Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folha de S. Paulo


PROPAGANDA ELEITORAL
Folha de S. Paulo


Volta à censura


‘É DIFÍCIL acreditar que, 20 anos depois de aprovada uma Constituição democrática no país, o princípio básico da liberdade de expressão ainda se veja sob o foco de ataques e ameaças. Eles surgem, entretanto, de vários lados, assumindo por vezes requintes de casuísmo.


Entrevistada pela Folha, uma promotora declarou nesta semana que jornais e revistas estão atualmente impedidos de entrevistar um candidato à prefeitura a respeito de propostas de governo; que se contentem em perguntar-lhe, por exemplo, ‘se gosta de cachorro, gosta de boxe, gosta de rock-and-roll’.


Foi esta a mentalidade que orientou uma sentença em primeira instância contra a revista ‘Veja’ e esta Folha, que entrevistaram postulantes às eleições municipais. O jornal ‘O Estado de S. Paulo’ se vê às voltas com idêntica investida.


Casos semelhantes ocorrem em outras regiões do país, segundo dados coligidos pelo Knight Center for Journalism, da Universidade do Texas. Numa cidade de Santa Catarina, um jornal foi multado por estampar a foto de um vereador, que usava uma camiseta pedindo votos para um candidato. Em Minas, os quatro jornais de um município foram instados por um promotor a não publicar os nomes dos postulantes à prefeitura.


Sem dúvida, cabe à Justiça zelar pelo cumprimento da legislação eleitoral, que regula a propaganda dos candidatos. Neste âmbito se inscrevem a realização de comícios, a publicação de anúncios pagos na imprensa, o uso do horário gratuito. Nada disso se confunde com a atividade jornalística -a menos que se queira a volta da censura no país.


Não apenas sobre jornais e revistas, mas também sobre a internet, o casuísmo regulatório se apresta a abusos inaceitáveis. Consultado sobre o tema, o Tribunal Superior Eleitoral preferiu não emitir regras genéricas, como sobre a eventualidade de blogueiros e participantes de grupos de discussão manifestarem apoio a candidatos. Irá analisar, caso a caso, os diferendos que vierem a ocorrer.


Nem por isso o delírio normativo se vê refreado. Nesta sexta-feira, os presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais decidiram recomendar que mensagens de texto por celular (os chamados ‘torpedos’) sejam proibidos na semana das eleições.


Os ‘spams’ também estão sob suspeita; como impedir, entretanto, que um cidadão manifeste suas preferências e aversões políticas a um grupo indeterminado de destinatários? Pode-se, em tese, punir apenas o candidato que se beneficie de tais mensagens. Como saber, então, se não foi o seu rival quem as emitiu?


O progresso tecnológico tende, felizmente, a tornar anacrônicas as iniciativas desse gênero. Não é apenas anacrônica, mas sim atrasada e obscurantista, entretanto, a mentalidade de quem, a pretexto de regulamentar a propaganda, atinge no seu cerne a liberdade de expressão.’


 


Miguel Reale Júnior


Mordaça judicial


‘ENTREVISTA com a pré-candidata Marta Suplicy foi publicada na Folha de 4 de junho. O jornal e a pré-candidata foram condenados ao pagamento de multa pela Justiça Eleitoral, que considerou haver propaganda antecipada, antes da data permitida. A sentença condenatória fundamentou-se na ofensa ao princípio da igualdade e na extemporaneidade da ‘propaganda’. A sentença assevera que os concorrentes a cargos eletivos ‘devem contar com as mesmas oportunidades’.


No condicional, supôs que a ‘publicação de entrevista em mídia escrita poderia violar a igualdade entre os pré-candidatos, ao permitir que um deles expusesse, antes dos demais e fora do período permitido, sua pretensão de concorrer ao cargo, sua plataforma de governo, enaltecendo suas qualidades e realizações passadas, criticando as ações do atual governo e imputando qualidades desfavoráveis aos adversários’.


No conflito de princípios entre a liberdade de manifestação de pensamento e a igualdade de oportunidades para os pré-candidatos, deve prevalecer, segundo a sentença, o da igualdade, ao vedar entrevista em mídia escrita para a realização de propaganda no período pré-eleitoral, malgrado o inquestionável interesse público da matéria.


Ao ver do juízo, a matéria exorbitou do mero interesse jornalístico, a ponto de caracterizar propaganda eleitoral extemporânea, pois, em mensagem direta ao eleitorado, propagou a entrevistada ser a mais preparada, com as melhores propostas, configurando-se típica propaganda direta e extemporânea, dirigida a todos os eleitores.


O jornal foi condenado por haver elaborado perguntas propiciadoras de respostas que caracterizaram propaganda eleitoral, além de escolher as manchetes, de claro conteúdo propagandístico: ‘Quero reconquistar a classe média que eu perdi em 2004’. Tudo segundo aquele juízo.


Na verdade, o juiz titubeia: ora fundamenta a decisão na afronta à igualdade, ora no fato de a entrevista ter sido publicada antes do prazo, considerando-a um ato de propaganda. Fica-se a perguntar: se a entrevista fosse ao período de propaganda, seria de somenos a afronta à igualdade? Se assim for, o relevante seria apenas ter havido propaganda antecipada, desde que se julgue a entrevista como ato de propaganda.


Primeiro, não há afronta à igualdade: um jornal, no interesse de informar para atender ao direito de ser informado, não pode ser coartado, em estreita visão legalista, a tratar identicamente todos os pré-candidatos, concedendo-lhes página inteira, como se a realidade não trouxesse diferenças intransponíveis de qualidade e de importância dos pretendentes.


Como atender a essa propalada igualdade? Dedicando, no mesmo dia, um caderno a entrevistas com todos os possíveis pré-candidatos? Ora, a entrevista com um não impede no futuro que outro pré-candidato representativo seja entrevistado. No caso, portanto, colocar a igualdade acima da liberdade de manifestação e do direito de informar é instaurar, por vias transversas, a censura.


Por outro lado, a entrevista nem de longe se assemelha à propaganda. A entrevista em tela girou em torno de assuntos diversos do jogo político, muitas vezes de forma constrangedora e provocativa à entrevistada, longe da finalidade de constituir promoção da pré-candidata, que pode, vez ou outra, ter puxado a sardinha para a sua brasa, mas nem por isso a ponto de transformar o debate em propaganda. Impedir o questionamento amplo, como o ocorrido nessa entrevista, é instalar o obscurantismo e matar a vida política.


Como deveria, ao ver do juiz, ser uma entrevista nada promocional, não dirigida aos eleitores em geral? O jornal deveria alertar para que cuidasse em não se promover e não se voltar aos eleitores ao responder, por exemplo, sobre a prioridade de sua nova gestão ou se o presidente Lula a apoiaria. A entrevistada deveria, então, dizer: ‘impossível responder sobre prioridade sem me dirigir aos eleitores em geral, pois estaria a fazer propaganda. Igualmente, não posso responder, diante da popularidade do presidente, se ele me apoiaria ou não’. Talvez essa entrevista fosse aprovada pela Justiça Eleitoral.


De outra parte, a condenação do jornal por ter feito pergunta que permitiu à entrevistada falar em seu próprio favor é ver o texto, não o contexto, é estabelecer uma co-autoria fundada na responsabilidade objetiva.


Como se vê, a decisão fugiu do bom senso, da prudência, do respeito ao embate de idéias no processo eleitoral. Enterrou-se a política como inteligência para transformá-la em mera medição aritmética.


MIGUEL REALE JÚNIOR , 64, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Paulista de Letras. Foi secretário da Segurança Pública (governo Montoro) e da Administração (governo Covas) do Estado de São Paulo e ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso.’


 


Frederico Vasconcelos


Interpretação da lei eleitoral muda muito, diz procurador


‘‘A Justiça Eleitoral dá uma determinada interpretação hoje, daqui a dois meses muda’, diz o procurador regional eleitoral de Minas Gerais, José Jairo Gomes, 40. Ele é autor do livro ‘Direito Eleitoral’, citado na sentença que condenou a Folha pela entrevista com a pré-candidata Marta Suplicy.


No caso da internet, ele afirma que ‘a ausência de regras, esse vácuo legislativo, deixa as pessoas sem saber o que fazer’.


Gomes avalia que, no caso da entrevista da ex-ministra do Turismo, a representação da Promotoria Eleitoral não foi ‘indevida’, pois ela não pediu votos mas lançou propostas. Ex-promotor de Justiça, Gomes é doutor e professor de direito civil da Universidade Federal de Minas Gerais.


FOLHA – Por que a internet é um espaço interditado nas eleições?


JOSÉ JAIRO GOMES – A internet não é um espaço interditado. Ela não sofreu ainda uma regulamentação do legislador nem o TSE se pronunciou definitivamente. O candidato pode abrir uma página na internet, mas só a partir de 6 de julho. Porque a lei veda a propaganda eleitoral antes dessa data.


