Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folha de S. Paulo

ELEIÇÕES 2006
Editorial

Degradação

“NADA MAIS sintomático -sintomático da degradação de um partido antes identificado com a ética na política- do que o argumento petista segundo o qual o chamado ‘escândalo do dossiê’ visaria a conturbar o pleno transcurso do calendário eleitoral.

Flagrados de novo em ato explícito de delinqüência, setores próximos ao presidente Lula reagem com um desgastado repertório de absurdos. Confiantes no sucesso da candidatura petista e na credulidade da população, sustentam que o presidente da República ‘só teria a perder’ com a estúpida trama que a Polícia Federal veio a revelar. Tudo teria sido uma tentativa de ‘melar’ as eleições presidenciais.

Não é verdade. De Freud Godoy a Jorge Lorenzetti, de Jorge Lorenzetti a Ricardo Berzoini, o que se viu foi o envolvimento de nomes historicamente ligados a Lula e à hierarquia petista numa trama destinada a favorecer a candidatura de Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo.

Caso o esquema desse certo, seriam José Serra, adversário de Mercadante, e Barjas Negri, seu sucessor no Ministério da Saúde do governo Fernando Henrique, as figuras a monopolizar o noticiário em torno do escândalo dos sanguessugas. Se houver, as responsabilidades de ambos terão de ser identificadas com máximo e idêntico rigor.

Mas o esquema não deu certo. O malogro resultou em infortúnio para o PT e seu candidato à Presidência. Revelou-se mais um ato de violência intimidatória -o mais grave, sem dúvida- a cobrir de vergonha a legenda do Partido dos Trabalhadores.

Compra-se, com dinheiro sujo, um dossiê capaz de incriminar oposicionistas. Após o flagrante policial, jorram lágrimas de crocodilo. Conspiradores sem escrúpulo se dizem vítimas de conspiração. Mafiosos acusam quem os indicia. Intelectuais se tornam militantes da mentira. Como nos tempos de Stálin, setores de esquerda se esfalfam em condenar os que não ficam cegos aos desmandos do tirano.

Lula não é nenhum tirano. Mas, se ele próprio é levado a condenar a felonia de seus companheiros, sua candidatura representa a tolerância com toda uma quadrilha.

Uma quadrilha que vê, na ilegalidade, a volta ao charme romântico de uma época em que havia méritos em ser clandestino. Uma quadrilha que aproveita, do messianismo ideológico de outros tempos, os argumentos de que a elite quer apeá-la do poder. Uma quadrilha que, por fidelidade ao chefe, por submissão ao chefe, imagina agradá-lo quando mergulha na prepotência, no autoritarismo, na chantagem e na corrupção.

Talvez o chefe goste disso. Talvez premie, num futuro mandato, asseclas menos desastrados.

Tudo depende do aval que lhe derem as urnas. Esta Folha mantém, como sempre, o compromisso de apartidarismo que está entre as razões de ser de sua atividade jornalística.

Nas eleições que opuseram Fernando Collor de Mello, de um lado, e Luiz Inácio Lula da Silva, de outro, este jornal não tomou partido. Os asseclas de Collor promoveram uma patética invasão da Folha uma semana depois da posse. Os asseclas de Lula por ora se limitam a reclamar de supostas malevolências oposicionistas.

Não há malevolência, porém, diante do fato consumado. Não há inocência tampouco. No âmago do governo Lula, age uma organização disposta a quase tudo para se manter no poder. De seu sucesso -ou não- depende o futuro da democracia brasileira.”

Janio de Freitas

Bem-vindo escândalo

“MESMO QUE nos próximos seis dias não se altere o rumo das constatações policiais e se confirme a vitória de Lula já no primeiro turno, o escândalo do dossiê terá trazido uma contribuição política providencial. Joga uma conveniente quantidade de água fria no triunfalismo com que Lula conduziria o segundo mandato. Se por muito menos, com resultados tão modestos em relação às expectativas de mudança, Lula se presume acima de todos ‘na história deste país’, os planos políticos para o segundo mandato receberiam o impulso de um triunfalismo tão mais perigoso quanto mais frágil é a prática da política no Brasil, dominada por condomínios de interesses sempre comerciáveis.

