Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folha de S. Paulo

OBAMA
Fernanda Ezabella

TVs brasileiras têm cobertura extensa de eventos da posse

‘As emissoras brasileiras vão se render à obamania nesta semana, quando acontece a mais cara e mais popular cerimônia de posse presidencial nos EUA.

Globo, Record, SBT e Band prometem flashes ao vivo de Washington durante a programação de terça, a partir das 13h, com o presidente eleito Barack Obama dando início à longa lista de eventos do dia.

As festividades oficiais, no entanto, começam hoje. Haverá um show em frente ao Lincoln Memorial, na capital do país, com discurso de Obama ao lado de estrelas como Bruce Springsteen, U2, Beyoncé e Stevie Wonder. A Globo News fará transmissão ao vivo a partir das 17h30.

O canal a cabo terá a maior cobertura com jornalistas brasileiros, incluindo até mesmo os atos em defesa dos direitos humanos que Obama e seu vice, Joe Biden, realizarão amanhã, feriado nacional em homenagem a Martin Luther King.

‘Nunca abrimos para transmitir o evento inteiro, é a primeira vez’, disse Luiz Claudio Latgé, diretor da Globo News, sobre a posse de outros presidentes estrangeiros.

A presença de celebridades, aliada a expectativas como a cor do vestido da primeira-dama Michelle, fará das transmissões evento bastante popular.

A CNN International, que fará cobertura completa dos eventos, terá uma equipe no telhado do Newseum, museu da imprensa na av. Pensilvânia.

Mesmo a TV Cultura, que deixará para falar da cerimônia apenas no telejornal, preparou uma programação especial para o dia, com o documentário ‘Barack Obama – Sua História’ (Austrália/2008), às 20h.

O GNT também terá filmes: hoje, às 21h, ‘Barack Obama: O Homem e sua Jornada’. Amanhã, às 21h15, ‘Obama, Tempo de Mudança’. O ‘Manhattan Connection’ de hoje e o ‘Oprah Winfrey Show’ de quarta e sexta terão edições especiais.

O Biography Channel , na quarta, às 20h, fala de Obama em ‘Vidas que Mudaram o Mundo’. Mesmo a jovem MTV entrou na dança: na madrugada de terça para quarta, à 1h, a emissora terá ‘Be the Change: Live From the Inaugural’, uma das dez festas a que Obama irá na noite.’

 

ACORDO ORTOGRÁFICO
Ricardo Westin

Acordo também muda escrita em braile

‘Os brasileiros que não enxergam também têm suas dúvidas nos acentos que caíram e nos hífens que apareceram ou desapareceram na virada do ano, quando as regras impostas pelo Acordo Ortográfico entraram em vigor no país.

Tudo o que mudou no português escrito mudou da mesmíssima maneira no português convertido em braile, o sistema tátil usado por cegos do mundo inteiro para ler e escrever.

‘Todos nós memorizamos as palavras na grafia antiga. Agora precisamos reconstruí-las na memória com a grafia nova. A diferença é que vocês fazem isso com os olhos e nós [cegos], com os dedos’, explica Maria da Glória Almeida, chefe-de-gabinete do Instituto Benjamin Constant, no Rio, dedicado às pessoas com deficiência visual.

O Acordo Ortográfico tem impacto no braile porque as palavras desse sistema também são escritas letra a letra. Uma letra tem até seis pontinhos em alto relevo. Cada uma se forma com um número e uma disposição própria de pontinhos.

Os acentos e o trema mudam esse arranjo. O dedo treinado de um cego sente a diferença entre ‘ü’ e’u’ e entre ‘a’ e ‘á’.

Se ‘microonda’ agora é ‘micro-onda’, a mesma palavra no braile deixa de ter nove caracteres salientes e passa a ter dez -o hífen têm seus pontinhos característicos.

As mudanças ortográficas haviam sido definidas em 1990 por países que têm o português como língua oficial. O objetivo do Acordo, agora colocado em prática no Brasil, era unificar a escrita do português e torná-lo mais forte no cenário mundial.

Nas escolas

Segundo a Organização Mundial da Saúde, 0,5% da população do planeta não enxerga. O Brasil teria, por essa conta, 950 mil cegos -o equivalente aos moradores de Cuiabá e Florianópolis somados.

As escolas brasileiras têm, de acordo com o Ministério da Educação, pouco mais de 8.600 alunos cegos, a maioria deles nas mesmas salas de crianças e adolescentes que enxergam.

As lições de braile são dadas fora do horário regular de aula e normalmente vão até a 4ª série, época em que as crianças já conseguem dominar o sistema.

‘As nossas preocupações agora são orientar os professores e garantir que a produção dos livros didáticos em braile esteja compatível com a nova grafia’, afirma Martinha Clarete Dutra, que responde, no Ministério da Educação, pelas políticas de inclusão.

Martinha é cega. ‘Apesar de lidar com esse tema todo dia, ainda me pego escrevendo na grafia anterior. Estamos tão habituados… Só depois lembro que aquele acento não existe mais’, ela conta.

Por enquanto, não está errado escrever na forma antiga. Até dezembro de 2012, as grafias novas terão de conviver com as velhas -será um período de transição. A partir de 2013, porém, só serão aceitas como corretas as novas regras.

A língua dos sinais, usada pelos surdos, não foi afetada pelo Acordo, já que cada gesto normalmente representa uma palavra inteira.’

 

Festas marcam 200 anos do criador do braile

‘O francês Louis Braille, criador do famoso sistema de leitura e escrita que leva seu nome, nasceu no dia 4 de janeiro de 1809. Homenagens e festas no mundo inteiro, principalmente na França, estão lembrando os dois séculos de seu nascimento.

Braille ficou cego aos três anos. Ele brincava na oficina de seu pai, um fabricante de equipamentos de montaria, quando feriu um dos olhos com um objeto pontiagudo. O outro olho acabou contaminado.

Ainda adolescente, Braille se baseou num método militar de comunicação noturna para criar seu sistema. Pontos em alto relevo no papel representam letras e sinais gráficos. A leitura é feita com o dedo.