FOLHA – A internet foi equiparada ao rádio e à televisão, mas ela não é uma concessão pública…


GOMES – A internet tem uma capilaridade muito grande. O problema não é o fato de não ser concessão. O cinema é um bem particular. Mas é vedada a realização de propaganda no cinema, local de acesso público.


FOLHA – Sendo a internet um veículo tão democrático e acessível, onde estaria o risco de desequilíbrio?


GOMES – Um grupo econômico com interesse de colocar no poder um determinado segmento poderia manipular, controlar os portais e deixar de fora outros candidatos. É impossível que as pessoas tenham tratamento igual. A lei procura equilibrar a disputa pelo poder.


FOLHA – Quais serão os limites das comunidades virtuais?


GOMES – É uma grande interrogação. Porque o TSE não traçou limites. Isso não significa que se pode fazer tudo. A propaganda extemporânea é vedada. Se um pré-candidato manda spams, vai ser caracterizado como propaganda extemporânea.


FOLHA – Uma entrevista com um pré-candidato é de interesse público. O jornal terá que perguntar sobre temas como raças de cachorros?


GOMES – Um pré-candidato notório evidentemente não vai recitar os poemas de Camões. Vai falar de política. O problema não é a entrevista. Há um dispositivo que permite à imprensa escrita dar a sua opinião. Quando se trata de pré-candidato, a propaganda só pode ser feita a partir do dia 6 de julho.


FOLHA – Mas aí se está admitindo que a entrevista é propaganda.


GOMES – Não necessariamente. O pré-candidato pode opinar sobre a política em geral. Não pode é lançar a candidatura.


FOLHA – O sr. leu a entrevista de Marta Suplicy, na Folha?


GOMES – Li.


FOLHA – O sr. acha que houve abuso? Ela fez pedido de voto?


GOMES – Ali não é propriamente pedido de voto. Na Justiça Eleitoral, muitos entendem que pode haver propaganda extemporânea sem pedido de voto, quando o pré-candidato expõe os seus projetos.


FOLHA – Supondo uma entrevista igual, o sr. entraria com ação?


GOMES – Eu tenho a impressão de que a representação aí não é indevida. Na entrevista dela, ela lança propostas. Há decisões que condenam essa prática e decisões que dizem que isso não seria irregular.


FOLHA – Qual dispositivo legal define temas proibidos aos jornais?


GOMES – Na verdade, a lei não especifica os temas. O que é propaganda eleitoral? Quando a gente pesquisa na Justiça, encontra condutas bastante semelhantes a essa que foi veiculada sendo considerada como propaganda. Então, se faz um raciocínio por analogia.


FOLHA – O jornal alega que se trata de uma censura inaceitável.


GOMES – Desconheço os detalhes do caso. Tenho a impressão de que censura é uma palavra um pouco forte. Para que haja uma sanção, é preciso que haja um processo. As pessoas se defendem. Vejo isso como uma manifestação democrática.


FOLHA – Seu livro foi citado na sentença por tratar da igualdade de oportunidades. O jornal teria que repetir o horário eleitoral, com anúncios classificados dos candidatos?


GOMES – Houve esse problema também na regulamentação dos debates. Houve intervenção da Justiça Eleitoral para dizer que todos os candidatos precisam estar representados.


FOLHA – O jornal entrevistou outros pré-candidatos.


GOMES – O problema é outro. É o momento. Agora, esse tema não poderia ser veiculado.


FOLHA – A citação de seu livro na sentença trata da igualdade.


GOMES – É porque não há ainda um candidato. Quando um pré-candidato tem projeção, a situação dele, para ser escolhido na convenção, fica fortalecida. Pode haver outro pré-candidato sem o mesmo destaque.’


 


Clóvis Rossi


O braço armado da obra


‘SÃO PAULO – Durante o regime militar, setores da esquerda acusavam as Forças Armadas de serem ‘a guarda pretoriana da burguesia’ (ou da oligarquia, ao gosto do freguês). Diga-se, aliás, que essa acusação era generalizada na América Latina, quase toda ela tomada por governos militares.


É chocante que, na democracia, a frase (ou ao menos uma adaptação dela) perca o seu caráter de propaganda ideológica para se converter em mera descrição de um fato real.


O Exército, ainda por cima com aval da Justiça, transformou-se em guarda pretoriana de uma obra, no Rio de Janeiro, de indiscutível cunho eleitoral e partidário (em benefício do senador Marcelo Crivella, candidato à Prefeitura do Rio).


Duplamente chocante, aliás. Primeiro, há o fato de que o poder público assume explicitamente que é incapaz de realizar uma obra em um ponto central da cidade-vitrina do Brasil sem precisar recorrer a uma força armada que, ademais, não é a força armada que constitucionalmente responde pela segurança dos cidadão.


Entre parêntesis: se a entrevista de Marta Suplicy à Folha foi considerada pelos procuradores uma violação da ‘igualdade de oportunidades’ que deveria primar em campanhas eleitorais, por que outros procuradores não representam contra o Exército por violar idêntica norma, ao proteger obras de um único candidato?


Fecha parêntesis para passar ao segundo aspecto chocante: a entrada do Exército como protetor de uma obra se dá em um governo, o de Luiz Inácio Lula da Silva, no qual abundam ex-esquerdistas, muitos dos quais abusavam da frase citada no primeiro parágrafo.


Alguma surpresa, ante a metamorfose ambulante dessa gente, que o noticiário político tenha virado noticiário policial, envolvendo quase sempre partidos da base aliada ao governo, como, de resto, no caso da obra no Rio?’


 


CRIME NO RIO
Eliane Cantanhêde


Co-autor sem autor


‘BRASÍLIA – Uma velha brincadeira ilustra bem o, digamos, espírito do jornalismo: quando um cachorro morde um homem, não é notícia; mas, quando um homem morde um cachorro, dá primeira página!


Atualizando: quando traficantes dos morros se matam uns aos outros, isso é rotina, não comove ninguém. Mas, quando 11 militares do Exército entregam jovens desarmados para serem trucidados por marginais, vira manchete.


O governo acredita que houve um ‘crime premeditado’. Antes de ‘desovar’ os jovens vivos nas mãos de assassinos do morro da Mineira, o tenente Vinícius Ghidetti consultou um soldado que mora por ali para saber onde estavam os maiores inimigos deles no pedaço. Ou seja: onde os três seriam estraçalhados com mais volúpia.


Dos 11 militares, 4 já estão com prisão preventiva decretada por 30 dias e deverão ser julgados como ‘co-autores’ de assassinato. Isso, porém, cria uma situação inusitada: será um crime com ‘co-autores’, mas sem ‘autores’?


Porque todos -Exército, delegado, movimentos de direitos humanos, opinião pública e imprensa- só se preocupam e investigam o passo a passo dos 11 militares até os três corpos aparecerem num lixão. Mas ninguém fala, e aparentemente não investiga, quem apertou o gatilho e disparou os 46 tiros.


Discutem-se a psicologia do tenente, a formação de oficiais, o projeto político Cimento Social num ano de eleições e o uso das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Mas não se debate o chamado ‘cerne da questão’: a guerra urbana que se alastra pelo país.


O fato novo (o homem que morde o cão) foi o envolvimento da farda, com militares se igualando a bandidos e negociando chacinas com eles. Mas o fato velho (pitbulls e rottweilers mordendo homens, mulheres e crianças) é tão crônico nas favelas e periferias que não emociona mais. Caiu na vala comum. E parece não ter solução.


 


Maria Rita Kehl


O impensável


‘O INIMAGINÁVEL acontece. Supera nossa capacidade de prever o pior. Conduz-nos até a borda do real e nos abandona ali, pasmos, incapazes de representar mentalmente o atroz. O pior pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não encontrar quem acreditasse no horror do que ele tinha a contar.


Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós. Penso no assassinato dos cidadãos cariocas David Florêncio da Silva, Wellington Gonzaga Costa e Marcos Paulo da Silva por 11 membros do Exército encarregados de proteger os moradores do morro da Providência. Assassinados por militares, sim, pois não há diferença entre executar os rapazes e entregá-los à sanha dos traficantes do morro rival. A notícia é tão atroz que o leitor talvez tenha se inclinado a deixar o jornal e pensar em outra coisa.


Não por insensibilidade ou indiferença, quero crer, mas pela distância social que nos separa deles, abandonamos mentalmente os meninos mortos à dor de seus parentes. Abandonamos os familiares que denunciaram o crime às possíveis represálias de outros ‘defensores da honra da instituição’. Desistimos de nossa indignação sob o efeito moral das bombas que acolheram o protesto dos moradores do Providência.