Não por acaso, o ministro Tarso Genro, que desempenha as atribuições estratégicas perdidas por José Dirceu, retomou depressa as menções à tese/proposta de ‘refundação do PT’. É manobra tática inteligente, como caminho alternativo para contornar dificuldades do acordão partidário, posto por Tarso Genro sob o mau gosto vocabular de ‘concertação’.

Mas ‘refundar o PT’ com os petistas do PT afundado? Não faria sentido. O plano se desvenda sem querer: ‘refundá-lo’ como nova agremiação com os propósitos hoje expressos (mais do que praticados) pelo governo e pelo discurso de Lula. Com a unificação do contingente petista e dos setores ‘mais à esquerda’, como diz Lula, do PMDB, de vários partidos nanicos e de um largo pedaço, disponível sim, do PSDB.

O plano político para o segundo mandato é, portanto, na hipótese menos ambiciosa, a ‘concertação’ que Lula chama de ‘uma grande base de partidos aliados’; no objetivo real, seja por fruto futuro do acordão ou pela ‘refundação’, um novo partido. Um partidão com o aumentativo mais justificado do que em seu irônico uso anterior, nos tempos do pesado PC.

O plano político não está extinto pelo escândalo do dossiê. Em incerta medida, a reincidência de petistas em territórios criminais até favorece a redução, no PT histórico, de resistências à ‘refundação’, com o necessário abandono dos mitos petistas. Mas o escândalo, tenha ou não efeitos eleitorais, produz reflexos políticos. E um deles é o desgaste político de Lula, começando por abater-lhe parte do triunfalismo com que chegaria ao segundo mandato como portador de um cacife político extraordinário. E ainda mais potente graças à oposição que, com a fisionomia do PSDB e do PFL, nunca foi tão obtusa e ridícula ‘na história deste país’. O que parece não ser mau para o país, tanto que o passado dessa oposição também não suscita saudade nos anseios nacionais de mudanças.

O projeto de um partidão, dominante do Congresso, sob controle de um governo cujo presidente não se sabe o que pretende, porque deixou de ser quem era e suas várias faces não são umas mais críveis que as outras, adverte para a instauração de uma fase sombria para o regime democrático. De tal nebulosidade pode sair qualquer coisa. Ainda mais nas indefinidas perspectivas da América do Sul atual. E de incertezas o Brasil já está cheio, histórica e literalmente.”

Elio Gaspari

Lula não é Nixon, Mello não é Bob Woodward

“O PRESIDENTE DO Tribunal Superior Eleitoral, ministro Marco Aurélio de Mello, precisa conter a devoção que tem pela voz do doutor Marco Aurélio de Mello. Sua comparação das malfeitorias petistas com o caso Watergate é curiosa para um cidadão, impertinente para um magistrado, absurda para o presidente de um tribunal eleitoral.

Numa entrevista aos repórteres Luiz Orlando Carneiro e Tales Faria, o ministro produziu uma salada. Perguntaram-lhe se via ‘semelhanças’ entre os dois casos e ele disse:

‘Não, não vejo…. É algo muito pior! Não há comparação. Aquela escuta foi realmente muito terrível. Mas, agora, o que temos é uma somatória de desvios de poder.’

Se o ministro acredita que o caso do PT é realmente ‘muito pior’, mistura duas equipes de tabajaras, uma americana e outra brasileira, associando um episódio passado (a renúncia do presidente Richard Nixon) e uma crise recente (o envolvimento de Lula nas malfeitorias petistas).

