
Há exemplos assim em quase todos os setores, sobretudo na política e na
administração. E há também estupefação quando o anátema da mídia não encontra
ressonância proporcional. Collor, Barbalho, Renan, Maluf -para citar os mais
polêmicos- deram a volta por cima e continuam aí, Collor em ascensão, tentando o
governo de Alagoas, Maluf sendo dos mais votados para a Câmara dos
Deputados.
Os exemplos são tais e tantos que um dos satanizados pela mídia declarou-se
satisfeito e orgulhoso pois nunca recebera tantos convites para dar palestras em
faculdades. E tem como garantida a sua reeleição.’
TELEVISÃO
‘CQC’ faz paródia de reality show para revelar 8º repórter
‘A Band lança amanhã um concurso para selecionar o oitavo repórter do ‘CQC’.
Será uma brincadeira de quase dois meses com os formatos de reality show. O
vencedor assinará um contrato de seis meses.
‘Vamos parodiar os realities, convidar as famílias dos candidatos para ficar
na plateia, mostrar como eles vivem’, anuncia Marcelo Tas, âncora (ou
primeiro-repórter) do programa.
Amanhã, Tas anunciará a abertura das inscrições, pela internet. O candidato
terá de enviar um vídeo pelo correio.
A produção do ‘CQC’ estima receber entre mil e 2.000 inscrições. No programa
de 10 de agosto, serão anunciados os nomes de 32 selecionados.
Esses candidatos passarão por várias etapas. Em duas delas, serão avaliados
por Danilo Gentili, Rafael Cortez, Felipe Andreoli e Oscar Filho.
‘Os repórteres vão testá-los com coisas que aprenderam no ‘CQC’, afirma
Tas.
Os oito ‘sobreviventes’ serão em seguida avaliados por um júri de convidados
-representantes das ‘vítimas’ e especialistas em ‘escapar’ dos repórteres do
programa. ‘Vamos convidar um político, um artista, um jornalista’, anuncia
Tas.
Restarão quatro finalistas, que serão sabatinados ao vivo por Tas, Rafinha
Bastos e Marco Luque, em 14 de setembro.
Segundo Tas, não há uma expectativa sobre o perfil do vencedor. ‘Queremos ver
o que vai chegar. Pode ser homem, mulher, jovem, velho’, diz.
O telespectador também votará pela internet. Mas, antes que acusem o programa
de fraude, o que é comum nos reality shows, Tas avisa: ‘O público terá peso, mas
a decisão será nossa, subjetiva’.
A BARBIE DA RECORD
Vai ser com esse visual que Bárbara Borges, ex-Globo, estreará na Record. Em
‘Bela, a Feia’, no ar dia 4, ela será a manicure e cabeleireira Elvira, irmã da
protagonista Bela (Gisele Itié). Elvira usará roupas justas e batom, blush e
esmalte cor-de-rosa. Acha que arrasa na elegância, mas é brega até o último fio
de cabelo -em três tons de loiro. ‘Ela se espelha na Barbie. Valoriza a beleza e
a parte externa. Para viver a personagem, aprendi a fazer escova, penteado e
unhas. No início, fiquei com receio de queimar o cabelo de alguém ou fazer
alguma besteira’, conta Bárbara.
SUPER SOPHIA
Aos 14 anos, Sophia Abrahão já se virava sozinha no Japão, como modelo. Hoje,
aos 18, contabiliza dois anos de ‘Malhação’, dando vida à patricinha Felipa.
‘Ela mudou muito. Começou como vilã e agora está amiga da protagonista. Depois
de passar uma temporada fazendo maldades, entrou em depressão com a morte do
namorado’, conta a atriz. Na novelinha da Globo, também interpreta Fenômena, uma
super-heroína criada por outro personagem da trama.. Em breve, Fenômena
protagonizará uma HQ animada na internet.
AUTORA COM ‘PEDIGREE’
Renata Dias Gomes, 25, anunciou no Twitter: é a mais nova contratada do SBT.
Ex-colaboradora de Christianne Fridman em ‘Chamas da Vida’, tinha contrato até
abril de 2010 com a Record, mas foi seduzida por Silvio Santos, em ofensiva
contra a rede de Edir Macedo. ‘Vou ficar à disposição do SBT. Poderei colaborar
com outros autores, mas estou muito à vontade [para se lançar autora-solo].
Tenho um projeto’, avisa. Renata também tem ‘pedigree’: é neta de Janete Clair e
Dias Gomes, dois dos maiores novelistas brasileiros.
SAÚDE GLOBAL 1
Uma equipe da CNN esteve na Globo na semana passada gravando uma reportagem
sobre a inserção de assuntos de saúde nas telenovelas da emissora. O material
será exibido no programa ‘Vital Signs’.