Nós, público-alvo do noticiário de jornais e TV, que tanto nos envolvemos com os assassinatos dos ‘nossos’, viramos a página diante da morte sob tortura de mais três rapazes negros, moradores dos morros do Rio de Janeiro. É claro que esperamos que a justiça seja feita. Mas guardamos distância de um caso que jamais aconteceria com um de nós, com nossos filhos, com os filhos dos nossos amigos.


O absurdo é uma das máscaras do mal: tentemos enfrentá-lo. Façamos o exercício de imaginar o absurdo de um crime que parece ter acontecido em outro universo. Como assim, demorar mais do que cinco minutos para esclarecer a confusão entre um celular e uma arma? E por que a prisão por desacato à autoridade? Os rapazes reclamaram, protestaram, exigiram respeito -ou o quê? Não pode ter sido grave, já que o superior do tenente Ghidetti liberou os acusados.


Mas o caso ainda não estava encerrado? O tenente, que não se vexa quando o Exército tem que negociar a ‘paz’ no morro com os traficantes, se sentiu humilhado por ter sido desautorizado diante de três negros, mais pés-de-chinelo que ele? Como assim, obrigá-los a voltar para o camburão -até o morro da Mineira? Entregues nas mãos dos bandidos da ADA em plena luz do dia, como um ‘presentinho’ para eles se divertirem? Era para ser ‘só uma surra’? Como assim?


Imaginaram o desamparo, o desespero, o terror? Não consigo ir adiante e imaginar a longa cena de tortura que conduziu à morte dos rapazes. Mas imagino a mãe que viu seu filho ensangüentado na delegacia e não teve mais notícias entre sábado e segunda-feira. E que depois reconheceu o corpo desfigurado, encontrado no lixão de Gramacho. Imagino a cena que ela nunca mais conseguirá deixar de imaginar: as últimas horas de vida de seu menino, o desamparo, o pânico, a dor. ‘Onde o filho chora e a mãe não escuta’ era como chamávamos as dependências do Doi-Codi onde tantos morreram nas mãos de torturadores.


Ainda falta imaginar a promiscuidade entre o tenente, seus subordinados e os assassinos do morro da Mineira: o desacato à autoridade é crime sujeito a pena de morte e a tortura de inocentes é objeto de cumplicidade entre traficantes e militares? Claro, os traficantes serão mortos logo pelo trabalho sujo do Bope. Se outros cidadãos morrerem por acidente, azar; são as vicissitudes da vida na favela.


Quando membros corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em Queimados, houve um pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas ruas, familiares dos mortos, nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até lá. Nenhuma Viva Rio reuniu gente de branco a marchar em Ipanema. Ninguém gritou ‘basta!’ na zona sul. Não é a mesma cidade, o mesmo país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com eles.


Não haverá um freio espontâneo para a escalada da truculência da Polícia e do tráfico, nem para o franco conluio entre ambos (e, agora, membros do Exército) que vitima, sobretudo, cidadãos inocentes. Não haverá solução enquanto a outra parte da sociedade, a chamada zona sul -do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do país-, não se posicionar radicalmente contra essa espécie de política de extermínio não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros pobres do Rio.


MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta, autora do livro ‘Sobre Ética e Psicanálise’ (Cia. das Letras, 2002).’


 


DESPEDIDA
Antônio Ermírio de Moraes


Aos meus leitores


‘DEUS ME DEU a graça de completar 80 anos no dia 4 de junho passado. São oito décadas de vida e seis de trabalho. Nessa caminhada, esforcei-me para colaborar, ainda que modestamente, para a construção de um Brasil melhor.


É dessa forma que pretendo continuar. Os projetos sociais me empolgam tanto quanto as expansões empresariais, em especial os que dizem respeito à educação e à saúde. São áreas que me fascinam.


Dediquei quase 20 anos a esta coluna, comparecendo todos os domingos com artigos que despretensiosamente visaram suscitar debates para aperfeiçoar as nossas instituições. Foram quase 900 artigos.


Pretendo continuar colaborando com este jornal, mas de uma maneira pontual (talvez mensalmente). É uma forma de reduzir a carga, ou, como queiram, é um presente que dou a mim mesmo pelos 80 anos de idade.


Ao completar esta fase de artigos domingueiros, desejo expressar o mais sincero agradecimento aos amáveis leitores, de quem, semanalmente, recebi cartas e e-mails repletos de comentários. Alguns exageradamente elogiosos; outros dolorosamente críticos; mas todos instrutivos.


Confesso gostar do debate.


Aprendo muito com ele. E, por isso, espero continuar a merecer a atenção dos que vierem a ler meus escritos, ainda que com menos freqüência.


A Folha de S.Paulo tem sido muito generosa. Para qualquer brasileiro, é um superior privilégio poder ter suas idéias divulgadas por um jornal de grande circulação, corajoso, confiável e patriótico -virtudes que foram a base da filosofia do meu saudoso amigo Octavio Frias de Oliveira.


O convite que dele recebi em 1991 para escrever aos domingos tocou fundo o meu coração. O início foi difícil. Demorava para pesquisar e mais ainda para redigir.


Mas peguei gosto. E dos artigos acabaram saindo livros e peças de teatro -projetos jamais pensados por quem se formou em engenharia.


Com Otavio Frias Filho o convívio continuou agradável e respeitoso. Ele está levando avante, com brilho crescente, o sonho de seu pai, o que me dá muita alegria e oportunidade de cumprimentá-lo.


A equipe da Folha -jornalistas, técnicos e funcionários- sempre foi tolerante e atenta para corrigir os meus escorregões de escritor amador. Deixo aqui o meu sincero muito obrigado, prometendo lhes dar menos trabalho ao passar a escrever de forma mais espaçada.


A todos, até breve.’


 


ENTREVISTA / FHC
Roberto Dias


Melhores quadros vão para o mercado, não para a política


‘Fundador do PSDB, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso preferia que a aliança entre tucanos e democratas em São Paulo não fosse desfeita. Mas diz entender as razões de Geraldo Alckmin e não ver dificuldade em montar um discurso de campanha para concorrer na disputa contra Gilberto Kassab. ‘Vai dizer: o que já foi feito de mudança, vou fazer mais’, diz FHC, 77 anos completados na semana passada.


FOLHA – O que o PSDB cumpriu do que se propôs a fazer na fundação e o que não conseguiu?


FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – O programa daquela época era um programa no qual estávamos tateando o que veio a ser a globalização, a necessidade de o Brasil se inserir no mundo, aquilo que o Mario [Covas] chamou de ‘choque de capitalismo’. Avançamos bastante nisso. Não fomos só nós, mas o impulso inicial de quebra de uma tradição nós demos. E na reforma do Estado. Não está completa, mas, se alguém reformou esse Estado patrimonialista que nós temos, foi o PSDB. E iniciamos, bem ou mal, uma coisa que hoje é atribuída ao PT: os programas sociais. Uma parte da programação nós cumprimos. O que faltou? Falta muita coisa, porque hoje existe uma tal desconexão entre a vida política e o cotidiano das pessoas que é difícil fazer aquilo que era nosso sonho, um partido que tivesse uma inserção mais sólida na sociedade.


FOLHA – Como alcançar isso?


FHC – Não é uma questão só do Brasil. É global, sociológica, a sociedade de massa e o avanço das forças de mercado se deram de tal maneira que o papel que os partidos exerciam no passado como polarizadores e condutores, eles perderam muito, não só no Brasil. Isso não quer dizer que a sociedade não tenha avançado bastante nos seus próprios pés, de uma maneira que -visto aos olhos do que pensávamos há 30 anos- é sem política, sem partido político.


Será que é um mal? Acho que o mal é quando você não tem partidos políticos capazes de propiciar pelo menos um quadro geral de referência. Os partidos não incorporaram o tema do cotidiano. Os temas da vida do cidadão hoje cortam transversalmente a sociedade, não é de uma classe só. Todas sofrem com insegurança, poluição, com tráfego ruim. É o governo, qualquer governo, mas qual é a posição, como a sociedade é tocada por esse problema?


FOLHA – Tem algum partido caminhando nesse sentido?


FHC – Não acho. Acho que a discussão é muito…Vou dizer uma coisa que talvez seja quase impensável para mim mesmo há muito tempo: eu não agüento mais ler a parte política dos jornais. Tudo são fatos banais ou fatos policiais.


FOLHA – O sr. tem lido o quê?


FHC – Leio todos, mas eu salto, começo a ler e pulo. Porque não vai me acrescentar nada. Quero entender mais os quadros. A parte econômica é mais interessante, a de discussão educacional, a de meio ambiente.


FOLHA – O governo da social-democracia brasileira acabou ficando tachado como um governo de direita. Esse rótulo incomoda o sr.?