A associação é capenga. Nixon encrencou-se quando dois assessores testemunharam que havia usado a Presidência para obstruir o trabalho da Justiça. Foi a pique quando teve que entregar as fitas das gravações clandestinas que fazia no Salão Oval. (Ele não foi o primeiro. O grampo presidencial tornara-se rotina nas reuniões de John Kennedy e nos telefonemas de Lyndon Johnson.)

Há uma diferença essencial entre o Watergate e as malfeitorias petistas: ninguém provou (ainda) que Lula obstruiu investigações policiais ou a ação da Justiça. A idéia de ‘pior’ sugere um nível de malfeitoria que não chegou (ainda) ao campo das provas. O que vem a ser um ‘desvio de poder’, não se sabe, mas até onde a vista alcança, se alguém cometeu desvios foi o doutor Ricardo Berzoini com seu dispositivo de mídia.

Uma das boas coisas da vida para colunistas e redatores é a construção de vinhetas históricas comparando alhos com bugalhos. (A nota aí de baixo é um exemplo disso.) Quando o presidente do Tribunal Superior Eleitoral entra nesse tipo de exercício, a Justiça perde. Os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein achavam que o caso Watergate era ‘muito pior’ do que se pensava, mas eram repórteres, não eram magistrados.

Enquanto a ministra Ellen Gracie estiver na presidência do Supremo, bem que se poderia criar um sistema de cotas verbais: todos os ministros podem falar quanto quiserem fora da Corte, desde que não ultrapassem em dez vezes o tamanho das falas da presidente. Como ela raramente excede duas frases por semana, ficaria tudo mais simples.”



MERCADO EDITORIAL
Thiago Ney

Revistas trocam famosos por ‘vida real’

“A vida imita a arte, e as revistas lucram com a vida.

No Reino Unido, enquanto o mercado de jornais impressos permanece estagnado e a maioria das publicações mensais procura uma maneira de estancar a queda nas vendas, existe um nicho editorial que apenas comemora. São as revistas que lidam com ‘real life’ -ou, em português, vida real.

Os números estão em crescimento -e impressionam. ‘Take a Break’, líder de mercado, tem circulação de mais de 1 milhão de exemplares; ‘Chat’ vem em seguida, com 554 mil; depois, ‘That’s Life’ (490 mil), ‘Pick Me Up’ (445 mil), ‘Love It!’ (405 mil)…

Um dado importante: a periodicidade é semanal.

Outro: a capa -e todo o interior- dessas revistas não estampa Brad Pitt, Madonna, Bono ou Scarlett Johansson. As celebridades dão lugar a pessoas comuns -à vida real.

Como comparação, vale buscar a circulação das revistas semanais britânicas dedicadas às celebridades -a líder, ‘Closer’, vende 590 mil exemplares.

A edição de 29 de agosto da ‘Love It!’, por exemplo, trazia em sua capa a história de Sue Partlow, 45, que gastou o dinheiro ganho em uma loteria para custear uma operação de mudança de sexo de seu marido Mick -que passou a chamar Melanie Partlow.

Já a ‘Take a Break’, no dia 4 deste mês, preferiu colocar na capa a carta de amor escrita por Ian Stacey para sua mulher, Alison, morta em conseqüência de uma hemorragia cerebral.

Algumas páginas à frente, a revista ilustra uma página dupla com fotos dos animais de estimação de seus leitores.

Os leitores têm grande responsabilidade pelo que é publicado -a maioria dessas revistas paga pelas histórias recebidas. A ‘Take a Break’ anuncia: ‘Sua revista, suas histórias. Conte para nós primeiro. Pagamos até 500 libras’.

‘Muitas’, responde à Folha John Dale, editor da ‘Take a Break’, sobre quantas histórias a revista recebe por semana.

Lançada em 1990, a ‘Take a Break’ é a líder do mercado e motivou a aparição de concorrentes e de seções ‘real life’ tanto em revistas dedicadas a celebridades como em jornais.