SAÚDE GLOBAL 2
A CNN gravou com Carolina Dieckmann, que raspou os cabelos em ‘Laços de
Família’, de Manoel Carlos -outro entrevistado. Bruno Gagliasso, que vive
esquizofrênico em ‘Caminho das Índias’, fechou o ciclo.
NOVA FROTA
A Globo vai trocar até o final do ano sua frota de carros a serviço das
equipes de reportagem em São Paulo. Os atuais veículos foram alvo de muitas
reclamações. Em relatório, uma repórter os apontou como responsáveis por seus
problemas de coluna. Novos modelos foram testados -foram bem de coluna, mas mal
de bagageiro.
ATÉ O FIM
Lauro César Muniz confirma ter sido assediado pelo SBT. O autor da Record,
porém, avisou que em hipótese alguma deixaria uma novela pela metade. Só
conversará com o SBT após o término de ‘Poder Paralelo’.’
Audrey Furlaneto
Fantasia não tem lugar na TV, diz Talma
‘Diretor da série ‘Anos Dourados’ (1986), a segunda mais vendida para o
exterior pela Globo (foi exibida em 15 países), e de novelas como ‘Pai Herói’ e
‘Água Viva’, Roberto Talma, 60, afirma que a fantasia não tem mais lugar na
TV.
Há 40 anos na emissora, ele dirige o núcleo que lança amanhã a série
‘Ger@l.com’, para pré-adolescentes e na qual os personagens conversam bastante
pela internet.
À Folha, Talma diz que é difícil concorrer com ‘emissoras de merda que só
mostram desgraça’ e que a saída é tornar a dramaturgia, mesmo num programa
infantil, mais realista.
FOLHA – O senhor fez ‘Anos Dourados’, um dos maiores sucessos da Globo. Por
que a emissora não emplacou entre os jovens mais produtos como aquele?
ROBERTO TALMA – Em ‘Anos Dourados’, eu tinha uns 30 anos. Estava no auge da
minha forma, contando um pouco da minha história.. Se você coloca um problema
dos anos 50 hoje, não é problema. Lá, discuti virgindade, traição, paixão
adolescente, impossibilidade, frustração, [diferenças de] classes sociais que
sempre existiram no Brasil, que é uma coisa esquisita pra dedéu.
FOLHA – Mas não existem mais problemas como esses de outras formas
atualmente?
TALMA – Olha, não existe, não. A virgindade com 13, 14 anos, já dançou. Fiz
‘Anos Dourados’ em 1986. A pulverização do sexo hoje é inacreditável. Você não
sabe o que era colocar uma menina nua, no início das novelas, 20, 30 anos atrás.
Você não sabe a dificuldade que era. Hoje, elas leem aquela bodega [roteiro] e
já entram no estúdio nuas. Ficou natural. E hoje existe o mito de que qualquer
um é celebridade. Me poupe!
FOLHA – A TV alimenta isso.
TALMA – Nós somos culpados, não só a mídia e a TV. Qualquer pessoa que bota a
bunda de fora é famosíssima. Você conhece a pessoa pela bunda, jamais pelo que
ela fez. Aí fica difícil. Uma menina de 15, 16 anos já está na vida. Como é que
se cria algo que faça o espectador pensar: ‘Caramba, que divino! Eles ainda
estão tentando [manter a virgindade]’. Agora, não. Todo mundo já rodou pra
caralho, não tem nada para descobrir.
FOLHA – Em ‘Ger@l.com’, as crianças muitas vezes se comunicam via internet, e
não pessoalmente. O senhor acha saudável a criança usar webcam, por exemplo, o
dia todo?
TALMA – Eu acredito que webcam, essas coisas todas, não. Mas PSP [videogame
portátil], joguinhos, tudo bem. E é o seguinte: o mundo não está muito católico,
não, né? Não dá para você deixar o moleque solto. Às vezes uma hora em casa na
internet é melhor que duas horas sem saber onde o cara está.
FOLHA – A TV não deveria criar produtos infantis mais lúdicos?
TALMA – Se você acompanhar pelo mundo, não tem mais isso. Quando eu comecei a
fazer a parte da manhã aqui na Globo, a [roteirista] Mariana Caltabiano tinha
uns bonequinhos que eram lindos. Fizemos um projeto que era bom pra caramba.
Eram uns velhinhos que se perderam no espaço e tal. Na primeira reunião que
tivemos em São Paulo com garotos de 8 a 12 anos, o que a gente sofreu de ver a
falta de informação, a agressividade… Quando você usa um boneco, até os cinco
anos, a criança aceita; depois dos cinco anos, a garotada toda acha que estamos
tentando enganá-los. Eles ficavam possessos num nível assustador, em função de
achar que estavam sendo enganados.
