ELEIÇÕES 2010
Humor amordaçado
Quem achou graça nas sequências ao lado, em que os integrantes do ‘Casseta & Planeta’ imitam os presidenciáveis na caça aos votos, vai ter que esperar até o fim da eleição para rir de novo.
Assustados com as novas regras do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), os humorísticos da TV foram obrigados a puxar o freio na cobertura da corrida ao Planalto.
Para os comediantes, o veto a qualquer piada que ‘degrade ou ridicularize candidato, partido político ou coligação’ -estabelecido pela resolução 23.191/2009 da corte- caiu como uma lei da mordaça sobre a telinha.
‘É o estilo Dunga dominando a eleição’, diz o casseta Hélio de la Peña. ‘O povo devia ter direito a se divertir um pouco com a política, já que será obrigado a sofrer com o horário gratuito.’
No ar desde 1992 na Globo, o ‘Casseta’ tomou a medida mais radical para se adaptar à norma em vigor desde o dia 1º: baniu qualquer referência aos candidatos até outubro.
Os quadros sobre as eleições agora são limitados a personagens fictícios como o candidato do Partido do Polvo Profeta, inspirado no molusco que previa os resultados dos jogos na Copa.
‘A gente preferia tratar de absurdos mais reais, como o jingle do Collor com a Dilma, mas a lei entende que você só trata de política para favorecer ou prejudicar alguém. Estão levando o humor muito a sério’, afirma La Peña, que ‘incorporou’ Marina Silva (PV) na última paródia dos presidenciáveis, em junho.
No ‘CQC’, a ordem é insistir na cobertura da eleição de verdade, mas com restrições. Uma delas foi aposentar recursos de computação gráfica que ajudavam a dar um tom mais irreverente às entrevistas -a lei proíbe usar ‘trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo’ que possa ser interpretado como deboche.
‘É lamentável. Fomos obrigados a abrir mão dos cartunistas eletrônicos, que eram parte importantes da nossa cobertura’, declara Marcelo Tas, líder dos engravatados da Band, o ‘CQC’.
Outra mudança forçada foi a abertura de espaço para os candidatos nanicos, sob o risco de perder audiência.
‘Estamos tomando cuidado para seguir a lei, mas acreditamos que essas restrições prejudicam bastante. Os políticos já entenderam que os os microfones do ‘CQC’ os ajudam a se conectar com uma audiência que está de saco cheio deles’, diz Tas.
As regras do TSE também preocupam a turma do ‘Pânico na TV’. Depois de levantar a audiência e o humor dos parlamentares com os desfiles de Sabrina Sato em vestidos justíssimos no Congresso, o programa estuda uma fórmula para manter a política na pauta.
O diretor Alan Rapp, que estava viajando na semana passada, disse à coluna Outro Canal que nenhuma piada vai ao ar sem consulta prévia aos advogados da RedeTV!: ‘Não consigo fazer quase nada. Sigo o que diz o jurídico da emissora’.
REBOLATION
Antes de as novas regras entrarem em vigor, os humorísticos protagonizaram alguns dos melhores momentos da pré-campanha.
No ‘CQC’, José Serra (PSDB) fez piadas de duplo sentido e brincou com o apelido de vampiro: ‘Aprecio muito pescoços de mulheres. Mas não a ponto de morder para tirar sangue’.
Sempre blindada por assessores, Dilma Rousseff (PT) baixou a guarda no ‘Pânico’ e disse a Sabrina que, se eleita, vai dançar o rebolation. Promessa de campanha?
Editorial
À espera da TV
Não surpreende que os dois principais candidatos à Presidência da República mantenham-se empatados na primeira pesquisa de intenção de voto do Datafolha após a oficialização das candidaturas. Nenhum fato significativo aconteceu para que se pudesse alterar o panorama da disputa.
Questões que ocuparam espaço na imprensa, como as insinuações do deputado Indio da Costa, vice da chapa de José Serra, sobre as relações do PT com as Farc e o narcotráfico estão longe de entusiasmar o eleitor.
Da mesma forma, por mais que possam ser graves, as revelações sobre vazamento de dados sigilosos do tucano Eduardo Jorge, com vistas à confecção de um dossiê por ‘aloprados’ petistas, tampouco inscrevem-se no topo da lista de prioridades da população.