‘O que os leitores querem são as melhores histórias sobre amor, traição, casamentos, nascimentos, mortes. Nos esforçamos para fornecer isso.’

A representatividade desse tipo de revista no Reino Unido não é coisa a se ignorar -em 2001, segundo o jornal ‘Independent’, Tony Blair reservou parte de sua agenda pré-campanha eleitoral para falar aos leitores da ‘Take a Break’.

Todas as grandes editoras britânicas, como Emap, IPC, Northern & Shell, por exemplo, têm pelo menos um título que briga nesse nicho.

Vida real x celebridades

O crescimento das vendas das revistas ‘real life’ significa que o público está perdendo interesse pelas fofocas e escândalos das celebridades?

‘Não’, diz Dale. ‘O público ainda se interessa pelos famosos. Mas ele quer um mix -um pouco de celebridade, um pouco de pessoas reais.’

Com tanta concorrência, Dale afirma que não existe o perigo de uma revista inventar histórias para fisgar leitores.

‘Os leitores acabam descobrindo se você está inventando algo. A ficção normalmente acaba soando como ficção. Nós trabalhamos duro para publicar as melhores histórias, verdadeiras em todos os sentidos -damos nomes verdadeiros, fotos verdadeiras, endereços verdadeiros.’

CIRCULAÇÃO NO REINO UNIDO

‘REAL LIFE’

‘Take a Break’: 1,08 milhão

‘Chat’: 554 mil

‘Pick Me Up’: 445 mil

‘Love It!’: 405 mil

CELEBRIDADES

‘Closer’: 590 mil

‘Heat’: 579 mil

‘OK!’: 547 mil

‘Hello!’: 403 mil”



CICARELLI NA WEB
Elio Gaspari

La Cicarelli tem o seu momento Jacqueline

“Daniela Cicarelli quer processar quem divulgar seus momentos de alegria nas areias e nas águas de Cádiz, na Espanha. É provável que a Justiça lhe dê razão em diversos países. Mesmo assim, quem entende do negócio sugere que, em vez de brigar para trás, ela faça como Jacqueline Kennedy, que brigou para a frente.

Em 1974 a linda senhora (45 anos, quem diria) estava no seu paraíso particular da ilha de Skorpios, na Grécia. Vestia um biquíni preto. Primeiro tirou a parte de cima. Ao trocar-se, tirou o que faltava. Foram mais de 30 fotos, em todos os ângulos, sem bolina. Meses depois, circulou uma história segundo a qual, ao encontrar-se com ela, o economista John Kenneth Galbraith disse-lhe: ‘Muito prazer em te ver vestida, Jackie’.

Nas fotos de Skorpios havia um enigma. O milionário Aristóteles Onassis, com quem Jacqueline se casara em 1968, também aparecia, com o torso nu e enrolado numa toalha. Bingo. Foi ele quem contratou os fotógrafos que campanaram a madame. Passada a sensação, discretamente, as cenas saíram do mercado. A primeira negociação passou pelo pornógrafo Larry Flynt, dono da revista ‘Hustler’, que comprara os direitos das fotos.”



INTERNET
Paula Leite

Brasil terá site de download de filmes, afirmam estúdios

“O Brasil tem público suficiente para um site legal de download de filmes e deve contar com um serviço em pouco tempo, diz Steve Solot, vice-presidente da MPA (Motion Picture Association, que representa os seis maiores estúdios dos EUA) para América Latina. Solot diz que a TV digital brasileira terá que ter codificação, senão será fácil piratear programas direto da ‘caixinha’, ou ‘set-top box’. Leia entrevista.  

FOLHA – Qual é a expectativa dos estúdios com a entrada de grandes ‘players’ como Apple e Amazon na venda de downloads de filmes?

