LIVROS
A vida na estante
‘RIO DE JANEIRO – Às vezes, sou levado a dar palestras em livrarias e bibliotecas, dois lugares a salvo de gente suspeita, como punguistas, terroristas, políticos etc. O único risco que se corre nelas é abrir um livro ao acaso e deparar com uma informação ou idéia que nos transforma a vida para sempre, para o bem ou para o mal.
Numa livraria, há tempos, alguém na platéia perguntou o que eu gostaria de ser quando crescesse. A pergunta era de brincadeira, mas respondi a sério: um dia, gostaria de deixar de ser escritor ou eventual jornalista e reverter à condição de apenas, e com muita honra, leitor.
Afinal, venho me preparando para isso há décadas, desde o dia em que cruzei as pernas dentro das calças curtas e abri o primeiro livro. Milhares de livros depois, descobri que essa preparação incluiu plantar estantes em todos os endereços em que morei, sempre achando que seriam definitivos. E todas essas estantes foram deixadas para trás, na esperança de que o futuro morador as usasse para guardar livros -quaisquer livros-, e não bibelôs inúteis ou troféus conquistados em gincanas bancárias.
Outro sintoma dessa obsessão é procurar os sebos em cada cidade que visito. Se tenho duas horas livres, é neles que tento gastá-las. Até há pouco, eu ainda perguntava no hotel onde ficavam os sebos locais. Agora não preciso mais. Basta chegar à janela e apontar o nariz para a cidade lá em baixo. O cheiro de mofo e dos livros empoeirados me assola as narinas, e sei logo para onde devo ir. Ou então, já na rua, um ácaro me sopra ao ouvido que há um lindo sebo escondido numa galeria defronte.
Enfim, são planos. Do alto das estantes, um mundo de biografias, livros de história e romances clássicos, de ‘Elzira, a Morta Virgem’ a ‘O Grande Industrial’, me contempla. Gigi, eu chego lá.’
TERREMOTO
O rosto compassivo da China
‘Poucas horas depois do mortífero terremoto em Sichuan, o primeiro-ministro Wen Jiabao estava no avião e a caminho do local do desastre. E, igualmente importante, acompanhado por uma câmera de televisão cuja missão era capturar imagens de Wen e de seus assessores, de mangas arregaçadas, estudando mapas e tomando decisões.
Desde então, Wen vem sendo presença constante na mídia chinesa. Ele foi mostrado gritando ordens a funcionários do governo e chorando ao lado de famílias enlutadas. Quando equipes de resgate estavam tentando salvar uma criança em uma escola que desabou, Wen estava a postos. ‘O vovô Wen está aqui’, ele disse, usando um par de tênis encardidos.
Desastres revelam muito sobre a maneira pela qual um país funciona. Depois do terremoto, o autoritarismo empreendedor da China entrou em ação. Os líderes chineses podem não precisar de eleição, mas isso não significa que lhes seja possível ignorar a opinião pública.
Assistência efetiva em caso de desastre é parte do pacto implícito que ajuda a sustentar o forte apoio ao Partido Comunista. Wen levou esse imperativo político a um nível novo.
Quando nevascas deixaram milhões de pessoas isoladas pouco antes do feriado de Ano Novo chinês, em janeiro, ele pediu desculpas aos passageiros na estação ferroviária de Changsha, usando um megafone.
Na verdade, o apego à publicidade estava longe de ser um dos motivos que conduziram o modesto Wen ao posto de primeiro-ministro, em 2003. Sua ascensão pela hierarquia resulta de sua competência burocrática e de sua capacidade de sobrevivência política. Nascido em 1942, em uma região rural, Wen é filho de professores e se formou em geologia. Em 1968, começou a trabalhar no serviço geológico em Gansu, Província pobre no noroeste do país. Passou 14 anos por lá.
Novos talentos
Quando Deng Xiaoping lançou uma campanha no começo dos anos 80 para descobrir novos talentos administrativos, Wen foi transferido a Pequim.
Ele passou por rápidas promoções que o conduziram ao núcleo da liderança do partido, mas sua carreira quase acabou quando dos protestos dos estudantes, em 1989. Wen era um dos assessores mais próximos de Zhao Ziyang, o líder reformista do partido.