Andando para lá e para cá, distribuindo sorrisos e declarações insossas, Serra e Dilma trocaram, é verdade, algumas farpas, mas nada aconteceu que se assemelhasse a um debate, no qual pudessem expor suas virtudes e deixar transparecer seus defeitos.
Quando se observam os dados em mais detalhes, as vantagens e desvantagens de cada um parecem se anular mutuamente. Assim, Serra perde terreno entre as mulheres, enquanto Dilma Rousseff oscila negativamente no Nordeste; a petista vai bem na Bahia, Pernambuco e Distrito Federal, mas seu adversário mantém vantagem em São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.
Salvo algum acontecimento inesperado, tudo indica que os dois entrarão empatados na fase decisiva da campanha, a partir de 17 agosto, quando terá início o horário eleitoral na TV -que, como mostra a pesquisa, é o meio mais utilizado pelos eleitores para buscar informações.
RÁDIO
Com programa em farsi, Israel ganha ouvintes no Irã
Transmitido de um pequeno estúdio em Jerusalém -provavelmente um dos poucos lugares do mundo em que bandeiras de Israel e do Irã convivem em harmonia-, um programa de rádio faz semanalmente o que parece impossível: conecta iranianos e israelenses.
Para desgosto dos líderes do regime iraniano, o serviço em farsi da rádio pública de Israel conquistou audiência considerável no Irã, onde internet, TV e outras mídias estão sob censura.
O incômodo chegou a tal ponto que o líder supremo do país, Ali Khamenei, disse em sermão que a ‘rádio sionista’ incita divisões entre o povo e a República Islâmica.
Menashe Amir, um israelense nascido no Irã que apresenta o programa há 50 anos, não disfarça o sorriso orgulhoso ao falar sobre a penetração que suas palavras alcançam no país.
Ele conta que, há anos, parou de telefonar para o Irã, porque sua voz se tornou conhecida e poderia colocar em apuros suas fontes, caso o regime estivesse grampeando a ligação. ‘Mas conseguimos fazer um noticiário bastante abrangente sobre o que acontece no Irã, e os iranianos reconhecem que somos bastante confiáveis.’
O programa em farsi do Kol Israel, serviço público israelense de rádio, teve início em 1957, quando o então premiê, David Ben-Gurion, apostava numa aliança estratégica com Irã, Turquia e Etiópia.
Amir, que chegou ao programa três anos depois, lembra que, na época, Israel e Irã mantinham sólidas relações diplomáticas e que o objetivo do serviço em farsi era aproximar os dois países.
Tudo mudou com a Revolução Islâmica, em 1979, quando Israel passou a ser satanizado pelo regime iraniano. ‘Nosso papel sofreu uma mudança de 180 graus’, conta Amir. ‘Passamos a mostrar aos iranianos o que acontece no país deles.’
O radialista não gosta da palavra propaganda, que para ele exala um odor de lavagem cerebral soviética.
Descreve seu programa como algo entre o jornalismo e a diplomacia pública, e não hesita em reconhecer que seu papel é defender as posições de Israel. Mas insiste em que seu maior objetivo continua a ser a aproximação bilateral. ‘Irã e Israel são aliados naturais, e espero que voltem a ser amigos.’
Amir lembra uma entrevista concedida nos anos 1980 pela mulher do aiatolá Khomeini em que ela dizia que o pai da Revolução Islâmica não perdia seu programa.
Hoje, estima que a audiência no Irã esteja entre 2 milhões e 6 milhões, algo difícil de comprovar.
NO AR
A Folha acompanhou a transmissão de um programa de domingo, quando ouvintes falam por telefone com Amir. Como a ligação entre os dois países é impossível, os ouvintes que vivem no Irã usam um número na Alemanha, que direciona as chamadas para o pequeno estúdio de Jerusalém.
‘Ouvimos gente contra e a favor do regime’, diz Amir, 70, homem de fala e modos suaves, no estúdio decorado com recortes de artistas iranianos e caricaturas do presidente Mahmoud Ahmadinejad. ‘A única coisa que não permitimos é que falem contra qualquer religião.’
Para ele, a aplicação de sanções que paralisem totalmente o regime iraniano é a única forma de derrubar o regime atual. Ele calcula que ao menos 60% dos iranianos são contra o atual governo.