STEVE SOLOT – É muito bom, é um passo importante para atender a uma demanda dos consumidores. Esse oferecimento do iTunes, da Amazon e de outros é uma tendência que ainda está no início, mas que está desorganizada. Está desorganizada por fora, nos sites, e está desorganizada também pelos provedores de conteúdo. Por exemplo, um problema que é óbvio é que os estúdios não estão completamente juntos e coordenados para oferecer todo o conteúdo em determinado site.

FOLHA – Por quê? É medo da pirataria ou estratégia de marketing?

SOLOT – Era inicialmente o medo da pirataria e o medo da canibalização de outros mercados. Até este ano, o faturamento do setor de DVD nos Estados Unidos era muito, muito forte. E começou a nivelar. Então muitos executivos, não só de estúdios grandes mas de toda a cadeia de comercialização de vídeo, começaram a se preocupar. Aí começaram a olhar para novos formatos de DVD. Mas, até agora, esses novos formatos não foram tão bem recebidos pelo público. Então isso fez com que os estúdios e os outros players começassem a olhar para o ‘video on demand’. Isso iniciou só com o download para computador, não podia ‘queimar’ o filme, fazer um DVD e levar para a sua sala e assistir a isso no seu aparelho de televisão ou home theater. Agora se está começando, de forma incipiente, a permitir a transição do computador para a sala de estar.

FOLHA – Na América Latina e no Brasil, praticamente ainda não existe ‘video on demand’, não é?

SOLOT – Não, ainda não. Na verdade, fora dos Estados Unidos quase não tem. Mas isso não vai demorar, porque, já que se usa a plataforma de internet, não tem como você prender. Na verdade, o que nós não sabemos é como isso vai ser trabalhado. Pode ter que estabelecer uma versão do Movielink [site de venda de filmes dos EUA] brasileira.

FOLHA – Então o sr. acha que o que falta é a organização do setor? Ou existem outros problemas, como não haver público suficiente?

SOLOT – Não, não, o Brasil tem público suficiente, sem dúvida. O número de usuários de internet no Brasil é suficiente para justificar isso, e em vários outros países da América Latina. O problema é a organização, e também o modelo de negócios. Porque esse modelo de negócios é baseado em DRM [Digital Rights Management, mecanismos de proteção dos arquivos] e um preço adequado. E o preço depende de muitos fatores da população, da renda per capita, de fatores locais.

FOLHA – O sr. falou no DRM. Que avanços já houve nessa área e o que falta para melhorar o mecanismo?

SOLOT – Bom, o DRM é um dos dois componentes do modelo de negócios. A Microsoft oferece, por exemplo, uma tecnologia de DRM que permite controlar e dar instruções de quantas vezes pode tocar, se pode queimar. O problema é que outro componente é o preço. O DRM é inútil se o preço do produto não permite ao consumidor comprar.

O que ninguém está falando e que é importante é a possibilidade de piratear conteúdo da TV digital. Esse conteúdo, na TV digital, tem que ser codificado, porque existe o risco de alguém que recebe um sinal digital, por meio de uma saída digital do ‘set-top box’ [caixa decodificadora] ou da televisão… É fácil conectar isso no computador, pôr na internet e, aí, ‘tchau’. Aí não tem mais proteção, tanto para um filme quanto para uma novela. Então a Globo está começando a ficar preocupada com isso, e todos os canais também.”



CAPOTE / A SANGUE FRIO
Silviano Santiago

O demoniozinho Capote

“Não é gratuito o título ‘Capote’, dado ao recente filme sobre a experiência de pesquisa e escrita do romance ‘A Sangue Frio’. Ele remete às complicadas aventuras na vida familiar do rapazinho Truman Persons e à carta atrevida que, aos 12 anos, escreve e envia ao pai.

Nela lhe informa que tinha sido perfilhado pelo padrasto, o cubano Joe Capote, e acrescenta que ‘no futuro só se dirija a ele como Truman Capote’. Nos anos seguintes, a vida familiar se complica mais. Nina, a mãe, torna-se alcoólatra e passa a censurar o filho pela homossexualidade.