FHC – Isso aí é o rótulo dado pelo PT. O povo não pensa isso, não tem nem direita e esquerda, porque as categorias também ficaram vazias. O que não quer dizer que, conceitualmente, não existam uma direita e uma esquerda. E o PSDB, conceitualmente, não está à direita. O que significa estar à direita? Basicamente são os conservadores que não querem mudar e que não têm o sentido de igualdade, justiça. Acho que o PT é mais conservador que o PSDB. Porque muda menos o modo de fazer política. Voltou atrás, aliás. Deu mais força para as práticas tradicionais -não que elas tivessem acabado ou que o PSDB não tivesse incorrido nelas, mas tentava diminuir.


FOLHA – O programa atual do PSDB diz: ‘Nenhum partido vive dos feitos passados, vive do que realiza no presente e da visão de futuro que oferece’. O PSDB controla hoje cinco Estados. O que o partido pode dizer que realiza no presente?


FHC – No caso de São Paulo e de Minas, que são os que eu conheço melhor, acho que o impulso dado na educação é muito grande. Também na segurança, no caso de SP, é bastante notório que houve uma queda imensa na taxa de homicídio. Por outro lado, são partidos que, ao fazer isso, não se esquecem de, como há condições agora, investimentos grandes. O que está sendo feito em São Paulo em investimento no sistema de transporte é enorme.


FOLHA – Tirando esses dois casos de presidenciáveis, os três outros governadores enfrentam problemas bem graves: a crise no governo Yeda (RS), a denúncia da Procuradoria contra Teotonio Vilela Filho (AL) e a ameaça de cassação a Cássio Cunha Lima (PB). O PSDB tem dificuldade em encontrar novos quadros?


FHC – Todos os partidos têm tido essa dificuldade, que diz respeito ao que mencionei antes: a desconexão com a vida da sociedade. Os melhores quadros da sociedade vão para o mercado. Até para a área cultural. Não vão para a política. Essa dificuldade existe, é indiscutível.


FOLHA – Era assim quando o sr. entrou na política?


FHC – Não. Entrei na política partidária em função de uma luta contra o regime autoritário. Aquilo era um fator mobilizador. Os quadros da sociedade se jogaram na política. Depois houve a desconexão.


FOLHA – Nos últimos dias, enquanto o comando nacional do PSDB divulgava uma nota reduzindo a crise no governo Yeda a uma conspiração política, em SP a bancada tucana na Assembléia barrava investigação no caso Alstom. O partido não se enfraquece ao agir assim?


FHC – Não barrava investigação nenhuma. Não houve nada que pudesse dar razão para fazer uma CPI sobre o caso Alstom. O caso Alstom é a divulgação, na Europa, de que essa empresa teria dado alguma propina a alguns políticos. E pára por aí. Ninguém tem informação concreta. O resto é especulação. Você não pode fazer uma CPI na base da especulação. Não tem um elemento. Não sei se é o caso de CPI. O próprio governo deve ser o primeiro a se manifestar contra e punir.


FOLHA – E o governo Yeda?


FHC – Eu não acompanhei o caso da Yeda. O que eu vi foi o vice-governador tendo gravado uma conversa com alguém do governo Yeda que dizia que empresas estatais haviam financiado. Não se referia ao PSDB nem ao governo dela. Ela demitiu todo mundo. Então é uma atitude diferente.


FOLHA – O programa de criação do PSDB justificava assim a decisão de vocês, fundadores do partido: ‘O PMDB, ao qual cabia a maior parcela de responsabilidade pelos rumos da transição, sucumbiu lamentavelmente. Receoso de enfrentar suas divergências internas, deixou de tomar posição ou mesmo debater as políticas do governo a que deveria dar sustentação’. Isso não lembra muito a situação atual do PSDB no município de São Paulo?


FHC – É, eu acho que o caso do município de São Paulo é um teste para o PSDB. Vamos ver o que vai acontecer na convenção. Achava que estrategicamente deveríamos manter uma aliança. Mas isso dependia de que os líderes do partido aceitassem essa idéia. Pelo jeito, a preferência não foi essa. Ao não ser essa, acho que o partido tem que ter um comportamento partidário. Eu terei -ficar com o que for decidido na convenção. É difícil que a convenção decida contra ter um candidato próprio. Acho que o Alckmin tem direito de querer ser candidato. Entendo as razões dele. O partido não tem por que dizer: ‘Você não pode ser candidato’. Não querem que seja? Então vamos para a convenção.


FOLHA – O sr. costuma bater muito na importância de ter clareza no que defende. Como o partido vai poder fazer campanha na cidade de São Paulo concorrendo contra um governo do qual faz parte?


FHC – Aí não tem dificuldade não. A oposição tem que ser feita ao PT. Seria suicídio ficar lutando Geraldo contra Kassab, Kassab contra Geraldo. Os dois têm que lutar contra o PT.


FOLHA – Mas o sr. mesmo menciona a importância do discurso da mudança numa campanha. Alckmin não vai poder ter esse discurso.


FHC – Vai dizer: o que já foi feito de mudança vou fazer mais.


FOLHA – Uma linha de análise é que, se vitorioso, Alckmin fortaleceria a candidatura de Aécio ao Planalto. Isso faz sentido para o sr.?


FHC – Não foi o que ele disse a mim. Não sei nem se vai haver disputa entre Serra e Aécio. Se for definido que o candidato é o Serra, o Geraldo vai se alinhar nessa candidatura. Se for o Aécio, todos vamos nos alinhar. Ou faz isso ou não tem partido.


FOLHA – Qual o futuro da polarização PT-PSDB? Ela tem força para se enraizar de maneira semelhante à de republicanos e democratas nos EUA ou a comparação é inválida?


FHC – Não é infundada, porque a diferença entre democratas e republicanos nos assuntos principais é pequena. Mas é difícil, porque acho que PT e PSDB não esgotam as possibilidades do espectro político brasileiro. Pescam às vezes aliados no que se chama aqui de direita, que são os fisiológicos, e às vezes pescam no que eram os extremistas. O PT pesca nas duas alas, no clientelismo de direita, conservador, e no extremismo revolucionário. O PSDB pesca mais próximo ao centro, nos dois lados. Mas isso não completa um ciclo político. Tem espaço para um partido no sentido do DEM se consolidar, que é um partido de centro-direita, com visão moderna da economia, sem ser reacionário. Não acho que haja espaço no Brasil para um partido de direita.


FOLHA – Sobre essa ‘pescaria’, Ciro Gomes disse numa entrevista recente que tanto o sr. quanto Lula se acomodaram com o patrimonialismo.


FHC – Não me acomodei com patrimonialismo nenhum. Tentei diminuí-lo. E fiz. Criar mecanismos de Estado que fossem mais profissionais. Você não acaba com o clientelismo por um ato de vontade. Eu não sei se o Lula fez isso com tanto empenho. Agora, quem entende de patrimonialismo é o Ciro, no Ceará, com o irmão dele.


FOLHA – Desde Covas e Almir Gabriel, em 1989, o PSDB não tem uma chapa puro-sangue à Presidência. Chegou a hora de voltar a ter?


FHC – Eu gostaria.


FOLHA – Aécio tem falado sobre esse candidato ‘pós-Lula’. Como se definiria o espaço desse candidato?


FHC – Acho uma boa definição. Significa que você não tem que continuar a debater o que está fora de debate. A política macroeconômica está dada, a política social está dada, essas questões foram sendo assimiladas pela sociedade, parte feita pelo meu governo, parte pelo governo do Lula. E daí? Como é que vamos para frente?


FOLHA – A carga tributária aumentou no seu governo e ainda mais no de Lula. Ficou menos distante do nível de Suécia e Noruega, referências da social-democracia européia. Nesse aspecto, o caminho seria esse?


FHC – A carga tributária lá é muito alta. A diferença é outra: lá a qualidade dos serviços prestados é muito boa. Eu acho que uma social-democracia implica uma carga tributária elevada. A nossa passou dos limites. Você pode dizer que nós aumentamos. É verdade. Por quê? Porque acabamos com o maior imposto que beneficiava o governo, a inflação. Tivemos que enxugar dívida dos Estados, o que nos obrigava a ter uma carga maior. Agora acho que passou do limite. A melhoria da prestação de serviços não aumenta na proporção do aumento da carga. Estamos num momento em que é coerente ser social-democrata e dizer: pára.’


 


AMAZONAS
Folha de S. Paulo


Homem dispara tiros ocntra sede de jornal


‘A sede do ‘Diário do Amazonas’, em Manaus, foi alvo de atentado na madrugada de ontem. Ao menos três tiros foram disparados por um homem de moto contra o prédio. O jornal classificou a ação como atentado.’