‘Percebo muito desespero nas pessoas que ligam para o programa, porque a repressão é inclemente’, diz Amir. ‘Mas acho que a maioria aguentaria sanções dolorosas se isso significasse o fim do regime.’
TELEVISÃO
Silvio Santos sensual: ‘Eu vou colocar a mão no seu cofrinho, hein?’
Roque, traz as flores. Silvio está galanteador. Às vésperas dos 80 anos e ainda ao som do eterno refrão ‘ritmo, é ritmo de festa’, o apresentador só pensa naquilo.
Silvio Santos quer zoom nas ‘mais belas dançarinas’ da TV, faz enquetes sobre ‘a hora da intimidade’ (leia-se sexo), consulta o auditório sobre o verbo adequado (opções: botar, enfiar ou introduzir) e é só ‘elogios’ às convidadas do programa que comanda aos domingos, das 19h45 à meia-noite.
Para Helen Ganzarolli, ex-’Banheira do Gugu’, por exemplo, disse: ‘Penso muito em você. Quando eu vou ao banheiro, penso em você. Fico tomando banho e cantando: ‘A Helen vem aí, ai, ai, ai, ai, ai!’. Helen, você está cada vez mais bonita’.
À atriz Lívia Andrade (de ‘A Praça É Nossa’), outra convidada de um dos quadros fixos com atores (quase sempre do SBT), perguntou: ‘E a sua cama faz barulho na hora da intimidade?’.
Quando vai distribuir os ‘aviõezinhos’ (notas de R$ 100, R$ 50 ou R$ 10) ao auditório, pergunta se deve ‘botar’, ‘enfiar’ ou ‘introduzir’ novas notas entre as que carrega nos bolsos do paletó.
Nem as moças do ‘auditório mais feminino do Brasil’ escapam dos galanteios. Em maio, diante de uma mulher de microvestido e farto decote, não se conteve: ‘Eu vou colocar a mão no seu cofrinho, hein?’, disse, antes de ‘encaixar’ entre os seios dela a nota de R$ 100.
Em seguida, fez o mea-culpa: ‘Posso fazer tudo isso, porque a Íris (Abravanel) nunca sabe se estou brincando ou falando sério’.
‘Quando vou ao banheiro, penso em você. Fico tomando banho e cantando: ‘A Helen vem aí, ai, ai, ai, ai, ai!’. Você está cada vez mais bonita’
SILVIO SANTOS, apresentador, 79, para Helen Ganzarolli
Olhos nos olhos De tanto usar colírio para tirar a vermelhidão dos olhos nas gravações de ‘Passione’, o ator Germano Pereira, do núcleo italiano da novela, teve parte da retina ‘corroída’. Ficou dois dias fora das gravações para se recuperar.
Visão de autor Estreante em novela, mas experiente em teatro, o ator foi ‘pescado’ pelo próprio autor da trama, Silvio de Abreu, que o viu em cena com uma versão de Hamlet budista. O personagem dele em ‘Passione’, aliás, dá uma virada nos próximos capítulos. Vai brigar com o pai para ficar com um antigo amor.
TV farofa Será tendência na Record? Depois de Rodrigo Faro, que elevou o ibope de ‘O Melhor do Brasil’ fantasiado de Lady Gaga, Elba Ramalho e Xuxa, Marcos Mion se caracterizou como o ídolo teen Justin Bieber em ‘Legendários’.
Cofre do Clô E o ‘Tudo a Ver’, também da Record, levou Gugu à mansão de Clodovil Hernandes (1937-2009). Enquanto o apresentador passeava pela casa, a tela exibia a legenda: ‘O que tem no cofre do Clodovil?’.
Jogo do bicho Indagado sobre os dois bonecos de formigas com que vai contracenar em ‘Formigueiro’, na Band, Marco Luque confirmou: Tana e Jura são uma espécie de versão do Louro José, o companheiro de Ana Maria Braga na Globo.
Mulheres levam beleza e graça ao ‘CQC’
Ernestina Pais, 38, ocupa a bancada do ‘CQC’ argentino desde o início de 2009. Vestiu terno para substituir o fundador do programa.
Uma tragédia forjou o jeito desenvolto. O pai, militante de um grupo armado de esquerda, foi sequestrado pela ditadura argentina e sumiu. ‘Me sentia abandonada. Eu era engraçada para chamar a atenção. Da dor, nasce esse tipo de personalidade.’