O jovem busca refúgio nas colônias de artistas da Costa Leste, onde se torna o ‘darling’ de homens mais velhos e famosos. Seu apelido é Puck, o demoniozinho do folclore inglês e personagem de Shakespeare, e resume o perfil do aspirante a escritor logo após o fim da Segunda Guerra. Não era figurinha fácil. Como contínuo (‘copyboy’) na revista ‘New Yorker’, tem os primeiros contos recusados.

Não se dá por vencido, publica-os nas revistas ‘Harper’s Bazaar’ e ‘Mademoiselle’s’, para o público feminino. Na época, a hoje candente ‘New Yorker’ era ‘quadrada’, e os contos mais ousados saíam nas revistas femininas.

Ao lançar, em 1948, o primeiro romance, ‘Outras Vozes, Outros Quartos’, o cáustico crítico George Davis foi impiedoso: algum dia alguém teria de escrever a versão veada (‘fairy’) de ‘Huckleberry Finn’, o clássico de Mark Twain. Merecidamente, o romance se tornou sucesso nacional e internacional, levando Capote a se esbaldar num veraneio infinito e exaustivo pela Europa, em companhia de amigos influentes e celebridades, entre eles o fotógrafo Cecil Beaton.

Atrelado à boemia dos ricos e famosos, Truman Capote escreve ‘Travessia de Verão’. Em junho de 1953, em carta a Mary Louise Asweel, confessa que ‘nunca tinha terminado o livro’ e o que tinha em mãos ‘tinha rasgado em pedacinhos’. Mentirinhas do nosso Capote.

Por obra de um novo Puck, Alan U. Schwartz, influente advogado nova-iorquino e testamenteiro de Truman Capote, o livro reaparece inteirinho em 2005. O advogado é responsável pelo posfácio ao romance, onde historia a aventura da descoberta tardia do manuscrito, do leilão e da compra. Comete, no entanto, um equívoco.

Não é o primeiro romance de Capote, mas o segundo, conforme atestam as cartas do autor. Aliado ao primeiro romance, ‘Travessia de Verão’ demonstra pelo menos duas qualidades. Primeira, Capote já tinha um estilo literário próprio, herdado das inglesas Katherine Mansfield e Virginia Woolf e semelhante ao da sua contemporânea Carson McCullers e da nossa Clarice Lispector.

Segunda, o jovem é um bom leitor dos clássicos norte-americanos e sua originalidade está na transgressão dos padrões estabelecidos. No caso do segundo romance, tinha optado por uma visão perversa e menos realista de romancistas que o antecedem, como Theodore Dreiser (‘Uma Tragédia Americana’), Sherwood Anderson (‘O Livro dos Grotescos’) e F. Scott Fitzgerald (‘O Grande Gatsby’). Sentia-se capacitado a desenhar uma trama original, embora rebuscada e ainda pouco trabalhada.

Apesar de pertencer, originariamente, a um grupo de escritores sulistas da pá virada, de que faz parte seu amigo Tennessee Williams, não era ainda permitido o desenho a nu do homossexual. Como na literatura do nosso Lúcio Cardoso e tal como Blanche Dubois, de ‘Um Bonde Chamado Desejo’, os personagens femininos caracterizados por pura sensibilidade e emoção, transbordantes de amor para dar, eram travestis de homossexuais.

Paixão pelo manobrista

A contragosto da família milionária, que parte em férias para a Europa, a adolescente Grady resolve passar o verão em Nova York. Misteriosa, segundo a mãe e a irmã mais velha, guarda agora um segredo.

Está apaixonada por um manobrista de estacionamento no distrito da Broadway, com quem se casará às escondidas. O desequilíbrio socioeconômico arma os cenários contrastantes da trama.