 


ALEMANHA
Silvia Bittencourt


Acadêmicos alemães pedem liberação do livro de Hitler


‘Mais de 80 anos depois de ter sido escrito, o livro ‘Mein Kampf’ (‘Minha Luta’), do ditador nazista Adolf Hitler, volta a ocupar as páginas dos jornais alemães. Historiadores vêm reivindicando a liberação do livro, aqui proibido, com o objetivo de fazer e divulgar uma edição crítica do texto.


O livro, no qual Hitler expõe suas idéias anti-semitas, racistas e expansionistas, está proibido na Alemanha até 2015, quando serão completados 70 anos da morte do ditador (1889-1945). A partir dessa data, sua publicação está liberada.


Historiadores temem que, liberado, o livro caia nas mãos de neonazistas e se torne uma espécie de panfleto para organizações radicais de direita. Uma edição crítica, afirmam, chegaria antes aos leitores alemães.


A Baviera -Estado no sul do país onde Hitler viveu antes de subir ao poder- detém os direitos autorais. Ela proíbe a publicação integral do livro para impedir a propagação de idéias nazistas e a exploração comercial do texto do ditador.


Na opinião de várias autoridades alemãs, liberar ‘Mein Kampf’ também seria um desrespeito aos milhões de vítimas do regime nazista. Mas os historiadores alegam que outros textos de Hitler, como documentos, cartas e discursos, já foram publicados em edições comentadas, sem obstáculos.


Além disso, qualquer internauta consegue achar a versão online de ‘Mein Kampf’ na íntegra. Também não é difícil, aqui, adquirir o livro em antiquários, mesmo que isso aconteça por trás do balcão.


‘Este livro está envolto por uma aura, que precisa ser quebrada’, afirmou Stephan Kramer, secretário-geral do Conselho Central dos Judeus na Alemanha.


Maturidade


O escritor alemão Rafael Seligmann, que é judeu, também defende a liberação. ‘Nossa democracia é forte suficiente para não ter uma recaída. Liberar ‘Mein Kampf’ é um sinal de maturidade política.’


Apesar da proibição, o Instituto de História Contemporânea, em Munique, já vem preparando a edição revista do livro de Hitler. ‘Mas está totalmente indefinido quando ela será publicada’, disse à Folha o historiador Udo Wengst.


Uma edição comentada deverá trazer os manuscritos do autor, correções, perfis, mapas e estatísticas. Ela deverá mostrar, por exemplo, que o então jovem nazista tirou grande parte das idéias de outros autores, ‘vendendo-as’ como suas. Também deverá mostrar como assessores tentaram melhorar, ao longo das edições, o estilo repetitivo e confuso do ditador.


Os historiadores admitem que uma edição crítica de ‘Mein Kampf’ sairá cara para o leitor comum. Uma possibilidade, dizem, é colocá-la à disposição na internet ou lançar no mercado uma versão crítica mais simplificada.


Hitler começou a escrever ‘Mein Kampf’ em 1924, durante sua prisão na cidade de Landsberg, na Baviera, depois de liderar um golpe fracassado.


Publicado pela editora do Partido Nazista, o primeiro volume (1925) é uma espécie de autobiografia. No segundo (1927), Hitler formula sua ideologia racial e anuncia suas intenções de invadir outros países -o que acabou pondo em prática na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).


Logo após a publicação, os dez mil exemplares iniciais de ‘Mein Kampf’ venderam mal. Mas a partir de 1933, quando Hitler assumiu o poder, a vendagem do livro estourou, tornando seu autor milionário.


‘Mein Kampf’ foi, porém, um ‘best-seller forçado’, como escreveu em artigo o historiador Bernd Soesemann, da Universidade Livre de Berlim.


Prefeituras e administrações regionais, por exemplo, eram obrigadas a financiar milhares de exemplares, para depois presenteá-los a jovens recém-casados. Hitler também recebia, com edições especiais e comemorativas, pelo menos 10% de honorário.


Mais de 12 milhões de exemplares de ‘Mein Kampf’ foram impressos entre 1925 e 1945, quando a Alemanha perdeu a guerra e o livro passou a ser proibido. Ele foi traduzido em pelo menos 14 línguas. Temendo pela imagem da Alemanha, a Baviera tenta, há anos, impedir a publicação de ‘Mein Kampf’ no exterior. No Brasil, a editora Centauro informa que só comercializará o livro a partir de 2015.’


 


PUBLICIDADE
Cristiane Barbieri


Propaganda procura nova tática para atrair consumidor


‘A Coca-Cola está se tornando uma empresa de entretenimento. As bebidas e o estilo de vida alegre continuarão sendo vendidos, mas a empresa abrirá lojas e venderá produtos, episódios e jogos de sua Fábrica de Felicidade, a campanha publicitária que mostra o mundo dentro das ‘vending machines’ de Coca, com direito a dezenas de personagens e aventura.


‘A Coca-Cola sempre criou bons personagens e histórias, como aconteceu com o Papai Noel [cuja imagem foi criada pela empresa] e com os ursos polares, feitos há 20 anos’, diz Ivan Wicksteed, diretor de criatividade global da Coca-Cola. ‘Mas agora temos uma verdadeira história sem fim, com muitos personagens e motes arquetípicos. Acabamos de lançar o segundo episódio e pretendemos continuar com eles por mais 20, 30 anos. Vamos fazer dinheiro com os filmes.’


Os episódios não ficam a dever a estúdios como Pixar ou Disney. Mas, por trás, há alternativas de comunicação sendo testadas por agências e anunciantes para buscar o consumidor que parece estar cansado da propaganda tradicional.


Depois de assistir a parte dos mais de 50 seminários, 20 workshops, quatro cerimônias e 28 mil peças de propaganda, os 12 mil participantes do Festival de Publicidade de Cannes, que terminou ontem, voltam para casa com algumas idéias e poucas certezas. Para muitos publicitários e anunciantes ouvidos pela Folha, a maior certeza é que a comunicação está descobrindo novas formas de ser feita a cada dia.


Apesar de acreditarem que sempre haverá espaço para anúncios tradicionais, os especialistas da área têm se dedicado, por exemplo, à experimentação. Uma das campanhas para TV mais comentadas -e candidata ao Grand Prix de sua categoria- mostra um gorila tocando na bateria uma música de Phil Collins. No fim, aparece uma barra de chocolates Cadbury, mas poderiam ser pilhas, sapatos ou outro produto. O fato de o nonsense ser comentado, diziam muitos publicitários, já é relevante para provocar e atrair o consumidor. Um dos seminários mostrava filmes experimentais e cults.


Depois de julgar mais de 400 peças da categoria Titânio e Campanhas Integradas – na qual são classificadas peças de áreas que não são muito claras-, Sérgio Valente, presidente da DDB Brasil, diz que ações como a da Coca-Cola são uma das três pernas que sustentam a nova tendência da comunicação. ‘A primeira delas é que, ao invés de seduzir o consumidor, a propaganda agora busca influenciar seus hábitos.’ Assim, cria personagens e mundos de boas histórias de ficção para fazer parte das coisas que gosta.


‘As pessoas ficaram mais céticas com o que se anuncia’, afirma Aurélio Lopes, co-presidente da GiovanniDraftFCB. ‘As marcas estão buscando fazer os consumidores falar e dar seu aval a elas.’


Outra parte do tripé de Valente é deixar de falar da relevância do produto para colocar à frente a do consumidor. ‘O consumidor não quer mais ser influenciado, ele quer influenciar. Ele quer ser tratado por nome, sobrenome e apelido.’ É o que faz, por exemplo, a campanha do jornal indiano ‘The Times of India’, que conclamou a população a mudar o país e conquistou 100 milhões de votos por celular para eleger novos líderes políticos. Ao mesmo tempo em que muda a imagem, vende mais jornais.


Por trás disso está o fenômeno das redes sociais, que movimentam quase todas as grandes campanhas integradas. Foi assim com um dos Grand Prix de internet, que mostrava, a cada cinco segundos, uma pessoa dançando um tipo de música com uma roupa diferente da rede de lojas japonesa Uniqlo. A campanha conquistou de tal maneira os japoneses que praticamente todos os blogs do país tinham um ícone remetendo a ela. ‘Temos de aceitar que o anunciante perdeu o controle da campanha porque em todas as áreas há convite para o diálogo’, diz Lopes.


Apesar de dizer que não existem mais divisões geográficas na comunicação, mas por tipos de consumidor, os publicitários reconhecem que campanhas como as que levaram os principais prêmios do festival são incipientes no Brasil. ‘O cliente brasileiro exige comunicação, mas paga apenas a veiculação’, diz Antonio Fadiga, presidente da Fischer América.


Outros problemas são prazo e verbas menores para as campanhas serem feitas no Brasil. ‘A qualidade da propaganda no Brasil não caiu, o mundo é que evoluiu’, diz Valente.’