Personalidade que Monica Iozzi, 28, conheceu há um ano, quando chegou ao final de um concurso que escolheu mais um membro do ‘CQC’ brasileiro. ‘Aí fui ver quem ela era no YouTube.’
Formada em artes cênicas, Monica não quer ser atriz quando está em Brasília.’Questiono, como o povo, coisas que eu quero saber.’
Ficou ‘muito assustada’ com a agressão física que sofreu do deputado Nelson Trad (PMDB-MS), em junho. ‘Mas muita gente não vai votar mais. Beleza.’
Apesar do que ‘já ouvia’, se surpreendeu com o ‘tanto de interesses [escusos] em Brasília’. Mas faz uma ressalva: ‘Tem pessoas boas lá’.
Alessandra Stanley, The New York Times
‘Mad Men’ evita fadiga com reviravolta
‘Quem é Don Draper?’ é a pergunta que abre o primeiro episódio da quarta temporada de ‘Mad Men’, que começa hoje nos EUA. É uma piscadela em direção aos espectadores que passaram três anos vasculhando os segredos e a psique prejudicada do publicitário enigmático.
O drama da emissora AMC sobre publicitários de Manhattan no início dos anos 60 já deixou de ser apenas um favorito cult. ‘Mad Men’ virou um fenômeno cultural, mais ou menos como foi ‘Família Soprano’.
A série mostra um meio comum -a competição no trabalho- e localiza o humor presente nas distorções de uma visão pelo espelho retrovisor. É o espetáculo de gente como a gente fazendo coisas que hoje nos parecem estranhas, como fumar ou deixar as crianças brincar com sacos de lavanderia.
É um seriado que seduziu a moda, a publicidade e a língua inglesa. Há bonecas Barbie e uma linha de roupas ‘Mad Men’ da Banana Republic e livros de cultura pop.
Assim, há uma sobrecarga de ‘Mad Men’ no ar e até uma reação contrária a ele.
FADIGA
A angústia existencial de Don virou cansativa ocasionalmente, assim como seus problemas conjugais. Os espectadores ansiavam por se afastar do front doméstico e voltar às escaramuças em sua agência, Sterling Cooper.
Felizmente, o criador da série, Matthew Weiner, encontrou uma artimanha para evitar a fadiga de ‘Mad Men’ no final do terceiro ano.
A Sterling Cooper está recomeçando, agora como Sterling Cooper Draper Pryce, e Don também o está. Quando a série começou, em 2007, a agência publicitária era tão bem-sucedida que praticamente fazia parte da elite branca americana.
O diretor criativo, Don Draper (Jon Hamm), casado com a bela Betty (January Jones), tinha pouca coisa a comprovar, exceto, talvez, suas façanhas extraconjugais.
Mas, quando a empresa-mãe britânica da Sterling Cooper foi vendida a uma gigante ainda maior de publicidade, Don e seus colegas se separaram dela e perderam sua complacência. Tornaram-se uma agência pequena e empobrecida.
Agora, no início da quarta temporada, um ano já se passou, e os executivos da Sterling Cooper Draper Pryce fazem telefonemas para cortejar clientes. Os contratos desaparecem. A situação dos negócios é precária.
A vida pessoal de Don também está alterada. Betty lançou-se em novo casamento.
E Don agora se vê sozinho em um apartamento escuro, lustrando seus próprios sapatos e saindo com mulheres que não conhece.
REFERÊNCIAS
A narrativa serpenteia por uma linha do tempo de turbulências políticas e transformações sociais, como algo saído da revista ‘Life’ -o assassinato de John Kennedy é um fato transformador.
Mas isso nem sempre fica evidente para quem vive nesse mundo. Os redatores brincam uns com os outros no trabalho. Peggy e um colega chamam um ao outro de ‘Marsha’ e ‘John’, numa alusão a Stan Freberg, redator de anúncios e humorista que fez sucesso em 1951, com um single, ‘John & Marsha’.
Referências como essa amarram o mundo fictício da Draper Pryce ao universo publicitário real daquela época.
Mas essas deixas também carregam a promessa de que a próxima temporada vá novamente girar em torno do local de trabalho. Foi ali que ‘Mad Men’ começou e teve seus melhores momentos. Reiniciar no cenário da disputa profissional é o que este seriado precisa.