FOLHA – Por quê?
TALMA – Porque eles passam o dia com a mãe ligadona nessas emissoras de
merda, que estão cobrindo só desgraça. Na cabeça deles, deixa de ter o lúdico,
não existe! Volta e meia a gente toma uma porrada [perda de audiência] por causa
de novela das seis, das sete, porque são horários, vamos dizer assim, que mexem
muito com os [telejornais] locais [‘Negócio da China’, dirigida por Talma, teve
a pior audiência dos últimos anos no horário das 18h]. O que acontece é o
seguinte: que novela você tem que fazer para suplantar aquele menino que
sequestra a namorada, a amiga da namorada, fica durante uma semana cercado de
policiais com 500 mil pessoas, dão um microfone para esse analfabeto de merda e
ele se torna ídolo? O que você tem que colocar para brigar contra isso? Com essa
realidade dura, crua e nojenta que nós temos no Brasil? Quer dizer, no mundo
inteiro é assim. Torna-se inviável! A internet é o mais próximo da realidade,
mas ainda pode existir lá uma coisa lúdica.
FOLHA – Há diretores, como Jorge Furtado, que tentam algo menos realista,
como a série ‘Decamerão’.
TALMA – É uma série de época, mas é uma história de corno. De corno, de
traição, de ser humano. É ‘a’ que deu para ‘b’, que deu para ‘c’..
FOLHA – A série que o senhor vai lançar é realista também.
TALMA – Não sei se vocês viram, mas meus personagens sonham. Sonham que estão
voando, por exemplo. Tem um monte de coisa lá que eu acho que vai chegar às
crianças.’
***
Série une internet, celular e HQ
‘‘Ger@l.com’ é o primeiro produto de dramaturgia da Globo que vai usar as
‘três telas’ (telefone celular, internet e televisão). Os personagens fazem
vídeos usando a câmera do celular e postam na internet.
Ao longo dos capítulos, surgem na tela senhas que podem ser usadas para se
assistir a conteúdos exclusivos no blog do programa (www..ligageral.com).
‘É para a molecada ver, ouvir, ir para o computador e continuar acompanhando.
Hoje, as crianças fazem milhões de coisas ao mesmo tempo’, diz o diretor-geral
da série, Leandro Neri.
Os personagens centrais são reais: Xande e Luke são irmãos, Mateus, João e
Pedro são primos, e eles têm uma banda, a WWW, desde 2006. Procuraram a Globo
para um projeto documental do grupo, com vídeos feitos pela família. A emissora
incluiu a dramaturgia e mais personagens.
Os cenários se inspiram em HQs, com móveis pintados nas paredes. ‘Ger@l.com’
começa mostrando a dificuldade das crianças em conseguir fazer no condomínio os
ensaios da WWW.
GER@L.COM
Quando: de 20 a 24/7, às 11h30, na Globo
Classificação: não informada’
HOMEM NA LUA
Imagens do futuro
‘George Orwell [1903-50] um dia fez um de seus protagonistas de ‘1984’ dizer:
‘Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla
o passado’. Talvez seja o caso de completar esse raciocínio maior com uma
proposição faltante, porém fundamental.
Proposição que deve vir por último, produzindo assim uma circularidade que
certamente está mais próxima da experiência real do tempo: ‘Quem controla o
futuro, controla o presente’.
Devemos acrescentar essa proposição porque nossas representações do futuro
sempre foram o campo no interior do qual as dinâmicas que influenciam o presente
são decididas.
Pois tudo se passa como se o tempo que nos rege fosse organizado ‘de maneira
retroativa’. Só somos capazes de dotar o presente de sentido quando o enxergamos
a partir da construção de uma série virtual retroativa que vai do futuro aos
dias de hoje.
Por isso, talvez não seja totalmente correto dizer que o presente é
diretamente influenciado pelo passado. Na verdade, em última instância, é nossa
capacidade de projetar o futuro que faz o passado deixar de ser um conjunto
ilegível de eventos dispersos para se tornar uma sequência de acontecimentos com
força cumulativa. É o futuro que influencia diretamente o presente.
Vale aqui o dito preciso de Walter Benjamin [1897-1940]: ‘O historicismo se
contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas
nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se
transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem
estar dele separados por milênios’. Ou seja, é ‘da frente para trás’ que
contamos a história.