Os livros em braile não podem ser empilhados, para não comprometer as saliências que formam as letras. Eles ocupam mais espaço -uma página impressa se transforma em no mínimo três, o que obriga uma obra a ser dividida em vários volumes. O custo chega a ser cinco vezes mais alto.

No país, as maiores impressoras desses livros são a Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, e o Instituto Benjamin Constant, no Rio.’

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

Globo quer tornar ‘A Favorita’ a novela mais vista no mundo

‘A Favorita’ é a grande aposta da Globo no mercado internacional em 2009. A emissora acredita que o drama de Flora (Patrícia Pillar) e Donatela (Cláudia Raia) poderá se tornar a novela mais exportada de todos os tempos, superando a atual campeã, ‘Terra Nostra’ (1999), vendida para 95 países.

O que leva a emissora a fazer esse prognóstico é o fato de ‘A Favorita’ ter sido uma novela sem ‘barriga’ -jargão para texto ágil, sem ‘enrolação’. Isso a aproxima das novelas mexicanas, tradicionalmente mais bem-sucedidas no mercado externo do que as brasileiras.

‘Acho que ‘A Favorita’ vai explodir’. Será uma das mais vendidas no mundo, porque tem um ritmo alucinante’, diz Ricardo Scalamandré, diretor da divisão internacional da Globo.

A novela será lançada no final do mês, na Natpe, megafeira de TV em Las Vegas (EUA).

No evento, a Globo também lançará ‘Maysa’. Será a primeira vez que oferece no exterior uma minissérie que acabou de exibir. E estreará como provedora de formatos. Proporá às TVs estrangeiras versões locais de quadros como ‘Soletrando’ e ‘Vídeo Game’.

Outra aposta da Globo no mercado externo em 2009 é a co-produção de novelas fora do Brasil. A rede já acertou com a hispânica Telemundo, dos EUA, uma versão em espanhol de ‘O Clone’, ambientada em Los Angeles. Atualmente, negocia parcerias semelhantes com a mexicana TV Azteca e com a portuguesa SIC.

EVITA CAIÇARA

Será com esse visual, inspirado em Eva Perón, a Evita (1919-1952), ícone da política argentina, que Vera Holtz aparecerá em ‘Três Irmãs’ a partir desta quarta. Ela adotará o look porque sua personagem, a perversa Violeta, se candidatará à prefeitura da fictícia Caramirim. Seu marqueteiro, Baby Montenegro (Cassio Gabus Mendes), acredita que assim a vilã conquistará a confiança do eleitor. E convoca o cabeleireiro Adamastor (Carlos Loffler, neto de Oscarito) para fazer a transformação.

INTERNACIONAL 1

A Record está rivalizando com a Globo até na rede de correspondentes. Desde a semana passada, gaba-se de ser a primeira TV brasileira a ter correspondente em Lisboa (Mauro Tagliaferri).

INTERNACIONAL 2

Como a Globo terá repórter em Lisboa (Pedro Bassan), jornalistas da Record falam que a concorrente a copiou. A Globo rebate: a abertura do posto em Portugal foi planejada há um ano.

RODÍZIO 1

A Globo já decidiu: depois de Manoel Carlos, que sucederá Glória Perez (‘Caminho das Índias’) na faixa das 21h, será a vez de Silvio de Abreu retornar ao horário mais nobre da emissora.

RODÍZIO 2

Abreu já trabalha em sua próxima novela das oito. ‘Ainda não sei direito o que será. Certamente, terá um clima melodramático-cômico-policial. Estou ainda na fase de inventar tramas’, diz.

A VEZ DA AMIGA DA MOCINHA

Revelada em 2005 em um concurso do ‘Caldeirão do Huck’, a atriz Cacau Melo, 25, terá seu primeiro grande papel na Globo. Em ‘Caminho das Índias’, que estreia amanhã, viverá a melhora amiga da mocinha, Maya (Juliana Paes). ‘A Deva é uma indiana sonhadora, muito romântica, louca para casar’, conta. ‘Ela coloca um anúncio nos classificados de um jornal, se oferecendo para casar, e chama a atenção de Radesh [Marcius Melhem], um picareta’. Será impossível Deva passar despercebida. Ela terá o figurino mais colorido da novela. ‘A gente brinca que sou a menina arco-íris’, diz.’

 

Laura Mattos

Português é o novo idioma da Índia!!!

‘Tudo bem que ‘A Favorita’, especialmente nos últimos capítulos, abusou da boa vontade do público em embarcar em histórias absolutamente impossíveis e incoerentes. Mas a despedida rocambolesca de Faísca e Espoleta não deve chegar aos pés do que aguarda o telespectador a partir de amanhã, quando estreia a nova novela das oito, ‘Caminho das Índias’.

Por mais que qualquer telenovela em algum momento despreze a verossimilhança, nenhum autor da Globo hoje é páreo para o ‘despudor’ de Gloria Perez, que assina a trama. Em ‘Caminho das Índias’, a herdeira do estilo de Janete Clair (1925-1983) voltará a disparar seu arsenal de ‘licenças poéticas’, no qual, só para ficar em um exemplo, as viagens entre o Brasil e as cidades indianas onde se passam as histórias são rápidas e simples como a ponte-aérea Rio-São Paulo.

O mesmo superavião que transportará personagens do Rio a Jaipur e Agra, famosa pelo Taj Mahal, já levou o elenco de ‘O Clone’ (2001/02) a cruzar os mais de 7.400 quilômetros entre a capital fluminense e Marrocos em poucas horas.

Isso sem falar da salada de idiomas que dominou, além de ‘O Clone’, ‘América’ (2005), suas duas novelas anteriores, também baseadas em intercâmbios, como será ‘Caminho das Índias’. Mas é exatamente esse ‘tempero exótico’ que faz de Perez uma das líderes de audiência do horário nobre. E esse tipo de cobrança está longe de lhe tirar o sono: ‘Ah, não gasto ouvido escutando tolice’, afirma a autora à Folha.

‘É o mesmo que não gostar de ‘Ben-Hur’ porque falava inglês e não latim, que abominar ‘Gandhi’ por não ter sido filmado em hindi, que ridicularizar o cinema porque, em todos os filmes, o táxi está sempre na porta quando alguém precisa ou apedrejar ‘A Favorita’ porque, de dupla sertaneja a presidiária, Flora desembarcou com a maior desenvoltura na presidência de uma grande empresa’, compara a novelista.