Vanessa Barbara
Um beijo para os meus familiares
ESPREMER-SE com um grupo de amigos a fim de caber no enquadramento e sorrir para a máquina fotográfica está entre as práticas mais degradantes do ser humano. Não há páreo para as pochetes, o telemarketing, as excursões a Porto Seguro, a podologia com ênfase em micoses, o vestido balonê.
Pior que isso, só os agrupamentos formados em torno de um repórter e uma câmera de TV, em geral na avenida Paulista. É quando o indivíduo perde de vez a noção do ridículo, decidindo que vai fazer ‘poropopó’ vestido de esquilo durante uma passeata em comemoração ao Dia Mundial da Vergonha Alheia.
‘O repórter Fulano de Tal está com a colônia alemã em Blumenau.
É com você, Fulano’, anuncia o apresentador no intervalo de uma partida da Copa, e corta para um correspondente tentando encaixar o ponto eletrônico na orelha.
Em questão de segundos, ele dá a deixa para a galera (entre eles, o homem vestido de esquilo), e o que era até então um bate-papo entre cinco senhores pacatos vira uma balbúrdia concentrada diante da tela. Ao que tudo indica, é o momento mais empolgante da vida daqueles alemães -todos tocando fole e com vestes típicas.
É ainda mais triste quando o evento só existe em função das emissoras ali presentes. Alguns câmeras de TV costumam liderar marchas de protesto e dirigem as massas, solicitando que parem, voltem, façam tudo de novo. ‘Estamos ao vivo’, ele informa, e os populares fazem a festa, com os ‘urrús’ de praxe. ‘Corta’, ele diz, e todos vão pra casa cuidar de seus afazeres.
Os closes na gente simples do povo, no popular exaltado e na viúva inconsolável deviam ser proibidos por lei. A gracinha final da repórter de tailleur afetando intimidade com o entrevistado podia muito bem dar cadeia, sem direito a sol no pátio.
Gente que acena para as câmeras, olhando de esguelha para ver se a gravação já acabou: três meses de trabalhos forçados. Dançarinas sorrindo e rebolando com vistas a se destacar das demais: Sibéria nelas. Populares indignados querendo aparecer: extração dentária com chave de grifo.
Quanto aos repórteres, a única punição suficientemente rigorosa é o voto de silêncio.
JORNAL DO BRASIL
Ferreira GullarÉ, jornais também morrem
A PRIMEIRA VEZ que entrei numa redação de jornal foi em São Luís do Maranhão. O jornal era ‘O Combate’, cujo redator-chefe chamava-se Erasmo Dias, famoso por seus editoriais implacáveis. Fui até lá levado pelo poeta Manoel Sobrinho, o primeiro que conheci na vida, quando estava certo de que todos os poetas já haviam morrido, tal como os que lia na ‘Gramática Expositiva’, de Eduardo Carlos Pereira.
Erasmo estava sentado numa sala pequena e escura, que mais parecia um buraco, e comia o almoço, ali mesmo, numa marmita, sobre sua mesa de trabalho. Manoel Sobrinho me apresentou a ele e pediu-me que lhe entregasse o soneto que trazia no bolso e que assinalaria minha estreia na literatura universal. De boca cheia, Erasmo garantiu que o publicaria no dia seguinte -e o publicou. Intitulava-se ‘O Trabalho’, se não me engano. Saí um tanto desapontado com o ambiente daquela redação e com o jornalista.
As redações que conheci depois causaram-me melhor impressão, mesmo as outras de São Luís. Alguns anos depois, já no Rio, passaria de visitante a empregado. Deixo de lado as redações de ‘O Cruzeiro’ e ‘Manchete’, que eram revistas semanais, para referir-me às do ‘Diário Carioca’, do ‘Jornal do Brasil’, do ‘Diário de Notícias’, porque as redações de jornal eram diferentes das das revistas. Sabem por quê? É que estas funcionavam (e ainda funcionam) de dia, enquanto as dos jornais funcionavam à noite.
Pelo menos nos que trabalhei, jornais matutinos que chegavam às bancas de manhã cedo, enquanto os vespertinos eram distribuídos depois do almoço. Mais tarde, viraram todos matutinos, como era inevitável que ocorresse, já que poucas notícias novas traziam em comparação com os concorrentes.