Com uma disputa pelo poder em curso, Zhao visitou a praça Tiananmen e pediu aos estudantes que partissem antes que os militares chegassem. Uma foto famosa mostra Wen em pé, atrás do líder. Quando a lei marcial foi decretada, Zhao foi derrubado. Mas Wen sobreviveu, na opinião de alguns porque era considerado um leal servidor de seu chefe.
Ainda que ocasionalmente pareça rígido ao falar com as pessoas comuns e que alguns comentários na internet o tenham criticado por monopolizar as atenções, as reações populares vêm sendo favoráveis.
Os vídeos mais populares em sites chineses, nos últimos dias, eram imagens de Wen.
Mas Wen também tem sido discretamente criticado por não ter causado impacto real sobre o governo. Os críticos dizem que ele não tem a personalidade necessária para promover mudanças contra o bloqueio dos burocratas. Suas reformas rurais e do seguro social não atingiram escala necessária para reverter a disparidade de renda chinesa.
Russell Leigh Moses, um analista que trabalha em Pequim, diz que o tom emotivo de Wen é uma resposta às suas dificuldades para impor suas idéias. Há alguns problemas para Wen, em sua identificação com a resposta ao desastre. Há perguntas difíceis quanto ao desabamento de escolas. As boas manchetes não impedirão uma reação adversa caso as coisas não melhorem.
Tradução de PAULO MIGLIACCI’
PROFISSÃO PERIGO
Jornalista da Rede Globo é vítima de atentado
‘O jornalista Edson Antonio Ferraz, 25, da TV Diário de Mogi das Cruzes (Grande São Paulo), afiliada da Rede Globo, sofreu um atentado na noite de anteontem. Ele retornava de São Paulo após apurar informações para reportagens sobre três casos em que policiais civis são acusados de crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e roubo.
Sozinho, Ferraz trafegava pela avenida Lothar Waldemar Hoehne, no bairro Rodeio, quando a picape Montana -com o logotipo da TV Diário- que ele dirigia foi fechada por um Voyage, no qual estavam dois encapuzados. O motorista do Voyage, segundo o jornalista, atirou duas vezes em sua direção, mas os tiros não o atingiram nem ao veículo.
Em nota oficial, a Rede Globo afirmou que o atentado ‘foi um ato de violência sórdida contra a liberdade de imprensa.
O caso é investigado pela Corregedoria da Polícia Civil, que apura possíveis crimes cometidos por policiais civis. A iniciativa de registrar o caso na corregedoria partiu do repórter e da emissora, por conta de sua atuação profissional. À Corregedoria, Ferraz informou que, cinco horas antes do crime, recebeu uma ligação alertando sobre o risco de um atentado.
O repórter disse à Folha que não sabe dizer quem teria interesse em atacá-lo. ‘Quando entrei na rotatória, um carro escuro, que parecia um Voyage, veio por trás e me fechou. O motorista desceu e fez dois disparos. Na hora não pensei em nada, não sabia o que estava acontecendo’, disse.
Recado
De acordo com José Antônio Ayres de Araújo, delegado da corregedoria, até a noite de ontem as investigações apontavam que o atentado ‘foi um recado’, ‘uma tentativa de intimidação contra ele’.
Mesmo assim, o boletim de ocorrência n.º 215/2008 sobre o caso foi registrado como: 1º) disparo de arma de fogo; 2º) ameaça. ‘Foi um atentado, entre aspas’, disse Araújo.
Sobre o local escolhido pelos criminosos para o ataque, o delegado disse: ‘Indica que procuraram um local mais ermo para poder cometer esse atentado entre aspas’.
De acordo com Araújo, a corregedoria pedirá à Justiça a quebra do sigilo telefônico de Ferraz para descobrir quem foi que ligou para o celular do jornalista e disse ‘para ele tomar cuidado pois estavam armando algo contra ele’.
A Folha apurou que essa ligação, feita em tom de aviso, segundo o próprio Ferraz, partiu de um policial civil de Mogi. Uma fonte jornalística de Ferraz, que chegou a aparecer sem identificação em uma reportagem dele, também foi pressionada na quinta-feira.