 


***


Brasil ganha 41 leões neste ano em Cannes


‘O Brasil conquistou 41 leões no Festival Internacional de Publicidade de Cannes, que terminou ontem. Apenas 1, no entanto, é de ouro. Em 2007 foram 30 leões, sendo 6 de ouro.


O Brasil não levou prêmios em nenhuma das categorias mais disputadas, a Titânio e a Mídias Integradas. As agências brasileiras levaram 14 leões na categoria impressa, 7 em internet, 5 em outdoors, 4 em filmes e em rádio, 3 em design e em marketing promocional e 1 em mídia.


A Almap BBDO ficou na segunda posição na disputa ‘Agency of the Year’. A primeira do ranking foi a BBDO Nova York.’


 


TELEVISÃO
Daniel Castro


Globo reproduz trecho de rio sagrado para próxima novela


‘A Globo reproduzirá no Projac, central de estúdios no Rio, um trecho do Ganges, rio da Índia, sagrado para os hinduístas.


A obra integrará o conjunto cenográfico de ‘Caminho das Índias’, próxima novela das oito, no ar, provavelmente, a partir de janeiro. A novela, de Glória Perez, será ambientada no Rio de Janeiro e na Índia -assim como ‘O Clone’ (2001) se alternava entre o subúrbio carioca e o Marrocos.


A Globo irá ‘construir’ uma curva do Ganges. Vai adaptar um lago do Projac que já apareceu em várias novelas.


O rio indiano, hoje muito poluído, é usado pelos hinduístas para vários rituais religiosos. O seguidor da religião tem que se banhar pelo menos uma vez no Ganges para se purificar. Às suas margens, são feitas cremações ao ar livre. Amarrados a pedras, corpos de grávidas, crianças de até 11 anos, leprosos e vítimas de picadas de cobras são despejados no meio do rio.


‘Caminho das Índias’ também terá uma cidade cenográfica de ruas estreitas e repletas de gente e vacas, animal sagrado. O lado moderno do país também será reproduzido.


A trama principal será a paixão de uma moça de casta rica, interpretada por Juliana Paes, por um intocável, algo inaceitável na Índia. Os intocáveis formam o estrato mais baixo da sociedade. São considerados ‘impuros’ e devem executar serviços como coleta de lixo e limpeza de banheiros.


Esse intocável fugirá para os Estados Unidos e se tornará um grande empresário de informática (área em que a Índia sobressai). Adivinha onde essa empresa terá uma filial?


DE CABEÇA NO HUMOR


Formada em filosofia e teatro, a mineira Larissa Bracher (foto), 31, aparecerá na próxima sexta em ‘Dicas de um Sedutor’, da Globo. Ela interpretará Bia, uma mulher que quer encontrar um cara que conheceu numa festa à fantasia, na qual ele usava uma roupa do Homem-Aranha. Larissa ainda luta por seu espaço na TV. Até agora, fez pequenas participações em novelas da Globo. Está em cartaz no teatro em peça estrelada por Bruno Gagliasso e, em breve, poderá ser vista nos cinemas como a protagonista de ‘A Antropóloga’.


ELA VAI LONGE


A paulistana Juliana Schalch, 23, derrotou dezenas de concorrentes, entre elas as já famosas Érika Mader e Fernanda Freitas, e conquistou o papel de namorada de Kayky Brito na próxima novela das sete da Globo, ‘Três Irmãs’. Será sua grande estréia como atriz. Nunca fez teatro profissional, nem cinema, nem TV. Juliana, sua personagem, será uma surfista rebelde. ‘Já namorei um surfista, mas não saía da areia. Ele não me emprestava a prancha’, conta.


PERGUNTA INDISCRETA


FOLHA – Zico Goes, ex-diretor de programação da MTV, disse que você é ‘o fim da picada’. Como é ser ‘o fim da picada’?


LUCIANO HUCK (apresentador) – Quem é Zico Goes?


‘Ó PAÍ, Ó’ SAI DO PAPEL


A Globo começa a gravar nesta semana em Salvador a série ‘Ó Paí, Ó’, adaptação para TV do filme homônimo, estrelado por Lázaro Ramos e dirigido por Monique Gardenberg. Além do próprio Lázaro, o seriado, no ar no segundo semestre, terá Matheus Nachtergaele, João Miguel, Hermila Guedes, Virginia Cavendish e Daniel Boaventura. Monique dirigirá dois dos cinco episódios. O roteiro foi uma criação coletiva com o Bando de Teatro Olodum. Os baianos contribuíram com diálogos a partir da escaleta (o ‘esqueleto’ do roteiro, com a descrição de todas as cenas). Musical, a série pretende mostrar uma Bahia pop, contemporânea. Lázaro Ramos terá que soltar a voz. Cantará 12 músicas, de Wilson Simonal a Jobim, passando por Caetano, Riachão, Odair José, Luiz Caldas, Dalto, Araketu e Skank, entre outros.’


 


Cristina Fibe


Calma, Betty!


‘Ela já viajou a 76 países; ganhou ao menos 15 cópias (12 oficiais, as outras não-autorizadas); e prepara as malas para ir à China até o fim do ano.


A novela colombiana ‘Yo Soy Betty, la Fea’ (1999) -ou ‘Betty, a Feia’, exibida pela RedeTV! de 2002 a 2006-, de Fernando Gaitán, conquistou o mundo ao transformar em estrela uma protagonista feia e desajeitada, mas inteligente.


No Brasil, está sendo mostrada a versão americana, a ‘mais diferente’, segundo o autor. O final da primeira temporada irá ao ar nesta quarta, às 20h, pelo canal Sony, segundo o qual o episódio foi visto por mais de 10 milhões de pessoas nos EUA.


Com uma protagonista latina, ‘Ugly Betty’ já ganhou 32 prêmios no país, inclusive Emmys e Globos de Ouro. Passaram pela série, que tem terceira temporada confirmada, estrelas como a atriz Salma Hayek, a estilista Vera Wang e a cantora Victoria Beckham.


A responsável por boa parte desse reconhecimento é a atriz America Ferrera, 24, nascida em Los Angeles e descendente de hondurenhos. ‘Fico feliz por viver em um tempo em que isso é possível [ser latina e ter uma série de sucesso]’, diz, em entrevista à Folha, por telefone.


‘Há dez, 15 anos, não acho que um canal [dos EUA] estivesse pronto para uma ‘Betty’ ou uma latina ‘mainstream’, como Eva Longoria em ‘Desperate Housewives’, compara.


Ferrera reclama do excesso de foco de ‘muitas sociedades na vaidade, nas pessoas belas e na graça de ser uma pessoa perfeita, com implantes nos seios e na bunda e ‘facelifts’.


‘Há tantas maneiras de ser ‘bonita’… Conheço um monte de mulheres lindas ou garotas que nem cresceram e estão insatisfeitas consigo mesmas.’


Para o criador de ‘Betty’, esse é justamente o fator que faz da personagem um sucesso mundial. Além da vaidade, Gaitán vê na combinação de ‘drama, humor e conflitos de escritório’ outro aspecto que a torna única e universal.


Sem sexo


Depois de Índia, Israel, México e outros, Gaitán fechou com a China para adaptarem ‘o projeto mais importante de sua carreira’, e terá que vê-lo submetido a modificações radicais.


‘É uma versão de até 80 capítulos, uma limitação imposta pelos chineses’, conta Gaitán. E, segundo agências internacionais, a ‘Betty’ chinesa, que terá investimento de US$ 21 milhões, evitará diálogos sobre sexo, personagens homossexuais e mães solteiras.


‘Sei que há versões da Betty em todo o mundo… E o que é mais consistente em todas é que o coração as faz brilhar. Ela é um coração andante. Mas, por causa das atrizes, suas aparências e maneiras de atuar, as personagens são muito diferentes’, opina Ferrera.


Ela diz ter assistido à original para se preparar. ‘Vi dois episódios, porque queria ter uma noção de por que era um sucesso tão grande. Foi mágico. Achei maravilhoso e não quis continuar assistindo, porque não queria imitar ninguém.’


A atriz refere-se à colombiana Ana María Orozco, a exagerada Betty original, que, no fim, fica linda e se casa com o mocinho. Na vida real, Betty deu a Orozco seu papel mais célebre; depois dela, a atriz fez participações no cinema e na TV, e seu último trabalho foi como Susana Martinez, ou Susan Mayer, na versão colombiana de ‘Desperate Housewives’ (na original, o papel é de Teri Hatcher).


Reclamações


No Brasil, espectadores de ‘Ugly Betty’ reclamam da irregularidade nas exibições da série, pelo canal Sony. As principais queixas são o cancelamento de episódios ou a exibição, no lugar dos inéditos, de reprises, sem aviso prévio.