‘Inshalá’

Perez conta que os personagens indianos, entre eles o casal protagonista interpretado por Márcio Garcia e Juliana Paes (leia texto ao lado), falarão em português e sem sotaque, diferentemente do que acontecia, por exemplo, com o grego de Tony Ramos em ‘Belíssima’ (2005/06), de Silvio de Abreu. ‘Mas há um trabalho de prosódia, para que pronunciem corretamente o que deve ser dito em hindi ou sânscrito.’

Algumas cenas, como as de rituais religiosos, serão faladas em sânscrito, conta Perez, com a consultoria de indianos.

E certamente teremos a onda indiana no Brasil, como aconteceu com o ‘Clone’, quando os brasileiros repetiam ‘inshalá’, curtiam a dança do ventre e usavam as bijuterias e maquiagens da muçulmana Jade (Giovanna Antonelli). Agora, o boom deverá ser da ioga, praticada pelos protagonistas de ‘Caminho das Índias’, e de roupas indianas, como o sári, um pano enrolado no corpo, e punjabis, calça com uma bata.

A autora conta ter se inspirado em produções de Bollywood, a indústria cinematográfica da Índia, além de ‘filmes de arte’ do país. ‘Os filmes são importantes para se observar costumes, tradições, rituais, gestuais e comportamentos.’

Nada de Flora

Os fãs de Flora não devem ter esperanças. A maldosa de ‘Caminho das Índias’, interpretada por Letícia Sabatella, nada tem a ver com a vilã pop de Patrícia Pillar em ‘A Favorita’, de acordo com Perez. ‘Ela não vai assassinar ninguém. A ideia é mostrar como funciona a mente de um psicopata’, afirma.

A vilã, desta vez, está inserida no que a autora chama de ‘campanha pelos usuários da saúde mental’, que terá também um personagem esquizofrênico vivido por Bruno Gagliasso. ‘Toda vez que um psicopata comete uma atrocidade, é posto no mesmo rol que os loucos. Isso alimenta o preconceito. Loucura e psicopatia são condições inversas. Loucura é doença tratável. Psicopatia é estrutura de personalidade e não tem tratamento, ao menos por enquanto. A loucura implica um excesso de sentimento, já a psicopatia é a ausência deles. O psicopata é pura razão.’

Além desse ‘merchandising social’, que debaterá inclusive a existência de manicômios no país e a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, ‘Caminho das Índias’ falará dos problemas do ensino público e ‘da falta de limites que se observa na juventude de hoje’.’

 

Jairo Bouer

Quarta temporada da série faz paródia de reality show

‘Você é fascinado pelos mistérios da medicina? É do tipo que não consegue desgrudar os olhos da telinha enquanto uma espécie de superdetetive elimina pistas falsas e procura provas incontestáveis que nos levem aos grandes vilões, responsáveis por doenças raras? Adora personalidades fortes, que saem do fundo do poço para alcançar a glória, enfrentando um turbilhão de emoções e trabalhando quase sempre no limite da ética? Então, a quarta temporada de ‘House’ é um prato cheio!

O seriado, que tem o quinto ano exibido pelo Universal Channel e o primeiro pela Record, é um verdadeiro campeão de prêmios e audiência nos EUA. No Brasil, está entre os mais vistos na TV paga.

Diferentemente da também bem-sucedida série médica ‘E.R.’, que está em sua 15ª temporada nos EUA e lembra mais um novelão, explorando os dramas pessoais da equipe médica e as histórias dos pacientes, ‘House’ fica mais focada nos mistérios da medicina e na personalidade contraditória do protagonista.

Os casos são sempre raros e de difícil diagnóstico, o que aproxima a estrutura narrativa de ‘House’ à de uma série policial, em que pistas, provas e suspeitas vão sendo levantadas e eliminadas pelo detetive (ou herói) ao longo do episódio. A grande vilã é sempre a doença, que aparece e se prolifera, assim como a violência.

Em ‘House’, muitas vezes pacientes e médicos faltam com a verdade, deixam expostas feridas emocionais e carregam para cima e para baixo suas ‘fraquezas’ morais, dificultando o trabalho da equipe e alimentando no doutor House uma postura cética, quase cruel. Mas tudo isso acaba suplantado pela genialidade do médico. Ele é bom e sabe disso! O problema de ser bom demais é a forma como se lida com um ego hiperinflado. O de House é tão grande que, não raro, não cabe dentro dos limites do Princeton-Plainsboro Teaching Hospital. Na medicina, o endeusamento do gênio pode ser um perigo! Ele pode se sentir autorizado a passar por cima de tudo, inclusive dos pacientes, para atender seu interesse pessoal. Em ‘House’, apesar de tudo, esse limite está bem claro.

O médico faz o que bem entende, mas nunca perde de vista o genuíno interesse de defender a saúde de quem o procura!

Seleção incomum

Em sua quarta temporada, muitas novidades aparecem. House começa sem sua tradicional equipe (Foreman, Chase e Cameron tomam novos rumos em suas carreiras). Sozinho, sem suporte para exercitar seu poder de raciocínio clínico e tendo que enfrentar a pressão de Cuddy e Wilson para que forme um novo time, ele resolve fazer uma seleção incomum dos seus próximos assistentes, que acaba funcionando como uma paródia de um reality show. Os candidatos vão sendo eliminados à medida que são testados por House.

É claro que as regras e decisões dessa seleção oscilam ao sabor do gosto arbitrário do personagem de Hugh Laurie.

Vale a pena prestar atenção no penúltimo episódio, ‘A Cabeça de House’, que deu o Emmy de melhor direção para Greg Yaitanes. Ao final da temporada, um trágico acidente vai colocar em xeque a amizade entre House e Wilson e dar o tom da atual temporada. Se você gosta de ‘House’, este quarto ano é diversão garantida!

HOUSE – 4ª TEMPORADA

Lançamento: Universal

Quanto: R$ 130, em média

Classificação: não indicado a menores de 12 anos

Avaliação: ótimo’

 

Ricardo Bonalume Neto

O que diria Orwell sobre este ‘Big Brother’?