Lembremos ainda que, para um momento histórico como a modernidade ocidental,
momento que não acredita mais que o recurso às tradições passadas e às
autoridades substancialmente enraizadas possa fornecer procedimentos para
justificar o presente, a capacidade de projetar o futuro transforma-se em uma
operação decisiva. Para uma era assombrada pelo problema da autocertificação, a
cadeia do tempo só pode começar a partir do futuro, já que é de lá que vêm os
valores que nos guiam: o novo, o moderno, o revolucionário.
Batalha pelo futuro
Neste sentido, não é um simples acaso que, durante algumas décadas do século
20, a batalha pela hegemonia político-ideológica tenha alcançado o espaço.
A corrida tecnológica empreendida pelos ‘cosmonautas’ soviéticos e os
‘astronautas’ americanos pela conquista do espaço, com toda a carga simbólica
que tal ‘conquista’ carrega, aparece atualmente como uma estranha metáfora.
Se é certo que o céu e suas estrelas parecem escrever nosso futuro,
poderíamos dizer que a conquista espacial nos forneceu a metáfora do ‘salto
gigantesco para a humanidade’ capaz de criar a imagem espetacularizada da
aceleração da história.. Poderíamos mesmo dizer que essa seria a versão que a
sociedade do espetáculo criou para substituir o ‘salto de tigre em direção ao
passado’, de Walter Benjamin. Um salto que seria capaz de apagar as feridas dos
conflitos passados, redimindo suas cicatrizes.
Talvez seja o caso de falar aqui de ‘substituição’ porque a conquista
espacial foi um belo exemplo de um acontecimento que estava em outro lugar.
Lembremos como este foi talvez o primeiro fato milimetricamente montado para
ser exibido, em escala planetária, pela televisão. A condição fundamental para
dar este salto gigantesco para a humanidade era: ele deveria caber em uma tela
de televisão. Tela que, pela primeira vez, estava enfim distribuída por quase
todo o globo.
É difícil imaginar o impacto dessa história sem lembrar o papel testemunhal
das imagens globalmente difundidas. Talvez isso nos permita dizer que, com a
emissão televisiva da chegada à Lua, o imaginário global processou a verdadeira
informação, a saber, a partir de agora a aceleração da história se dará a partir
da imagem.
A imagem será nosso futuro, nosso céu e nossas estrelas. Seu regime
espetacular fornecerá a forma estrutural do nosso destino ou, se quisermos, a
forma estrutural do controle a que estaremos submetidos. Como se Guy Debord
fosse a verdade de Neil Armstrong.
Talvez isto nos explique um fato curioso que fica mais claramente visível
quando voltamos os olhos para este peculiar regime de imagens que é o
cinema.
Poderíamos esperar que, a partir da corrida espacial, nossas representações
cinematográficas do futuro e do espaço fossem animadas por um certo entusiasmo
da conquista. No entanto, os filmes que realmente ficaram na história do cinema
a partir do final dos anos 60 parecem querer nos fornecer uma gramática da
distopia.
Distopias
Peguemos, por exemplos, filmes como ‘Laranja Mecânica’ (1971), de Stanley
Kubrick, ‘Blade Runner’ (1982), de Ridley Scott, e ‘Brazil – O Filme’ (1985), de
Terry Gilliam.
Para além da particularidade de cada um desses filmes, encontramos versões da
ideia de que só conseguimos projetar o futuro como lente de aumento das
clivagens, das estruturas de controle e da brutalidade do presente.
Como se a imagem do futuro estivesse submetida de maneira tal ao jogo de
interesses e à lógica de reprodução do presente que a única imagem capaz de
fazer jus àquilo que ainda não encontrou figura no interior de nossas formas de
vida fosse a imagem do futuro como ruína. Contra o esvaziamento dos
acontecimentos vindo de nossa maneira peculiar de dar saltos gigantescos,
descobrimos a força da distopia e da desconfiança.
Neste sentido, talvez o filme mais impressionante para pensarmos ‘a
contrapelo’ as imagens do futuro que chegaria por meio da conquista da Lua
continue sendo ‘Solaris’ (1972), de Andrei Tarkovski.
Muito haveria a se dizer sobre esse que talvez seja um dos grandes filmes da
história do cinema. Mas fica aqui apenas sua representação da ‘conquista’ de um
planeta (Solaris) cuja aproximação começa a despertar alucinações nos
astronautas.
Alucinações capazes de dar realidade a histórias destruídas, como a história
do astronauta, protagonista principal, cuja mulher que havia se suicidado revive
incessantemente em sua nave espacial. Confrontação que o faz encontrar, no
futuro, os fantasmas do seu passado.
Como se alcançar o verdadeiro futuro fosse indissociável da capacidade de
acolher e redimir o passado em seus fracassos. Desta imagem do futuro, ainda
continuamos à procura.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP.’
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