Questionado pela Folha, o canal respondeu: ‘O Sony Entertainment Television já identificou tais problemas e está trabalhando para minimizar e evitar esse tipo de ocorrência. O canal prima pela qualidade de sua programação e transmissão, e se preocupa com a satisfação de seus assinantes. Para tanto, já está fazendo um trabalho de apuração dos problemas que vêm acontecendo, para que possa evitá-los’.’


 


***


Para modelo da São Paulo Fashion Week, ‘não existe mulher feia’


‘Os freqüentadores da SP Fashion Week, que termina amanhã, minimizam a ‘feiúra’ de Betty e seu estilo peculiar. Para modelos e atores que conversaram com a Folha nos corredores da Bienal, ‘beleza não interessa’ ou ‘não existe mulher feia’.


A modelo Patrícia Klein, 17, acha Betty ‘muito estilosa’. ‘Mulher não é feia, é desajeitada’, ri. ‘Não existe mulher feia. Faz um cabelo, uma boa maquiagem, coloca uma roupa, qualquer mulher fica linda’, diz a alta, magra, jovem e loira modelo.


‘Ela [Betty] é ‘gênia’. Não interessa a beleza, não é para isso que a gente está aqui’, afirma Carmo Dalla Vecchia, ator de ‘A Favorita’ (Globo).


Para o estilista Fause Haten, ‘ninguém é essencialmente feio’, a roupa é que deixa feia a personagem. ‘Eu acho ela tão interessante, divertida, perspicaz, que é difícil ver tanta feiúra nela.’


No Fashion Rio, há duas semanas, a estilista Thaís Losso, 27, endossou o jeito Betty e apresentou um desfile inspirado nela, com roupas femininas românticas, estampadas e cheias de cor.


A atriz America Ferrera aprovaria a iniciativa. Ela não fica constrangida ao ‘enfear-se’ em nome da personagem, e ainda elogia o figurino, criado por Pat Field (guru de ‘Sex and the City’).


‘Acho um charme o estilo da Betty, o visual dela. Não ficaria surpresa se, em alguns anos, com algumas mudanças, o seu estilo se tornasse mais ‘mainstream’. Ando por NY e vejo garotas vestidas como Betty.’’


 


Laura Mattos


‘Como pode não termos um Obama?’


‘Quando foram divulgadas as primeiras notícias de que Milton Gonçalves seria um político corrupto na novela ‘A Favorita’, da Globo, a bomba logo estourou em seu e-mail. O personagem, escreveram os remetentes, poderia prejudicar candidatos negros nas eleições. ‘Será que o objetivo era atingir Barack Obama?’, surtou um.


Ninguém melhor do que Milton para entrar nessa polêmica. Aos 74 anos, 43 só de Globo, o ator passou a vida na luta por papéis que iam além dos escravos e empregados reservados a negros. Quase foi demitido quando se opôs à decisão de pintar Sérgio Cardoso de preto para interpretar o escravo protagonista de ‘A Cabana do Pai Tomás’ (1969/70). Além disso, Milton é político na vida real.


Filiado ao PMDB, foi candidato a deputado nos anos 80 e a governador do Rio nos 90. Romildo Rosa, seu papel em ‘A Favorita’, não só é corrupto como chefe de uma família desequilibrada. A controvérsia sobre a abordagem politicamente incorreta do núcleo negro deve crescer, uma vez que a trama de João Emanuel Carneiro, há três semanas no ar com 35 pontos de média, deu sinal de subida no Ibope e bateu 40 na segunda-feira. À Folha o ator falou da celeuma, fez críticas às TVs por terem poucos negros, às cotas, a Lula e a políticos em geral. Leia abaixo.


FOLHA – O sr. tem a carreira marcada por conseguir papéis que vão além dos normalmente concedidos a negros, como escravos e empregados. Chegou a pedir a Janete Clair um personagem ‘engravatado’ e acabou fazendo o médico Percival em ‘Pecado Capital’ (1975/76).


MILTON GONÇALVES – Sempre lutei por papéis relevantes. Há muitos anos, na peça ‘A Mandrágora’ [de Maquiavel], comecei fazendo um escravo e acabei no papel que era do [Gianfrancesco] Guarnieri. Tinha que fazer um esforço para me convencer de que era capaz. Queria papéis que acrescentassem algo a um processo antes inconsciente e hoje muito consciente: o da inserção sem humilhação.


FOLHA – Nesse contexto, como avalia o fato de interpretar na novela das oito um político corrupto? Os papéis não precisam mais levantar a bandeira do movimento negro?


MILTON – Como ator, quero fazer todos os personagens. Fazer um vilão provoca mais discussões do que papéis usuais. E a política brasileira… Aqui no Rio, aqueles três jovens negros, e é bom grifar isso, da comunidade [do morro da Providência] são detidos, e o Exército os leva a uma facção [rival de traficantes], e eles são mortos de forma brutal. Isso é uma aberração e é política. Quem levou o projeto Cimento não sei das quantas para lá? Um político [o senador Marcelo Crivella, do PRB, autor do Cimento Social, de reforma de casas; em nota, na quinta-feira, o parlamentar afirmou: ‘O que fiz foi unicamente apresentar e defender a importância do projeto (…) e garantir os recursos orçamentários necessários’]. O Exército só foi lá porque o presidente do país autorizou. Obviamente não imaginava que fosse aquilo, mas aquele que é candidato a prefeito [Crivella] levou [o Exército] e vai ter que assumir a responsabilidade. Isso marca a podridão em que foi transformada a política. Há pessoas maravilhosas, mas a média lamentavelmente falha. Meu personagem é um desses duendes chafurdando no lamaçal.


FOLHA – O sr. enfrentou resistência do movimento negro em razão de interpretar um político corrupto?


MILTON – Uma pessoa próxima, que se notabiliza por palpites infelizes, me mandou um e-mail: ‘Será que isso não vai atrapalhar? Será que estão querendo atingir [Barack] Obama?’ É um jornalista negro, não vou falar o nome. Algumas outras pessoas escreveram. Ficou a sensação de que seria negativo fazer um político negro corrupto em um país onde o negro, que é metade da população, não é representado no tamanho da sua participação na sociedade. Me questionaram se o personagem não atrapalharia [políticos negros] nas eleições. Não acho, e sou ativista político. Meu lado artístico pede vilões. Vilões que algumas vezes fiz redundaram em grandes discussões. O fato de o cara ser negro não quer dizer que não possa ser desonesto, corrupto, bandido, safado, ladrão. Pode ser tanto quanto o branco. Se meu personagem atrapalhar um candidato negro é porque não há convicção sobre ele. Romildo provoca desejo de que haja políticos negros honestos.


FOLHA – O pesquisador e cineasta Joel Zito Araújo demonstrou que na história da TV a grande maioria dos papéis concedidos a negros era de coadjuvantes, escravos e empregados. Nos últimos anos, houve mais negros em papéis centrais, como a protagonista de ‘Da Cor do Pecado’ (2004/Taís Araújo). Ter um negro como corrupto pode significar que chegamos a um patamar no qual a inserção não é mais um problema?


MILTON – Continuo achando que ainda somos muito poucos em atividade. É só olhar na TV. A participação do negro nas novelas não mudou quantitativamente. Em 68, tive um atrito na Globo, quando Sérgio Cardoso foi pintado de preto para o papel de negro em ‘A Cabana do Pai Tomás’. Em um país em que a metade da população é negra, pintar um branco para fazer o papel de negro é aberração, um desrespeito. Fui contra isso, o que quase me rendeu uma demissão. E não sei se há uma melhoria. Quando se faz uma novela de favelas, por exemplo, aquela figuração lá no fundo ainda não é misturada o suficiente para o meu gosto.


FOLHA – O sr. enfrentou muito preconceito nesses 43 anos de Globo?


MILTON – Preconceito todos sofrem, até branco, dependendo do meio. Em ‘Baila Comigo’ [81], era casado com a personagem da Beatriz Lira. Ela recebeu avisos loucos: ‘Olha, ele é excelente ator, mas você vai fazer a mulher dele?!’. O chamado movimento negro me dizia: ‘Não vai beijar na boca!’. Combinamos: ‘Tome beijo na boca’.


FOLHA – O que o sr. acha do movimento negro no Brasil?


MILTON – Já fui mais ativista. Não renego, mas temos que acrescentar à luta algo a mais, para que a ação seja mais democrática. Não acho que um ministro ou secretário deva ter cargo só para tratar de coisas de negros. Negros devem ser ministros da Fazenda, da Educação. Como pode, nos EUA, onde o negro é 14% da população, haver um negro candidato à Presidência, que espero que seja eleito, com grandes chances, e no Brasil, onde o negro é metade da população, não termos alguém assim? Fui candidato a governador no Rio [94] porque achei que deveria enfrentar. Mas pessoas antes solidárias deram cabo. O que eu queria fazer não incluía desonestidade.


FOLHA – Por suas palavras, não parece favorável às cotas para negros.