‘Não é difícil imaginar que o criador do Big Brother ficaria horrorizado se visse o programa de TV que usurpa sua criação. ‘Por que essas trivialidades monstruosas são tão absorventes? Apenas porque toda a atmosfera é profundamente familiar, porque o tempo todo temos a sensação de que essas coisas acontecem ‘conosco’, disse o escritor inglês George Orwell (1903-1950).

A afirmação poderia ter sido feita em uma crítica ao programa. Na verdade, era um comentário elogioso sobre o romance ‘Trópico de Câncer’, de Henry Miller. ‘E temos essa sensação porque alguém resolveu abandonar a linguagem convencional do romance comum para expor a ‘real-politik’ do íntimo.

No caso de Miller, não é tanto uma questão de explorar o mecanismo da mente quanto de reconhecer os fatos e emoções cotidianos’, continuou Orwell.

Já a trivialidade do ‘BBB’ parecer ser mesmo trivial, como a vovó querer fazer bolinhos de chuva ou os ‘romances’ fingidos ou não. O Big Brother, ‘Grande Irmão’, original era o ditador supremo do mundo que Orwell imaginara ao escrever em 1948 o romance ‘1984’, uma utopia negativa. Um sofisticado aparato de estado policial mantinha uma ‘teletela’ na casa de cada um, que vigiava 24 horas por dia, como nas câmeras do programa de TV.

Orwell era um fino autor de ensaios políticos e culturais.

Depois do horror inicial de ver as trivialidades, ele partiria para sua análise. Afinal, fez ensaios sobre temas variados da cultura de massas, como quadrinhos para garotos e cartões-postais ‘picantes’. Ele não negava o potencial de entretenimento da cultura ‘pop’, mas deplorava muito da ideologia por trás -como o esnobismo, o narcisismo, o consumismo.

‘Locais de prazer’ No mundo de ‘1984’, uma função dos intelectuais é produzir essa cultura para os ‘proles’, o vasto proletariado que vivia dominado pelo partido no poder. Orwell trabalhou para a rádio BBC durante a Segunda Guerra, um lugar que ele descreveu como ‘a meio caminho entre uma escola de moças e um asilo de lunáticos’.

A atmosfera artificial da casa do ‘BBB’ não escaparia ao seu escrutínio. Basta ver o que escreveu sobre a nova moda de ‘locais de prazer’, em 1946: ‘Você nunca está sozinho. Você nunca faz nada para si próprio.

Nunca se está à vista de vegetação selvagem ou objetos naturais de qualquer tipo. Luz e temperatura estão sempre artificialmente reguladas’.

E o que diria ele do tipo de pessoa selecionado para o programa? Provavelmente faria análise semelhante à que fez sobre as mulheres dos anúncios de revistas de moda em 1946, um ‘estilo decadente de beleza’, que lembra o mundo ‘fashion’ de hoje. ‘Quadris estreitos são gerais, e mãos delgadas não-preênseis como as de uma lagartixa estão em toda parte’, diz ele da mulher considerada sexy então. Se visse a versão brasileira do programa, teria outra opinião.

Aqui os quadris preferidos são os fartos, pois várias das moças já entram na casa como candidatas a posar para a ‘Playboy’.

O jornalista RICARDO BONALUME NETO , 48, é autor de ‘George Orwell – A Busca da Decência’ (editora Brasiliense, 1984)’

 

Ferreira Gullar

A novela é mesmo uma novela

‘A NOVELA DE televisão -com raras exceções- pode ser definida como uma história implausível que se desdobra em episódios cada vez mais implausíveis.

De uns tempos para cá, toda novela tem, pelo menos, uma vilã (prefere-se a vilã ao vilão, já que mulher deve ser boazinha), tão ou mais implausível que a história contada. A vilã parece ter sangue nos olhos vidrados de ódio, e odeia a tudo e a todos, gratuitamente, não porque lhe tenham feito algo, não porque a tenham ofendido ou prejudicado: odeia porque odiar é a sua função na novela, razão por que odeia gato e sapato, cachorro, papagaio, sem contar o filho, a filha, o pai, a mãe, o irmão e o mamão, isso se algum mamão surgir em seu caminho.

Esse é um novo tipo de ser humano que, até que a televisão o revelasse, nunca se suspeitara existir. Mas, pelo que se vê, tem proliferado de maneira incontrolável, uma vez que não há novela global que não nos mostre algum exemplar dessa nova espécie de gente. Deve ser criada em alguma reserva ecológica para a preservação de animais ferozes.

Outra característica da vilã é a capacidade que tem de consumar suas maldades sem que nada o dificulte ou impeça. Pelo contrário, se a vilã decide liquidar com alguém, logo, como por milagre, a futura vítima começa a agir do modo exatamente previsto por ela, até cair na arapuca.

E o mais impressionante é que, se a vítima escapa com vida, e tenta denunciá-la, ninguém dá crédito à denúncia, apesar de todas as evidências. Sim, porque senão a história acaba. O telespectador fica indignado com a lerdeza ou burrice dos personagens bonzinhos, que tomam sempre a defesa da malvada. Por isso, já se diz que a novela é uma história idiota, vivida por idiotas e vista por idiotas. Dizem, mas não conseguem deixar de vê-la até o último capítulo.

A novela tornou-se uma mania nacional, programa de milhões de famílias para depois do jantar. E o curioso é que, embora seus temas sejam atuais e os personagens se comportem como gente de hoje -vestem roupas da moda, usam celulares e computadores- parecem pertencer ao século passado, ou melhor, ao retrasado. É que são antigos os valores contra os quais se voltam, ou seja, combatem bravamente costumes e sentimentos que só existem na subliteratura do velho folhetim.

Na vida real, ninguém vive tais problemas nem adota tais atitudes.