Mas, como disse, estes eram feitos basicamente à noite, às vezes entrando pela madrugada. O trabalho para valer iniciava-se por volta das seis da tarde, quando acabava o expediente das repartições públicas e as pessoas se recolhiam às suas casas. A cidade parava e o que acontecia, a partir daí, eram fatos ocasionais, como um crime ou um furo político.
Assim que o ambiente dessas redações era excitante e, em alguns casos, divertido, como o da redação do ‘Diário Carioca’, de que já falei em outra ocasião. O espírito brincalhão, que ali imperava, era provavelmente reflexo do bom humor de seu redator -chefe, Pompeu de Souza, que induzia redatores e repórteres a explorar o lado pitoresco ou engraçado das notícias.
Desse espírito compartilhava Luiz Paulistano, o chefe de reportagem, que certa vez dedicou uma série de matérias a um gavião que devorava pombos nas torres da Igreja da Candelária, situada perto donde funcionava o jornal.
Esse espírito gozador e irreverente afinava comigo e, assim, quando fui para o ‘Jornal do Brasil’, em 1958, ao iniciar-se a sua famosa reforma, levei-o comigo e logo tratei de pô-lo em prática, para desagrado do seu editor-chefe, que queria um jornal sério.
Mas outros companheiros, vindos daquela mesma redação brincalhona, terminaram por impô-lo no velho matutino que então renascia: ‘Moeda de Miss é beijo’, ‘Descoberta a causa da falta de água no Rio: Macacos’, ‘Detectado o vírus da icterícia: é redondo’…
Àquela altura, o ‘Diário Carioca’ já fazia água, mal conseguia pagar os salários dos empregados. Levou 30 anos para fechar as portas, mas fechou-as. Jornais custam a morrer. O ‘Jornal do Brasil’, em consequência da reforma que fez dele o mais moderno jornal brasileiro da época, conheceu longo período de prestígio, o que lhe aumentou a tiragem e os anunciantes.
No curso das últimas décadas, muitos jornais do Rio -alguns que fizeram história- pararam de circular. O ‘Jornal do Brasil’ entrou em crise já faz tempo, tendo se mantido graças a acordos com políticos e empresários, que dele se valeram para incrementar seus próprios projetos. Ou porque pretendiam apenas se servir dele mais do que salvá-lo, ou porque, quando um jornal começa a morrer, não há quem o salve, a verdade é que sua morte foi recentemente anunciada.
Melhor assim do que vê-lo circulando, como vinha, destituído de todas as qualidades que fizeram dele um grande jornal.
Wilson Figueiredo
Da crise política fez-se o ‘JB’
Testemunha da ascensão e do declínio do ‘Jornal do Brasil’, onde trabalhou de 1957 a 2003, chegando a diretor de Redação, Wilson Figueiredo rememora episódios da histórica reforma que modernizou o ‘JB’ e as sucessivas crises políticas que moldaram o perfil do jornal. Em setembro o ‘JB’ deixará de circular em papel.
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QUANDO O ‘COMITÊ CENTRAL’ DA EMPRESA Jornal do Brasil começou a examinar, na segunda metade dos anos 50, a ideia de definir o futuro com base em critérios universais do jornalismo moderno, foi abalado pela profecia segundo a qual jornais que chegam à beira do colapso não voltam a ter circulação digna de sobrevivência. Ninguém se lembrava de jornal que tivesse se recuperado de decadência prolongada.
A imprensa brasileira da época estava em olor de antiguidade. Diz a tradição oral que a condessa Pereira Carneiro não levou a profecia a sério e bateu o martelo em favor da reforma. Tinha como garantia a receita dos anúncios classificados, que jorravam nos guichês das agências e asseguravam o monopólio natural da oferta e procura de trabalho, oportunidades e necessidades. Era aos classificados do ‘JB’ que recorria quem precisasse de uma cozinheira, o que lhe valeu o apelido de ‘jornal das cozinheiras’. O olho gordo do mercado cobiçava o privilégio.