Ela se abre no restaurante do elegante hotel Plaza, continua pela despedida no cais, se alonga pelas aventuras libidinosas dos jovens no submundo da Broadway, estende-se, por um lado, pelo bairro pobre do Brooklyn, onde mora o rapaz e, por outro lado, pela região do veraneio elegante, os Hamptons, já nossa conhecida dos romances de Scott Fitzgerald.

Trama esquemática, cenários transformados em clichês pelo cinema, desenvolvimento dramático claudicante são alguns pequenos defeitos deste romance.

Salvam-no, no entanto, o estilo já bem calibrado de Capote e, principalmente, o gosto inusitado pelo desenho de inocentes e encantadoras figuras monstruosas do cotidiano (os ‘freaks’, como se dirá na época do rock and roll e das drogas). O melhor exemplo é a anã Anne, irmã do rapaz, que se veste na seção infantil das lojas, mas que, numa oficina, deixa pra trás todos os másculos e incompetentes mecânicos.

SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor, entre outros livros, de ‘As Raízes e o Labirinto da América Latina’ (ed. Rocco).

TRAVESSIA DE VERÃO Autor: Truman Capote

Tradução: Fernanda Abreu

Editora: Alfaguara”

Marcos Strecker

Crítico refuta organizador americano do romance

“Baseado na correspondência pessoal de Truman Capote, extraída de ‘Too Brief a Treat – The Letters of Truman Capote’ (Vintage Books, 2004), de Gerald Clarke, o crítico brasileiro Silviano Santiago refuta a informação do advogado Alan U. Schwartz -beneficiário da obra de Capote na Truman Capote Literary Trust e responsável pela publicação de ‘Travessia de Verão’- segundo a qual este é seu primeiro romance.

Santiago argumenta que ‘Outras Vozes, Outros Quartos’, publicado em 19 de janeiro de 1948, é de fato o primeiro romance de Capote e que as cartas do escritor norte-americano atestam que ele ainda afirmava estar escrevendo ‘Travessia de Verão’ depois dessa data.

Questionado pela Folha, Alan U. Schwartz refutou a afirmação. Lacônico, afirmou apenas que ‘Travessia de Verão’ foi escrito antes de ‘Outras Vozes, Outros Quartos’ e é seu primeiro romance’.

No posfácio de ‘Travessia de Verão’, Schwartz descreve como os manuscritos do livro -que eram desconhecidos- apareceram em 2004, sua hesitação em publicá-lo e como no fim da vida o escritor fantasiava ter escrito seu novo grande romance, ‘Súplicas Atendidas’ -cujos originais, além de alguns capítulos publicados em vida, nunca foram achados. ‘Capote era viciado em drogas e em álcool, o que era autodestrutivo e levou à sua morte precoce’, disse à Folha.”



TELEVISÃO
Bia Abramo

Mortos sem sepultura em ‘CSI’

“Na série, os crimes têm resposta simples; nada a ver com a banalidade dos mortos ‘figurantes’

DOIS CORPOS foram achados em sets de filmagem da série ‘CSI’, um em Miami, outro em Los Angeles. É sério: dia 12, os restos de um homem morto há duas semanas em um prédio onde estava sendo filmado um episódio de ‘CSI: NY’; três dias depois, enquanto uma equipe em Miami fazia tomadas aéreas da Baía de Biscayne, um cadáver não-identificado foi dar na praia.

Trata-se de uma coincidência fortuita, mas que não deixa de ser engraçada. É daquelas piadas cósmicas, do tipo ‘a vida imita a arte’, com a diferença que não há nada de propriamente ‘artístico’ em ‘CSI’. Deviam aproveitar o ensejo e inventar um formato híbrido entre a sitcom e o reality show para investigar quem são e por que raios lá foram parar esses mortos incômodos.