Segundo funcionários da TV Diário, ainda na noite de quinta a direção da empresa determinou que todos os profissionais que estavam na rua a trabalho voltassem para a emissora e reforçou a segurança da equipe. A TV Diário não se manifestou.
Depois de registrar boletim de ocorrência na corregedoria, Ferraz e sua mulher deixaram Mogi das Cruzes. Ele ficará em outra cidade do Estado de São Paulo até a direção da Rede Globo decidir seu destino; sua mulher deixou o Estado.
Ontem, a reportagem tentou entrevistar o secretário da Segurança Pública, Ronaldo Marzagão, e o delegado-geral da Polícia Civil, Maurício José Lemos Freire, mas eles não se manifestaram sobre o crime.
Chefe imediato dos policiais denunciados em reportagens de Ferraz, o delegado seccional de Mogi das Cruzes, Carlos José Ramos da Silva, também não quis se manifestar ontem.
Como parte das reportagens feitas recentemente por Ferraz apontava que donos de desmanches e de prostíbulos pagavam propina para policiais do Garra (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos) de Mogi das Cruzes, outro departamento especial da Polícia Civil, o Deic (setor especializado em roubos e crime organizado), também apura o atentado.
Promotoria
As investigações sobre o atentado contra Ferraz serão acompanhadas por três promotores -José Mário Buck Marzagão Barbuto, Marcelo Alexandre de Oliveira e Silvio Loubeh- do Gaerco (Grupo de Atuação Especial Regional de Combate e Repressão ao Crime Organizado), do Ministério Público de Guarulhos.
Segundo os promotores, nenhuma hipótese pode ser descartada na investigação.’
TV cobra que caso seja esclarecido rapidamente
‘A TV Globo divulgou ontem à noite nota oficial em que afirma que ‘repudia o atentado -que só pode ser visto por toda a sociedade como uma tentativa sórdida de inibir a liberdade de imprensa’. A nota também pede empenho no esclarecimento do crime. ‘A TV Globo espera que as autoridades esclareçam o caso no menor tempo possível e que zelem pela segurança do jornalista’, diz o texto, que foi lido na segunda edição do ‘SPTV’ e no ‘Jornal Nacional’. Em Mogi das Cruzes, a direção da emissora comunicou aos funcionários que todas as informações sobre o atentado ao repórter deveriam ser emitidas pela TV Globo de São Paulo.’
19 policiais de Mogi foram alvo de reportagens
‘Pelo menos 19 policiais civis de Mogi das Cruzes foram alvo de reportagens de Edson Ferraz nos últimos meses.
Assim como informou a Folha em 11 de abril, 13 policiais civis de Mogi das Cruzes são réus em um processo no qual são acusados de formar uma quadrilha para cobrar propinas de donos de prostíbulos, desmanches de carros e também de exploradores de máquinas caça-níqueis.
Segundo a Promotoria, os 13 policiais eram do Garra (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos), setor de elite da Polícia Civil de Mogi, no período investigado -2002 a 2004. O líder do grupo, segundo a denúncia, é Eduardo Peretti Guimarães, chefe do Garra.
Ontem, ao ser questionado sobre o atentado contra Ferraz, Peretti disse ‘não saber de nada e que a notícia causava surpresa para ele’. Peretti entrou de férias três dias após a Folha revelar a acusação feita pela promotoria contra ele e os seus 12 ex-subordinados.
Nos últimos dias, Ferraz preparava novas reportagens sobre dois policiais civis -Paulo Fernando Nascimento Gonçalves e Hemerson Martins Loureiro- suspeitos de roubar equipamentos de uma rádio pirata em Mogi. Eles foram denunciados à Justiça em 12 de maio.No terceiro caso, quatro policiais civis -Ricardo de Morais, Antonio Carlos Alves de Mello, Flávio Augusto de Souza Batista e Nilson Barbosa- foram denunciados à Justiça, em 8 de maio, acusados de tentar extorquir R$ 5.000 do dono de uma padaria. O caso também foi divulgado pelo repórter.
Quando sofreu o atentado anteontem, Ferraz tinha no carro documentos sobre essas duas últimas denúncias.’