A tradição oral do ‘JB’ também diz que, por ocasião das sucessivas crises engatadas -suicídio de Getúlio e campanha presidencial precipitada por JK-, as primeiras-damas e viúvas dos jornais do Rio se encontraram num evento social e trocaram ideias sobre a situação tensa. Depois que Niomar Moniz Sodré (pelo ‘Correio da Manhã’) e Ondina Dantas (pelo ‘Diário de Notícias’) opinaram, a condessa Pereira Carneiro emitiu a opinião pelo ‘Jornal do Brasil’. Ao terminar, ouviu uma delas observar, com espanto simulado: ‘Então o ‘jornal das cozinheiras’ já tem opinião formada?’.
REFORMA COMPLETA A ideia de recorrer a uma reforma completa não tinha precedente digno de registro. O jornal, que havia se reduzido ao mínimo indispensável, fornecia também informações práticas demais para serem publicadas como notícias, ao lado de telegramas internacionais e textos de colaboradores, de preferência os acadêmicos da casa, o ministro Annibal Freyre, Manuel Bandeira, Múcio Leão e Josué Montello.
A direção, a Redação e as oficinas do jornal estavam, desde o começo do século 20, no número 110 da avenida Rio Branco, o primeiro edifício na América Latina construído em estrutura metálica, de procedência inglesa. A reforma não sintonizava com as pessoas nem seria compatível com o jornalismo burocrático, conformado à rotina sem criatividade. A velha Redação, sem ao menos uma máquina de escrever, se negava a apresentar outra visão dos fatos e outra maneira de apresentá-los.
A resistência finalmente se rendeu e se afastou, ao custo de um atraso providencial na execução do novo ‘JB’. A direção aceitou os riscos e alongou os prazos para que a nova Redação praticasse o moderno jornalismo que blindou o jornal na hecatombe nos anos 60, quando desapareceram de cambulhada os vespertinos, substituídos pelo jornalismo da televisão na hora do almoço.
Em seguida, chegaria a vez dos matutinos, reduzindo o número de jornais de repercussão nacional (‘Correio da Manhã’, ‘Diário de Notícias’, ‘O Jornal’, ‘Diário Carioca’) ao longo dos anos 60. O ‘JB’ se destacava pelo modo de fazer jornal e representar a classe média, que veio inaugurar a sociedade de consumo, cujo símbolo seria o automóvel de fabricação nacional. O governo JK [1956-61] começava a ser reconhecido e se reservava lugar no futuro.
NOVAS EXIGÊNCIAS A liberdade de imprensa se ampliou. Daí por diante, o jornal ocupou o espaço vazio entre a imprensa anterior e os novas exigências do jornalismo, que experimentava recursos ainda distantes do Brasil, mas já tirava de cena os resíduos provincianos.
Até então, o prestígio do jornalismo se aferia no emprego público dos que assinavam artigos e reportagens. Para os demais, o jornalismo não passava de reforço do orçamento de cada um. Nos anos 50, eram sagradas nas redações as relações de nomes de desafetos do dono ou da família dele, que não deviam comparecer às páginas de jornais senão em notícias depreciativas. Em poucos anos, o jornalismo alcançou um padrão de salários que pressupunham trabalho em tempo integral e dedicação exclusiva.
O jornal deu a medida de sua criatividade na foto da reunião em que JK se dirigia fagueiro ao secretário de Estado americano Foster Dulles. A legenda subentendia no gesto dos dois uma peça de sucesso no teatro de revista: ‘Me dá um dinheiro aí’. O episódio gerou estremecimento entre o Palácio do Catete e o ‘JB’, mas chamou a atenção para o novo jornal.
Nem só de mocidade se fez, no entanto, a reforma, que começou pela limpeza gráfica. O ‘JB’, que deu o toque brasileiro aos fatos internacionais, com correspondentes nas matrizes dos fatos, já estava em condições de administrar, mais do que salários, a consideração profissional. O jornal entrava com a sua parte e o Brasil completaria, com inesperados e contundentes episódios, acumulados e mal resolvidos desde 1930.
LITERATURA E ARTES Precedidas pelo ‘Suplemento Literário’ do ‘Jornal do Brasil’, que saiu um ano à frente do novo jornal e anunciou o novo tempo, a literatura e as artes plásticas derrubaram preconceitos estéticos com alegria renovadora e humor de competição. A crise política não fez cerimônia: alinhavou o sentido oculto nos fatos, desde a morte de Getúlio Vargas e o advento fulminante da candidatura Kubitschek.