Um chavão do gênero são os olhos sempre lacrimejantes dos personagens, particularmente os femininos. Se é um personagem sofredor, tem os olhos sempre molhados de lágrimas, peito arfante, expressão comovida, prestes a explodir em soluços. São, de fato, seres especiais, uma vez que, com tantos anos de vida que tenho, muito raramente vi alguém chorando, a não ser criança manhosa, mas era choro para chantagear a mãe, coisa saudável, sem nenhum sentimentalismo. Na novela, se o espectador se distrai, tem a impressão de que aqueles olhos molhados e o nariz vermelho são sinais de resfriado. Ideia absurda, pois se há uma coisa impossível é algum personagem de novela se gripar. Não me lembro de nenhum caso.

Esse clima sentimentaloide, que nada justifica, parece ser essencial à novela, cujo objetivo principal é comover o telespectador e, para consegui-lo, força a mão e passa do sentimento verdadeiro ao sentimentalismo exagerado que, na verdade, falsifica a emoção. E isso não é tido como subliteratura, mas como um gênero que leva o nome de melodrama.

Outro traço típico da novela é a anti-dramaturgia. Como se sabe, o que caracteriza a boa dramaturgia é a economia de cenas e diálogos: toda fala e toda cena deve fazer avançar a ação dramática. Não há por que botar os personagens para agir à toa ou falar coisas que não interessam ao telespectador, já que não fazem andar a história. No teatro, no cinema, isso não ocorre e, se ocorre na novela, é porque ela tem que durar meses e meses, enquanto uma peça ou um filme duram entre uma hora e meia e duas horas. Não existe dramaturgia para 180 ou 200 capítulos. Daí por que os teledramaturgos são obrigados e criar núcleos e enredos paralelos à história central, a única que de fato interessa ao telespectador. É por essa razão que, quando entra em cena um desses núcleos secundários, o pessoal aproveita para ir ao banheiro ou à cozinha tomar um cafezinho.

Diga-se, a bem da verdade, que se a novela é como é, a culpa não cabe ao autor ou diretor nem muito menos aos atores, cujos talentos a fizeram ganhar tanta popularidade. A culpa é do gênero mesmo, que se tornou mais e mais um produto comercial, apoiado em estereótipos.’

 

HISTÓRIA E CULTURA
Peter Burke

Comunidades virtuais

‘Tudo tem uma história, incluindo o jornal que você está lendo. Começou há muito tempo o interesse pelas notícias -comunicadas por fofocas, rumores e discussões em tavernas, barbearias e farmácias-, mas os jornais diários só começaram a aparecer no século 17. Desde então ocorreram três viradas importantes em sua história, por volta dos anos 1800, 1900 e 2000.

A eclosão da Revolução Francesa encorajou mais e mais pessoas, na França e fora dela, a ler os jornais. Jornalistas exerceram papel importante nos acontecimentos da época, notadamente Jean-Paul Marat, que era amigo de Robespierre, além de escrever para o ‘L’Ami du Peuple’. A revolução foi boa para a imprensa.

E a imprensa, por sua vez, foi boa para a revolução, conferindo legitimidade a ela. Também desde uma perspectiva global, os anos por volta de 1800 foram um tempo de mudanças significativas. A América hispânica, por exemplo, viu o surgimento dos primeiros jornais independentes, entre os quais ‘Mercurio Peruano’ (1791) e ‘El Pensador Mexicano’ (1812). No Brasil, o ‘Diário de Pernambuco’ foi fundado em 1825.

Em muitos casos, jornais eram fundados por estrangeiros: foi o caso do ‘British Packet and Argentine News’, fundado em Buenos Aires em 1826, ou do ‘Bombay Times’, fundado em 1838 para atender aos expatriados britânicos na Índia. No Oriente Médio, o primeiro jornal surgiu em francês, em 1795, quando o governo turco autorizou a embaixada francesa em Istambul a publicar o ‘Bulletin des Nouvelles’.

Os jornais não apenas forneciam informações sobre fatos recentes, como encorajavam mudanças de atitude. Não foi por acaso que a ascensão dos jornais e a ascensão da consciência nacional ocorreram juntas na Europa e nas Américas no início do século 19. Os dois fenômenos estavam interligados, já que leitores em um país específico liam as mesmas notícias no mesmo momento.

Igualmente importante, eles tinham consciência da simultaneidade, o que os incentivava a enxergar-se como membros de uma ‘comunidade imaginada’ de leitores.

Outro momento importante na história do jornal ocorreu por volta de 1900. Novos meios de comunicação como o telégrafo e o telefone tinham começado a ser usados. Agências como a Havas, em Paris, e a Reuters, em Londres, recebiam reportagens de fatos recentes e vendiam a informação aos jornais.

Outra mudança de importância foi a profissionalização do jornalismo. Foi apenas por volta do ano 1900 que começaram a existir papéis especializados, como os de repórter, editor, colunista ou correspondente no exterior. Foram fundadas associações profissionais de jornalistas, entre elas a Associação Nacional de Jornalistas (1886) na Grã-Bretanha e o Instituto Americano de Jornalistas (1889), enquanto a famosa escola de jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York, abriu suas portas em 1912.

Foi também na parte final do século 19 que se começou a fazer jornalismo investigativo. Na Grã-Bretanha, W.T. Stead descreveu a situação habitacional miserável dos pobres de Londres e a escala da prostituição juvenil, enquanto nos Estados Unidos Lincoln Steffens expôs o que chamava de ‘a vergonha das cidades’ -em outras palavras, a corrupção de muitas administrações municipais.

Ainda outro avanço importante ocorrido por volta do ano 1900 foi a ascensão da imprensa popular, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Até aquele momento, os jornais tinham sido produzidos para as elites. Na Grã-Bretanha, por volta do ano 1900, o ‘Daily Mail’ e o ‘Daily Mirror’ vendiam 1 milhão de cópias por dia cada um.

Na França, ‘Le Journal’ (1892) e ‘Le Matin’ (1885) seguiram o modelo anglo-americano e também passaram a vender mais de 1 milhão de cópias diárias cada um a partir de 1900, graças em parte a acontecimentos sensacionais como o caso Dreyfus e o escândalo do Panamá. Além de reduzir seus preços, os jornais populares mudaram o discurso do jornalismo, tornando-o mais dramático, ou, como diziam seus críticos, ‘sensacionalista’.