Mariana Barros e Cinthia Rodrigues
Entidades exigem apuração rigorosa por parte da Secretaria da Segurança
‘Em nota emitida ontem, o Sindicado dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo exigiu que sejam tomadas providências urgentes na apuração do atentado sofrido pelo repórter Edson Ferraz.
A entidade manifestou a sua preocupação com a integridade física dos profissionais de jornalismo que, ‘com freqüência cada vez maior, têm sido alvo de ataques violentos em função de matérias que expõem mazelas como corrupção e desrespeito a direitos civis’.
O sindicato afirmou que encaminhará ofício ao secretário de Segurança Pública do Estado, Ronaldo Marzagão, pedindo rigor na apuração do caso e punição dos responsáveis.
A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) também manifestou preocupação com o caso. Em nota, a entidade afirmou que espera ‘um trabalho intensivo das autoridades para a rápida elucidação do crime, de modo a levar os responsáveis a responder por ele na Justiça’.
Em entrevista à TV Globo, o presidente da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil seccional São Paulo), Luiz Flávio Borges d’Urso, afirmou que não há dúvida de que se trata de um atentado, já que não houve abordagem e nenhum bem foi levado do repórter.
Já Sérgio Luiz de Andrade, presidente da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), afirmou à emissora que trata-se de ‘tentativa de intimidação e de constrangimento da liberdade de imprensa’, e que o órgão exigirá a identificação dos culpados e sua punição.
Segundo Fabiano Angélico, coordenador de projetos da ONG Transparência Brasil, voltada ao combate da corrupção, a imprensa desempenha um papel fundamental no combate à corrupção. ‘É importante que esse caso não configure algo que permita que pessoas que cometem atos ilegais consigam se safar’, afirmou.
Para ele, a melhor forma de combate à corrupção é a prevenção, que se torna possível quando as pessoas têm conhecimento do que acontece.’
LITERATURA
Barraco literário agita famílias de autores famosos
‘Parente é serpente, e isso vale também para o mundo das letras. Dois casos recentes na Europa mostram que usar a família como fonte de inspiração pode dar boa literatura, mas também muita confusão.
Um barraco é francês e envolve o polêmico Michel Houellebecq. Quem já leu o autor de ‘Plataforma’ (Record) conhece sua prosa sofisticada, iconoclasta, hedonista e com gosto pelo chocante. No best-seller ‘Partículas Elementares’ (Sulina), uma mãe hippie e egoísta é negligente com o filho por causa de uma vida errante em comunidades bizarras e sexo livre com homens mais novos. É um retrato que o autor faz da própria mãe.
Agora, madame Lucie Ceccaldi, 83, resolveu se vingar. Acaba de lançar o livro de memórias ‘L’Innocente’ (a inocente, ed. Scali, 400 págs., 19,90, R$ 52 mais frete), em que parte para o contra-ataque. A polêmica mobilizou a imprensa do país. ‘Meu filho que vá se f. com quem ele quiser’, escreve madame. ‘Com Michel, pode-se voltar a conversar no dia em que ele vier a público com ‘Partículas Elementares’ na mão e disser: ‘Sou um mentiroso, impostor, fui um parasita (…) e peço perdão’.
Ceccaldi nasceu na Argélia e mora na ilha francesa Reunião, no Oceano Índico, onde Houellebecq nasceu em… 1958. Errado. Nasceu em 1956, corrige a mãe, que é anestesista de formação, foi militante comunista e narra no livro suas viagens pela África e Índia, entre outras aventuras e problemas de saúde. E que, de fato, relegou o filho na infância para ser criado pelas avós, como ‘Partículas…’ retrata (Houellebecq adotou o sobrenome da avó paterna).
O ‘enfant terrible’ da literatura gaulesa, que deixou o país para fugir das polêmicas (uma delas religiosa, que lhe valeu um processo) e vive em local incerto (ora diz que mora na Irlanda, ora na Espanha), por enquanto não se manifestou.