(A sucessão presidencial se enrolou preliminarmente e, quando nada mais havia a perder após a vitória de JK, reapareceu o tumulto, para complicar a posse. A aparência de normalidade seria mais uma vez recomposta e a crise entraria de férias, para se reapresentar mais adiante, por iniciativa do presidente Jânio Quadros, à frondosa sombra da democracia.)
Movido pela mocidade de sua nova Redação, o ‘JB’ acertou o passo com os fatos e não mais ficaria para trás. Em 1960, compareceu com convicção e vontade à inauguração de Brasília, em abril; integrou-se à cobertura da sucessão presidencial e foi testemunha da vitória de Jânio Quadros.
A reforma que trouxe o ‘Jornal do Brasil’ do anonimato dos classificados para uma nova realidade política coincidiu com a dificuldade latente na vida brasileira.
DE CRISE EM CRISE A crise voltaria logo, pela renúncia presidencial, e o novo ‘JB’ aprenderia depressa a lidar com material diferente da rotina e a se fazer presente onde quer que a notícia acontecesse. E não deixava de acontecer. Já não se referia ao ‘jornal das cozinheiras’, mas ao ‘jornal da condessa’.
De Jânio Quadros, a crise política passou aos cuidados de João Goulart e acabou nas mãos dos militares, sem deixar de ser a mesma crise, vista com outros olhos. A sequência de presidentes militares pelo voto indireto (do Congresso) só terminaria em 1985, por exaustão, com a volta do poder à responsabilidade civil.
O lançamento nacional da reforma do ‘JB’ se consolidou a partir da renúncia de Jânio e da difícil negociação em torno da posse de Goulart. Foi um momento de atualização intensiva para a rapaziada, que entendeu a oportunidade como um presente dos deuses. E passou a aplicar-se, em tempo integral, sem assinar ponto e sem hora de chegar e sair. Uma nova associação de vida e trabalho.
A crise, sempre renovada, foi em frente. Depois da renúncia, atormentou o governo João Goulart e culminou no golpe de Estado de 1964. O ‘JB’ fez um curso rápido de crises e se diplomou em dificuldades específicas de situações previsíveis.
A edição histórica do dia 14 de dezembro de 1969 apresentou o Ato Intitucional nº 5 no papel de bruxa de Shakespeare. A edição valeu a aprovação dos mais velhos e credibilidade junto à juventude. O efeito multiplicador reforçou a imagem do jornal.
Ficou na tradição oral do jornalismo o episódio em que a condessa Pereira Carneiro, em almoço a ela oferecido pelo presidente Costa e Silva, dele ouviu a queixa da severidade com que o tratava o ‘JB’ em seus editoriais. E explicou que era norma a ‘crítica construtiva’, que ele reconheceu e agradeceu, com a ressalva de que ‘gosto mesmo, senhora condessa, é de elogio’.
REAVALIAÇÃO A matéria-prima política desse período, que misturou causas e consequências, ajuda a situar no tempo, 25 anos depois da abertura política, a reavaliação -sob outra ótica- do declínio e desaparecimento de empresas jornalísticas no obscuro período sob a censura.
O ‘JB’ foi um caso à parte. Não foi sobrenatural, mas coincidência que o acaso se recusou a assumir. Não constou da ata a ressalva de futuros ajustes, nem recibo de quitação. Há mais a decifrar do que a sobrevivência do ‘JB’ por um período que o tempo compactará como a sequência que levou a nação a conclusões ainda por serem explicitadas.
Os jornais passaram a conviver com os efeitos do impacto das novas condições da economia, entre os quais o advento da classe média com ímpeto participante, embora em outro contexto político, sob o signo da normalidade institucional.
O saldo do ‘JB’ deixou o exemplo de uma escola moderna de jornalismo, ainda a ser estudada no quadro político, econômico, social e cultural do tempo já histórico em que transcorreu. Pois à medida que a crise política se impôs, o ‘Jornal do Brasil’ marcou presença junto aos fatos e com opinião representativa e a coerência possível. Com a volta à normalidade política, porém, a empresa se desencontrou do destino que os jornais também têm, mas que não se lê nas estrelas.
Depois da renúncia, a crise atormentou o governo João Goulart e culminou no golpe de Estado de 1964. O ‘JB’ fez um curso rápido de crises e se diplomou em dificuldades específicas de situações previsíveis.
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