MILTON – Não sou radicalmente contra. Quem achar que são boas que faça uso. Mas não acho que as cotas possam resolver questões centenárias. Não posso apenar um branco que tirou dez na prova e dar seu lugar a um negro que tirou cinco.


FOLHA – Encararia outra eleição?


MILTON – Nem que a vaca tussa! Sou da época do MDB e hoje estou no diretório estadual do PMDB do Rio, mas prefiro ser um guerrilheiro em escaramuças. Quando há necessidade, vou lá e dou palpite.


FOLHA – O que acha do PMDB?


MILTON – Houve degradação, a qualidade está muito baixa.


FOLHA – Cogita trocar de partido?


MILTON – Agora não, porque está tudo a mesma porcaria.


FOLHA – O fato de Romildo falar que passou fome é recado a Lula?


MILTON – Nada a ver. A única coisa que me incomoda no Lula foi uma frase que usou, que não estudou e é presidente. Não sabe o mal que causou à nação.


FOLHA – Aprova a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?


MILTON – Não sei… Cultura, na minha cabeça, é a perna direita de um país. E acho que a Cultura está meio vasqueira, devagar.


FOLHA – ‘A Favorita’ mostra a relação conflituosa do deputado com a imprensa. Como o sr., que fez faculdade de jornalismo, analisa a atual relação entre imprensa e poder?


MILTON – Não há hoje ninguém absolutamente isento. O jornal é feito para um grupo de leitores e quer alcançar seu nível de venda. O seu jornal, por exemplo, tem como cliente a classe média paulista. Pode até fazer matérias para o operariado, mas não é seu público-alvo.


FOLHA – O repórter da novela gritou ‘corrupto, ladrão’ em comício de Romildo. O jornalismo partidário é muito presente hoje no país?


MILTON – Não é função do repórter ir a um comício e chamar o cara de ladrão. Se quer falar, tem que tirar o crachá e agir como cidadão.


FOLHA – Por outro lado, o deputado da novela veta a publicação de reportagens que denunciam suas falcatruas telefonando para a cúpula do jornal. Não é um tema delicado para se tratar em uma emissora que faz parte de um conglomerado de comunicação tão amplo?


MILTON – Concordo em gênero, número e grau. Mas, pai, afasta de mim esse cálice! [risos].’


 


***


Ator elabora livro sobre racismo com Glória Maria


‘Milton Gonçalves e a jornalista Glória Maria, ex-’Fantástico’, decidiram escrever juntos um livro sobre racismo.


A idéia, segundo o ator, é dar dicas bem-humoradas para que os negros não caiam ‘em armadilhas’.


‘O povo que mais conta piada sobre si próprio é o judeu. Nem por isso eles são mais sofredores’, disse Milton à Folha.


‘Ir para o humor, como fazem os seriados norte-americanos, pode ser uma saída para desmistificar e não deixar os negros ofendidos’, analisa o ator.


Milton diz que os negros muitas vezes se deparam com pessoas que gostam de contar piadas racistas. ‘Posso falar um palavrão? Tem uma piada assim: ‘Você sabe o que um negro tem mais que o branco? Tem mais é que se f…’ Podemos alertar no livro para essas possíveis formas de agressão, para que o negro, quando ouvir isso, conheça a resposta e possa desarmar a piada. O desafio é achar a forma que não ofenda lá nem cá, que seja esvaziadora dessa dor profunda e secular.’


De acordo com Glória, o livro está sendo negociado com editoras.’


 


Samy Adghirni


Repórter busca anônimos na guerra


‘Difícil ser original quando o assunto é o conflito entre palestinos e israelenses, que se arrasta há 60 anos numa overdose de notícias e versões.


Em busca de um olhar novo sobre a disputa, o correspondente de guerra Diego Buñuel, neto do cineasta Luis Buñuel, mergulhou no cotidiano da Terra Santa para captar os aspectos mais inusitados da (sobre) vida humana na região.


O resultado é o documentário ‘Zonas de Guerra: Terra Santa’, que vai ao ar hoje à noite no canal National Geographic, encerrando uma série que acompanhou os passos de Buñuel em cinco países, incluindo Afeganistão, Colômbia e Coréia do Norte.


Considerado por alguns críticos como o melhor da série, o capítulo que tem o Oriente Médio como tema retrata com sutileza e humor -e sem tomar partido- a vida que se desenvolve na região longe dos clichês do noticiário de massa. O foco do documentário, construído como um ‘road movie’ bem ritmado, está nas pequenas histórias anônimas e no absurdo tragicômico de um dia-a-dia que transcende a guerra.


O condutor da trama é o próprio Diego Buñuel, que aparece em praticamente cada tomada, contextualizando suas andanças em linguagem despojada ou trocando figurinhas com a população local.


Em Gaza, Diego Buñuel apresenta figuras como o empresário Rashid, que ganha a vida imprimindo cartazes dos mártires locais, e os MCs Hamed e Nazim, que animam as noites da juventude cantando em árabe um melancólico rap de gueto.


A poucos quilômetros dali, ele relata o pânico permanente dos moradores de Sderot, cidadezinha israelense que é alvo constante dos mísseis palestinos Qassam -ao menos três por dia caem no local, onde até os pontos de ônibus têm abrigo antiaéreo.


Em Hebron, Buñuel acompanha um passeio turístico de israelenses que nunca haviam pisado em solo palestino. Na pequena Taybeh, enclave cristão perto de Ramallah, o jornalista visita a primeira e única fábrica de cerveja palestina.


E nos confins da Cisjordânia ocupada, o jornalista descobriu Lucy Fensom, uma ex-aeromoça inglesa que cuida de asnos maltratados pela guerra.


Com apenas 33 anos, Buñuel, que diz só ter recebido do ilustre avô ensinamentos sobre a vida dos insetos e o tiro com pistola (!), revela talento para um jornalismo humanista cada vez mais escasso.


Sem ceder ao sentimentalismo, ‘Terra Santa’ diverte e esclarece, provando que tragédias também podem ser tratadas com leveza.


ZONAS DE GUERRA: TERRA SANTA


Quando: hoje, às 21h


Onde: no National Geographic’


 


Bia Abramo


‘9MM’ é ótimo policial à brasileira


‘AVENIDA M’BOI Mirim. As vítimas em um carro, os bandidos em outro. Pelo celular, os policiais tentam acalmar as vítimas: um pastor e uma menina de 11 anos. ‘Agüenta firme, que estamos chegando’. Ao que o pastor, apavorado, retruca: ‘Não tem viatura na área?’. Silêncio. O delegado incentiva: ‘Já estamos perto’. E o pastor: ‘Não vai dar, meu carro é uma m…’. Segundos depois, o carro caindo aos pedaços do pastor pede arrego; os dois têm de fugir a pé.


A perseguição é uma cena, talvez das mais eloqüentes, da nova série da Fox, ‘9MM: São Paulo’. À tensão de uma perseguição convencional entre mocinhos e bandidos, soma-se a precariedade brasileira: a viatura mais próxima está a quilômetros de distância, o cara do bem é capaz do gesto heróico, mas seus recursos são limitadíssimos pela pobreza.


Os desafios de ‘9MM: São Paulo’ são gigantescos. Em primeiro lugar, há que transplantar para o Brasil o padrão de roteiro do seriado norte-americano: cada episódio fecha uma história, ao mesmo tempo em que começa a desenvolver a médio e longo prazo várias tramas.


Em segundo lugar, fazer uma transposição do espírito das séries policiais do tipo ‘Nova York contra o Crime’ para a polícia brasileira.


Ora, mesmo com o toque mais realista das séries contemporâneas, elas sempre redundam em eficiência, criminoso descoberto, crime punido, justiça no horizonte etc.


Aqui, essa perspectiva é quase fantasiosa e, portanto, qualquer tentativa pouco inteligente de fazer essa transposição fatalmente dará com os burros n’água.


Por último, há a resistência do público seriemaníaco, tão exigente com o produto ‘nacional’ como condescendente com o produto importado, numa atitude cuja arrogância trai um provincianismo também ele muito sintomático da nossa precariedade.


Por ora, dá para dizer que ‘9MM: São Paulo’ se sai muito bem dos dois primeiros. O roteiro é consistente como poucos. Da mesma forma, há um equilíbrio entre a convenção da série policial e a tentativa honesta de construir personagens necessariamente ambíguos à lei e à ordem. Por aqui, estão de mãos dadas com o privilégio, a corrupção, o clientelismo, o apadrinhamento, o favor etc. Mesmo com dois episódios exibidos, dá para afirmar, fácil, que ‘9MM: São Paulo’, junto com ‘Antônia’ e ‘Carnaval’, é das melhores experiências em série já feitas no Brasil. Os narizes torcidos que fiquem com a mediocridade da grande parte do que mandam para cá.’


 


 


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