Hanif Kureishi
A outra confusão acontece do outro lado do Canal da Mancha e envolve Hanif Kureishi, que esteve na Festa Literária Internacional de Parati de 2003. Sua irmã Yasmin Kureishi aproveitou o lançamento do último livro do autor, ‘Something to Tell You’ (algo para te contar, Faber and Faber, 352 págs., 16,99 libras, R$ 55 mais frete), que trata de um psicanalista e suas memórias dos anos 70, para se queixar ao jornal ‘The Independent’ de que o irmão estava se excedendo ao passar uma imagem negativa da família, fartamente representada em seus roteiros e livros.
Para Yasmin, os pais são retratados de forma caricata em ‘O Buda do Subúrbio’ (Cia. das Letras), ‘para entretenimento do público e lucro dele’. Não é só. Um bêbado no filme ‘Minha Adorável Lavanderia’ seria ‘tio Omar’, e a própria Yasmin seria a aspirante a escritora frustrada do filme ‘The Mother’ (a mãe, de 2003). ‘Minha vida foi assassinada pela causa da arte’, diz Yasmin, que não conversa mais com o irmão.’
Marcos Augusto Gonçalves
Autor finta clichês e pega touro a unha
‘Com ‘Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil’, o professor de literatura da USP, músico e ensaísta José Miguel Wisnik aplica um chapéu nos clichês e preconceitos comumente associados ao esporte mais popular do mundo e parte em direção à meta: interpretá-lo em seus múltiplos significados e sentidos, desde o jogo propriamente dito, com sua gramática e tempo peculiares, aos fortes laços que veio a estreitar com a cultura brasileira, ganhando aqui desenho próprio, mais elíptico e não-linear.
Em 448 páginas, o autor enfrenta uma miríade de temas, personagens e situações, que vai do goleiro ao juiz, de Garrincha a Ronaldo, de Machado de Assis a Pelé, de Macunaíma a Parreira, de Gilberto Freyre à sociologia uspiana, sem esquecer as sugestões de Pier Paolo Pasolini, o cineasta italiano que viu prosa no futebol europeu e poesia no brasileiro.
Wisnik não usa para isso uma teoria geral que emoldure e prenda a bola num quadro de uma perspectiva só. Joga, como diz na entrevista ao lado, com dados estéticos, literários e psicanalíticos para fazer o que pedia aquela espanhola da marcha de Braguinha, cantada em coro, em 1950, no Maracanã -’pegar o touro a unha’.
O touro é o futebol, mas também o Brasil e as ambivalências das interpretações acerca de sua formação, de sua cultura e de seu futuro, ora a enfatizar suas potencialidades negativas, ora as positivas, num arco que vai do entusiasmo profético com a nação às afirmações derrisórias sobre seus fracassos.
Interpretações do Brasil
Veneno remédio é uma idéia contida na palavra grega ‘fármacon’, poção que pode curar ou matar. É a ‘força que revira em seu contrário, o mesmo que se transforma em outro, o avesso do avesso’, escreve Wisnik.
Nas visões clássicas sobre o Brasil, discutidas no capítulo mais teórico do livro, o que é veneno para um torna-se remédio para outro. Aquilo, por exemplo, que na sociologia uspiana é uma fórmula quase fatal -os efeitos e defeitos da colonização escravista portuguesa na periferia capitalista-, vira remédio na reversão de Gilberto Freyre, que aposta no desqualificado povo miscigenado e lança a mestiçagem como novidade civilizatória.
Embora inspire-se na cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, na dialética da malandragem de Antonio Candido e no Brás Cubas de Machado de Assis (com seu emplasto que mata quando deveria ser panacéia), é com o autor de ‘Casa-Grande & Senzala’ que o conceito de veneno remédio parece ganhar amplitude na análise de Wisnik, dando-lhe mais gás para fintar a sociologia convencional de esquerda e falar, de maneira imaginosa, inteligente, não raro poética, sobre as interpenetrações de escravidão, futebol e cultura no Brasil.
Fino para não entrar de sola, o autor também sabe ir duro na bola, rechaçando investidas como as do filósofo Paulo Arantes que, em seu ‘júbilo hipercrítico’, procura ‘reduzir em massa a singularidade brasileira à sintomatologia do ‘cronicamente inviável’.
Freyre, em campo oposto, realizaria uma inversão que já estava configurada no modernismo -’devorar a dimensão assustadora do outro, transformar ‘tabu em tótem’, virar o recalque de ponta-cabeça e converter os próprios entraves traumáticos da formação brasileira em fermento libertador’.