Um terceiro momento importante na história da imprensa ocorreu cem anos mais tarde, por volta do ano 2000, com outro conjunto de transformações, incluindo a publicação on-line (alguns de vocês, sem dúvida, estão lendo este artigo on-line).

Menos evidente, mas igualmente importante, é a globalização do jornalismo (incluindo o radiojornalismo e o telejornalismo). Hoje corporações multinacionais são donas de muitos jornais, revistas e canais de televisão. Os perigos dos monopólios na imprensa são evidentes, mas há outras consequências também.

No mundo de fala espanhola, por exemplo, ao transmitir o que frequentemente são virtualmente os mesmos programas, tanto os noticiários quanto as telenovelas, a mídia contribui para a criação de comunidades imaginadas, como a América Latina, que extrapolam a nação.

A globalização da mídia também abrange a ascensão de canais não ocidentais, notadamente a Al Jazeera, fundada no Qatar, em 1996, uma rede de jornalismo árabe hoje amplamente presente em versões em inglês e outras línguas. Pela primeira vez na história da mídia moderna, notícias produzidas fora do Ocidente são consumidas no Ocidente. A meu ver, a ascensão de canais como a Al Jazeera será um dos desenvolvimentos mais significativos no futuro próximo.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de ‘O Que É História Cultural?’ (ed. Zahar).

Tradução de Clara Allain .’

 

Marcelo Coelho

A democracia na caverna

‘A primeira edição de ‘Opinião Pública’, um clássico do pensamento político finalmente publicado no Brasil, data do ano de 1922. Sem fazer grandes referências ao rádio, e nem sequer cogitando da invenção da TV, o jornalista Walter Lippmann (1889-1974) faz uma análise pioneira, e em boa parte ainda atual, do poder da propaganda e das ideias preconcebidas sobre a mentalidade popular.

O acesso do ser humano à realidade dos fatos, observa Lippmann, tende a ser tão precário e enganoso quanto dizia o velho mito platônico da caverna. Aliás, o trecho do livro 7 da ‘República’, de Platão, em que se descreve a vida de habitantes isolados do mundo exterior, condenados a ver apenas as sombras projetadas nas paredes da gruta a que foram confinados desde o nascimento, constitui a epígrafe do livro de Lippmann.

Não estamos, entretanto, diante de um pretensioso tratado a respeito dos limites do conhecimento humano. Lippmann tem uma visão muito pragmática e organizada dos problemas que aborda e, na maior parte do tempo, recorre a exemplos concretos, tirados de situações históricas recentes, para expor seus pontos de vista.

Lippmann escrevia sob o impacto dos dois grandes eventos que marcaram o início do século 20 -a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Rus- sa-, e um dos méritos mais notáveis de sua estratégia de exposição está na capacidade de articular rápidas e pitorescas menções aos dilemas políticos de seu tempo ao quadro de uma exposição teórica mais ampla.

A ambiguidade dos tratados militares, a exploração sentimental de meias verdades a respeito dos horrores da guerra, os boatos sistematicamente espalhados em torno das ações dos bolcheviques, para nada dizer da censura permanente e da propaganda escancarada de que se valiam as grandes potências europeias nos anos de 1914-18, são suficientes para Lippmann desenvolver, em capítulos curtos e convincentes, sua desencantada visão a respeito da virtual impotência do cidadão comum para decidir, nas modernas democracias, qualquer coisa de relevante com um mínimo de conhecimento de causa.

Exposição clara

Para o leitor de hoje, empapado de relativismo e submetido, há muitas décadas, a um conjunto de técnicas de manipulação incomparavelmente mais sofisticadas, este livro dificilmente traz revelações.

Sua utilidade não será pequena, contudo, numa classe de primeiro ano de uma faculdade de comunicação. Tem o mérito da exposição clara, muitas vezes bem-humorada, e sobretudo livre do jargão e do tom abstrato que tornam, por exemplo, quase ilegível um outro clássico do gênero, ‘A Construção Social da Realidade’, escrito por Peter Berger e Thomas Luckmann, na década de 60.

É com vistas a esse público, provavelmente, que a editora Vozes escolheu ‘Opinião Pública’ para inaugurar uma nova coleção, destinada aos clássicos da comunicação social.

Dois aspectos diminuem o alcance dessa iniciativa. O primeiro é que a acerba análise que Lippmann empreende da prática jornalística de seu tempo se inscreve, na verdade, numa crítica mais ampla da própria ideia de democracia, tal como defendida pelos fundadores do sistema político americano.

Um teórico como Thomas Jefferson, por exemplo, acreditava no autogoverno das pequenas comunidades de proprietários rurais. Como transferir essa concepção provinciana aos desafios (e à imensa quantidade de informação) exigidos pelo papel que os Estados Unidos adquiriam na política internacional do século 20? É no contexto dessa pergunta que ganha força a crítica de Lippmann ao jornalismo americano da década de 1920.

Do mesmo modo, parece hoje um pouco anódina sua confiança em instituições especializadas de pesquisa social e de estatística, único antídoto, é verdade, de que dispomos para a debilidade de nossas fontes de acesso direto ao conhecimento da sociedade.

O segundo aspecto a prejudicar a utilização do livro em salas de aula é a espantosa inépcia da tradução. Erros clamorosos pululam a cada página, sem contar os problemas de concordância verbal e a inoportunidade das notas de rodapé. ‘Missa’ vira ‘massa’, ‘atribuído’ se torna ‘apontado’, a batalha do Marne, na França, é transposta para o Maine, na Nova Inglaterra, e assim por diante.

A lucidez de Lippmann sobrevive, apesar de tudo, a tão inglórias batalhas contra o tempo e a tradução. Mais de 80 anos depois de escrito, seu livro ainda merece ser discutido, e não deixa de ser uma introdução equilibrada a um campo -o da crítica aos meios de comunicação- em que formas muito mais exaltadas e mesmo obscurantistas de relativismo obtêm imediata aceitação.

OPINIÃO PÚBLICA

Autor: Walter Lippmann

Tradução: Jacques A. Wainberg

Editora: Vozes (tel. 0/xx/24/ 2233-9000)

Quanto: R$ 58,30 (352 págs.)’