Poderiam abrir um concurso para gente metida a detetive e botar na mão dos participantes todos aqueles equipamentos ultraprecisos que aparecem no seriado para verificar se a ‘arte imita a vida’, ou seja, se a solução de mortes misteriosas é tão simples e cristalina quanto as que rolam no seriado.

Ou então juntar os bambas da investigação criminal na ficção, Gil Grissom, Horatio Caine e Mack Taylor, para descobrir na real a história provavelmente solitária, comum, mesquinha desses cadáveres.

‘CSI: Crime Scene Investigation’ e seus sucedâneos, ‘CSI: Miami’ e ‘CSI: NY’, estão entre as séries de maior audiência nos EUA e no mundo todo. Uma recente pesquisa com audiências de 20 países revelou que ‘CSI: Miami’ é o programa mais visto, seguido de ‘Lost’, ‘Desperate Hosewives’ e da novela colombiana ‘Te Voy Enseñar a Querer’, com um público estimado em 50 milhões de pessoas. Nos EUA, o ‘CSI’ original de Las Vegas está à frente do de Miami, mas ambos estão no ranking dos dez seriados mais assistidos.

É um fenômeno, por certo. Muita, muita gente, no mundo todo, querendo ver a morte ser domada pela competência tecnológica. Na série, seja em Las Vegas, Nova York ou Miami, os crimes mais hediondos têm resposta simples: é só ter o aparelho certo que as evidências delatam criminoso e modus operandi.

Nada a ver com a violência sem rosto e sem propósito na qual estão mergulhadas as grandes cidades contemporâneas. Menos ainda com a banalidade desses mortos que apareceram de repente para fazer figuração -o inquilino do prédio em Los Angeles tão abandonado por todos que ninguém foi reclamar seu corpo ou o sujeito jogado no mar -, com vidas sem arte de nenhuma espécie.”

Lucas Neves

Interatividade dá o tom em premiação da MTV

“A MTV aposta na interatividade para oxigenar a 12ª edição de sua premiação anual de clipes, o VMB (Video Music Brasil), que acontece na próxima quinta-feira, às 22h. Vencedores de 11 categorias (dentre elas revelação, performance ao vivo e clipe internacional) serão apontados pelo público, a quem caberá também escolher os integrantes de uma ‘banda dos sonhos’.

A novidade do ano é a disputa ‘Você Fez’, com versões dos espectadores para alguns dos clipes indicados na categoria ‘escolha da audiência’. Segundo a emissora, em duas semanas, 412 vídeos foram inscritos.

Entre os cinco finalistas, há releituras de ‘Sinceramente’ (Cachorro Grande), ‘Obsessão’ (KLB) e ‘1997’ (Hateen). Os concorrentes são de Minas, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. A votação ocorre no site da MTV.

A participação dos internautas prossegue na definição do figurino de Daniella Cicarelli, mestre-de-cerimônias ao lado de Cazé e Marcos Mion. O trio é outra medida da emissora para renovar o evento, que esgotou a fórmula prêmio/gracinha do apresentador da vez/show nos últimos anos.

Quem chega ao Credicard Hall na posição de favorito são as bandas Charlie Brown Jr. e CPM 22, com cinco indicações cada, mesmo número de menções de ‘Gueto’, clipe de Marcelo D2 com participação de Mr. Catra. Em seguida, vêm Sepultura (quatro), Pitty e Hateen (ambos com três).

A roqueira baiana sobe ao palco com o Nação Zumbi em um dos shows da noite, que terá também apresentações de Caetano Veloso, Skank e Cachorro Grande, entre outros. Completando a relação de performances, os americanos da obscura Living Things são os primeiros convidados gringos da história da festa.

A data da cerimônia (a três dias das eleições) faz com que um certo viés político seja incontornável. ‘Queremos fazer com que as pessoas votem, mais do que de forma consciente, com raiva’, diz o diretor de programação do canal, Zico Góes.

VMB 2006

Quando: na próxima quinta-feira, a partir das 22h

Onde: MTV”



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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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