É o mestre de Apipucos (que ainda desperta resistências uspianas) quem aponta a submissão do ‘anguloso futebol anglo-saxão’ ao ‘adoçamento curvilíneo’ do futebol brasileiro, que realiza uma promessa de felicidade talvez sem paralelo em outras esferas da vida do país.
VENENO REMÉDIO
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (448 págs.)’
TELEVISÃO
Lázaro Ramos amplia foco de seu ‘Espelho’
‘Outros reflexos se fixam no ‘Espelho’ de Lázaro Ramos na terceira temporada do programa, que o Canal Brasil apresenta a partir desta segunda. Inicialmente centrada na discussão da cultura negra e de questões raciais a partir da sabatina de artistas, a atração amplia seu foco na nova leva de episódios: ‘A idéia agora é contemplar outros setores da sociedade que não só o cultural, de produção artística. Falamos sobre tecnologia, saúde, trabalho infantil. Além disso, não temos compromisso fixo com os temas raciais do país. Não há conceito sociológico, antropológico de pensamento racial’, explica o ator, que acumula aqui as funções de apresentador.
Os 22 capítulos da atual safra trazem entrevistas com Tom Zé, Nei Lopes, Elza Soares e Celso Athayde (coordenador nacional da Central Única das Favelas) e o desembargador Siro Darlan, entre outros. A eles se juntam figuras anônimas -sugestão dos espectadores.
Em um dos programas, Ramos vai atrás de ‘quem trabalha servindo’ e colhe histórias de um garçom, uma balconista, um porteiro e uma empregada doméstica. Noutro episódio, o apresentador decide acompanhar o dia da primeira pessoa com quem esbarra na rua após conversar com um filósofo sobre Nietzsche e o acaso. A estréia de ‘Espelho’ coincide com a reta final da novela ‘Duas Caras’, em que ele encarna o bom moço Evilásio.
‘Herói romântico, em novela, realmente é chato. Mas esse era ativo, lutou contra o preconceito, contra a ditadura que Juvenal Antena [o personagem de Antonio Fagundes] queria implantar na favela. Foi importante para discutir que tipo de poder e de líder queremos’, diz.
Em junho, ele começa a gravar, em Salvador, os seis episódios da série de TV ‘Ó Paí, Ó’, desdobramento do filme de Monique Gardemberg. O programa deve ir ao ar na Globo, no segundo semestre. No cinema, ele capta recursos para sua estréia na direção, o curta ‘Um Real’, ‘sobre um baiano que não se adequa ao jeito baiano’.
ESPELHO
Quando: segunda, dia 19, às 21h30
Onde: no Canal Brasil’
Priscila Pastre-Rossi
Produção traz Egito além das pirâmides
‘Para se alimentar, frutas, legumes, verduras, trigo e cevada.
Para grandes comemorações, banquetes regados a vinho e apresentações de músicos e dançarinos. Para manter a forma, boxe, esgrima e corridas.
A descrição pode parecer de costumes de qualquer sociedade do nosso tempo, mas data de quase 4.500 anos atrás.
Ao descortinar a vida às margens do rio Nilo, o documentário ‘O Egito na História’, que estréia amanhã no Discovery Channel, desmistifica muito do que é divulgado sobre o tempo dos faraós.
Em 60 minutos, o arqueólogo Zahi Hawass mostra e detalha cada uma das que considera as ‘dez mais importantes descobertas’ feitas no país nos últimos 200 anos, como o tesouro de Tutankamon.
Mas o que faz deste um ótimo documentário é a preocupação em revelar detalhes íntimos daquela sociedade, principalmente seus costumes.
Alguns deles eram parecidos com os nossos, outros nem tanto: as plantações dependiam das inundações do Nilo; as corridas eram em volta das pirâmides; as caçadas mais comuns eram a crocodilos e os jogos de tabuleiro eram baseados na passagem dos mortos para o submundo.