 

Juan Cruz

O carteiro

‘George Steiner está prestes a completar 80 anos e publicou no ano passado ‘My Unwritten Books’ (meus livros não escritos, New Directions, 192 págs., US$ 23,95, R$ 56), que causou escândalo, sobretudo no Reino Unido, de cuja Universidade de Cambridge ele foi professor respeitadíssimo.

O escândalo o diverte porque, imagina, deve-se à surpresa sentida por alguns quando observaram que esse livro do professor Steiner, um dos grandes filósofos europeus, cuja idade avançada é desmentida por sua mente extremamente desperta, relata experiências sexuais muito explícitas (e próprias) sem que o pudor o leve a moderar sua linguagem.

O ensaio que motivou o escândalo diz respeito à linguagem e faz a defesa das línguas minoritárias, algumas das quais Steiner imagina que devam ser excelentes para a prática do sexo. O texto começa em tom contundente: ‘Como é a vida sexual de um surdo-mudo? Com que incitações e cadência ele se masturba? Como o surdo-mudo vive a libido e a consumação?’. É claro que a obra não é apenas isso (nem se limita a esse ensaio): é um olhar inteligente sobre os assuntos aos quais Steiner alguma vez quis dedicar um livro (mais precisamente, sete) e que acabaram ficando pelo caminho.

PERGUNTA – Quer dizer que se escandalizaram?

GEORGE STEINER – Sim, muitos. Nunca antes alguém perguntou como é a vida sexual de um surdo-mudo. Já o fizeram em relação aos cegos, mas nunca aos surdos-mudos.

PERGUNTA – É uma pergunta inquietante.

STEINER – Porque as perguntas importantes com frequência são inquietantes. Existe um comentário lindamente desagradável de Heidegger sobre o porquê de a ciência ser tão enfadonha. Ele disse que é porque ela só tem respostas.

PERGUNTA – Havia uma pichação no Equador que dizia: ‘Quando finalmente tínhamos as respostas, nos mudaram as perguntas’.

STEINER – É verdade. Mas as perguntas podem ser inquietantes, e as perguntas relativas ao erótico o são.

PERGUNTA – Ao ler esse ensaio em especial, ‘As Linguagens de Eros’, poderíamos pensar que o sr. não tem pudor algum, nenhum medo das possíveis consequências.

STEINER – Foi por isso mesmo que não escrevi o livro! Escrevi um ensaio, sete ensaios no lugar de sete livros. Estou prestes a completar 80 anos e, como não estou disposto a escrever sete livros, escrevi ensaios sobre o que teria gostado de escrever e por que não o fiz. A melhor definição da vida foi dada por Samuel Beckett: ‘Faça de novo. Tente outra vez. Erre outra vez. Erre melhor’. Eu quis errar melhor, e é isso o que procuro dizer com este livro.

PERGUNTA – Essa frase de Beckett o sr. usa em um contexto em que fala sobre a tristeza e o pessimismo.

STEINER – A tristeza e o pessimismo… Você sabe por que sou tão pouco popular entre meus colegas acadêmicos? Há uma razão muito simples. Ainda jovem, eu já disse que havia uma diferença abismal entre o criador e o professor, o editor, o crítico. E meus colegas não gostaram de ouvir isso.

O capítulo deste livro que foi mais difícil de escrever, ‘Inveja’, é precisamente sobre essa relação com os professores. Foi um pesadelo escrevê-lo. Suei em cada sentença. Como a gente se sente ao viver rodeado pelos grandes, sem ser um deles? Fui o membro mais jovem da Universidade Princeton. Ali vivi ao lado de Einstein e Oppenheimer, e ali eu soube o que eram os gigantes. Veja esse pequeno retrato que está ali [um retrato desenhado de Steiner em sua juventude; debaixo dele está escrito, em italiano, ‘il postino’ -o carteiro]. Eu quero ser o carteiro, quero que me chamem ‘O Carteiro’, como esse personagem maravilhoso do filme sobre Pablo Neruda.

É um trabalho muito bonito ser professor, aquele que entrega as cartas, embora não as escreva. Meus colegas odeiam ouvir isso. A vaidade dos acadêmicos é enorme! Derrida disse que toda a literatura, até mesmo a maior, é mero pretexto. Ao inferno com Derrida! Shakespeare não é um pretexto, Beckett não é um pretexto, Neruda não o é, nem Lorca.

PERGUNTA – O senhor se irrita com Derrida.

STEINER – O que ele disse sobre o pretexto é uma piada de mau gosto. Somos os carteiros, e somos importantes. Os escritores precisam de nós para chegar a seu público. É uma função muito importante, mas não é o mesmo que criar.

PERGUNTA – Em algum momento o sr. diz, com relação ao romance, que hoje este pode às vezes parecer um gênero pré-histórico.

STEINER – Não, eu situaria Proust, Mann, Joyce entre os maiores criadores. O que quero dizer é que talvez os romances estejam chegando ao fim, porque no mundo de hoje imagens e histórias infinitas nos chegam diretamente em nossas casas. Duvido muito que tenhamos outro Proust, outro Faulkner. Os grandes mestres contemporâneos escrevem de maneira breve. Veja o caso de Kafka, o quanto ele é fragmentário. Hoje Shakespeare seria um roteirista.

PERGUNTA – E quem seriam os romancistas de hoje?

STEINER – É muito difícil responder essa pergunta. Acho que Mario Vargas Llosa o é. ‘A Festa do Bode’ é, sem dúvida alguma, um dos melhores romances de hoje. Também o é ‘Cem Anos de Solidão’, de García Márquez. ‘O Tambor’, de Günter Grass. ‘Filhos da Meia-Noite’, de Rushdie. Philip Roth talvez seja a pessoa mais inteligente que existe, e sua trilogia sobre a política norte-americana [‘Pastoral Americana’, ‘Casei com um Comunista’ e ‘A Marca Humana’] é magnífica.

Mas o próprio formato do romance corre perigo. As pessoas estão procurando formas mais experimentais. Por que os livros de história, de sociologia e as biografias são mais bem escritos? A prosa de Lévi-Strauss é melhor que o livro de qualquer romancista francês. Há até economistas que escrevem com mais estilo que os próprios romancistas.