O EGITO NA HISTÓRIA
Quando: estréia amanhã, às 20h
Onde: Discovery Channel’
CANNES
Woody em férias
‘Em 2002, Woody Allen abriu o Festival de Cannes com ‘Dirigindo no Escuro’, uma comédia de erros sobre um cineasta (o próprio Allen) que sofre de uma cegueira temporária, mas, ainda assim, consegue rodar um filme. A piada final parecia ter sido feita sob encomenda para Cannes: o caótico filme rodado pelo homem cego fracassa nos EUA, mas cai nas graças da crítica francesa -e o cineasta muda-se, feliz da vida, para Paris.
Ironia ou não, seis anos depois Allen está de volta a Cannes com seu quarto filme realizado na Europa. Depois de três histórias situadas em Londres (‘Match Point’, ‘Scoop’ e ‘O Sonho de Cassandra’, em cartaz no Brasil), ele agora aponta a câmera para a arquitetura de Barcelona, onde encena um qüiproquó amoroso estrelado pela sua atual favorita, Scarlett Johansson, a novata Rebecca Hall e os atores espanhóis Javier Bardem e Penélope Cruz.
É difícil saber ao certo, no entanto, até que ponto essa fase européia de Allen, que começou em 2005, é fruto de uma necessidade artística real ou apenas de uma combinação de oportunidades. Fato é que o diretor, como tantos outros cineastas americanos, vinha encontrando imensas dificuldades para viabilizar seus filmes nos Estados Unidos, e, a partir de determinado momento, resolveu aproveitar sua fama na Europa e acompanhar o fluxo dos financiamentos possíveis que mantivessem o intenso ritmo de cerca de um longa-metragem por ano.
Evidentemente, Allen tem todo o direito de filmar como e onde quiser e com o financiamento que for, mas o fato é que ‘Vicky Cristina Barcelona’, bem mais do que seus trabalhos londrinos, ficou com um jeitão de filme de conveniência, tantas são as obviedades em torno dos contrastes entre a cultura européia e a americana que desfilam pela tela. Mais incômoda ainda é a visão de uma suposta latinidade espanhola, mas da qual Allen nada parece compreender.
Colorido demais
Com Nova York, que durante tantos anos foi a casa e o cenário de seus filmes, Londres compartilha a língua e um certo ar cinzento -dois aspectos que passam longe da originalidade colorida de Barcelona. A câmera de Allen parece um peixe fora d’água na cidade de Gaudí e Miró, o que não seria, por si só, um problema maior, pelo menos se ele soubesse explorar seu olhar estrangeiro a favor da história que quer contar.
Mas não é o que acontece.
Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) são duas jovens amigas americanas com visões completamente diferentes sobre o amor. Elas desembarcam de férias em Barcelona e conhecem um pintor libertário e sedutor, interpretado por Javier Bardem.
De casamento marcado com um americano com cara de relógio parado, Vicky tenta resistir às investidas do pintor, mas acaba apaixonando-se secretamente por ele depois de uma noite furtiva. Já Cristina, que logo se entrega, acaba vivendo um affair a três com ele e sua ex-mulher, interpretada por Penélope Cruz. (Não espere as tão faladas cenas de sexo ousadas, que se limitam apenas a uns beijinhos e olhe lá).
O olhar que Woody Allen lança sobre Barcelona é simplesmente preguiçoso. Ele garante, no material de divulgação, que a cidade é um personagem à parte de seu filme -mas a afirmativa parece apenas protocolar, já que o que se vê na tela não vai muito além de pontos turísticos que são visitados pelos personagens.
Com uma narração em off exagerada, que compromete o ritmo da comédia, e algumas situações repetitivas, ‘Vicky Cristina Barcelona’ dá saltos imensos quando entram em cena os dois personagens excêntricos: primeiro, o pintor vivido por Bardem, e, mais tarde, sua ex-mulher ciumenta e explosiva, interpretada por Penélope Cruz. Ela, no entanto, dá muito mais sorte do que ele. Logo o personagem de Bardem torna-se um tanto enfadonho e pouco coerente, enquanto a personagem de Cruz, alucinada, consegue ter uma vida que vai um pouco além de uma mera peça de xadrez que se movimenta para a história caminhar -e garante os bons momentos de comédia que o filme tem.
VICKY CRISTINA BARCELONA
Avaliação: regular’
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