Aprenderam com o romance e aplicam o que aprenderam. Mas veja o que acontece hoje. Um rapaz escreve um livro; se tem sorte, o livro é publicado, passa 16 dias nas livrarias e então imediatamente o tiram do mercado. Como se vão fazer escritores dessa maneira? Se isso tivesse acontecido na época de Joyce, ele jamais teria resistido. Você sabe que a Unesco tem uma lista dos livros mais lidos do mundo? E nela há apenas um título francês.

PERGUNTA – Deixe-me adivinhar: ‘Madame Bovary’.

STEINER – Oh, não, o que você está dizendo? ‘O Pequeno Príncipe’. E isso é alarmante. Vendem-se milhões de exemplares todos os anos. Mas as pessoas não leem ‘Madame Bovary’.

PERGUNTA – O sr. acha que deveríamos nos preocupar com essas listas?

STEINER – Sem dúvida. Elas indicam que livros foram best-sellers e em que momento. Houve uma época em que os best-sellers eram Balzac e Dickens. Há uma diferença abismal entre o gênio experimental de escritores como Borges e Beckett e o grande público. É muito provável que milhões de pessoas leiam literatura em formato de gibi. Há pouco li uma versão de Hamlet em quadrinhos e me pareceu brilhante. Reduziram o texto para os momentos essenciais, e Shakespeare certamente teria dito: ‘Nada mal. Meu texto era longo demais’. Rarará.

PERGUNTA – Essa reflexão lembra alguns aspectos de seu livro, em que o sr. discute o confronto entre cultura e mídia e o futuro da cultura.

STEINER – A cultura do futuro não será nossa cultura. A cultura elitista e humanista que conhecemos só pertence a alguns poucos. Recorde que vou completar 80 anos e que antes de completar 20 eu comecei a publicar artigos sobre o porquê de a cultura não fazer frente ao fascismo e aos nazistas.

O que aconteceu? Aqui temos países com culturas superiores, temos as melhores escolas, o melhor teatro, a melhor música. E estes países nossos se converteram em infernos. E não são apenas os países -há grandes artistas que aderem ao fascismo. Nunca deixei de me fazer essa pergunta, e, embora não tenha a resposta, posso afirmar que a cultura e o humanismo não são inteiramente inocentes nem positivos. Walter Benjamin dizia que toda grande obra se ergue sobre uma montanha de desumanidade. É uma verdade incômoda.

PERGUNTA – E o futuro?

STEINER – O que o futuro nos reserva, se evitarmos a guerra? Evitá-la supõe problemas de superpovoamento. Veja os jovens: eles ficam fartos. Um dia vão acabar com os velhos, não saberão o que fazer com eles.

PERGUNTA – Que panorama!

STEINER – É muito fácil ficar sentado aqui, nesta sala, e dizer ‘o racismo é horrível!’. Mas me pergunte a mesma coisa se você se mudar para a casa ao lado de uma família jamaicana que tem seis filhos e ouve reggae e rock and roll o dia inteiro. Ou quando meu assessor vier me dizer que, desde que a família jamaicana se mudou para a casa ao lado, o valor do meu imóvel caiu pela metade. Pergunte-me, então! Dentro de todos nós, de nossos filhos, e para manter nosso conforto, nossa sobrevivência, se você riscar um pouco verá aparecer muitas zonas escuras. Não se esqueça.

PERGUNTA – Neste livro, o sr. fala da maldade humana, mas compensa falando do lado solidário das pessoas, da compaixão, da amizade…

STEINER – Sim, tudo isso está dentro de cada um de nós e depende das circunstâncias. Se fazem mal a nossos filhos, somos capazes de matar a sangue frio.

PERGUNTA – E outro assunto que o preocupa é que esses personagens estão ganhando destaque pelas mãos de estrelas da mídia.

STEINER – Hegel dizia que toda nova tecnologia é uma nova filosofia. Bill Gates e seus engenheiros transformaram o mundo. O Google transformou a percepção, a memória, como nos comunicamos. A tecnologia é a força mais criativa do momento. Do mesmo modo como o cinema e a televisão são as formas mais criativas de expressão. Sim, estão cheios de lixo, mas toda grande cultura teve muito lixo. Há uma ou duas revoluções que se aproximam e têm a ver com o transplante da memória. Não estamos muito distantes de implantar chips de memória em doentes de Alzheimer. Daríamos a eles um passado artificial. Se isso acontecer, como ficará o eu?

PERGUNTA – E a outra revolução?

STEINER – Está por chegar, me inspira muito medo, e, francamente, prefiro não estar vivo. Poderemos viver uma média de 120 anos. Dentro em muito pouco, será possível rejuvenescer células. Seremos substituíveis, como o motor de um automóvel. O que acontecerá quando os jovens tiverem que cuidar e alimentar tantas pessoas mais velhas? A próxima guerra civil pode ser essa.

PERGUNTA – Parece tema de um romance de Saramago.

STEINER – De um romance e de um pesadelo. Os jovens de hoje precisam pagar impostos, residências para idosos, comida, casa. Há cada vez mais idosos. Acredito firmemente no direito à eutanásia. Envelhecer sem dignidade é um horror. Antes, as famílias mais ou menos podiam dar conta de seus idosos. Agora já não podem mais. Talvez a próxima crise seja a de gerações.

PERGUNTA – Ela já não existe?

STEINER – Não, nós a estamos contendo. Os jovens não saem por aí assassinando os velhos. Em certas culturas esquimós, isso é feito. Quando chega o inverno, os jovens obrigam os velhos a sair de casa ou do iglu, para morrer, para que os jovens possam sobreviver.

PERGUNTA – E existe alguma luz à vista, professor, algo que se consiga enxergar depois do túnel? Há países emergentes, culturas que vão se impondo. A China, por exemplo.

STEINER – Acho que a próxima força artística, intelectual e científica virá da Índia. Temos muitos alunos chineses, e eles são bons anotadores e dizem sim a tudo. Mas os indianos discutem, fazem perguntas.

Este texto foi originalmente publicado na íntegra no jornal ‘El País’. Tradução de Clara Allain .’

 

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