‘As preces das pessoas que desejavam que as notícias reais da televisão seguissem o exemplo de Jon Stewart [humorista americano que distorce o noticiário] foram atendidas em 9 de fevereiro de 2005. Um jornalista de verdade tomou de empréstimo uma técnica usada no falso noticiário para transmitir notícias reais sobre notícias falsas, no horário nobre. Permitam-me explicar.
No telejornal ‘Countdown’, da rede MSNBC, o âncora Keith Olbermann abriu com uma nota ao estilo típico do ‘Daily Show’ [programa humorístico de TV] de Jon Stewart: montagem rápida de vídeos editados com humor ilustrando a aparente estupidez daqueles que nos governam.
No caso, os oito trechos de vídeo traziam cenas gravadas entre fevereiro de 2004 e o final do mês passado e continham imagens de um repórter chamado ‘Jeff’. Na maioria deles, o porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan, dizia ‘pergunte, Jeff’, e ‘Jeff’ rebatia com uma pergunta capciosa cujo objetivo era não obter informação, mas elevar a estatura do presidente Bush e difamar seus adversários políticos.
No último trecho, ‘Jeff’ está entrevistando o presidente diretamente, na primeira coletiva após sua segunda posse. Mencionando Hillary Clinton [senadora por Nova York], ‘Jeff’ pergunta: ‘Como o senhor vai trabalhar com pessoas que parecem ter se divorciado da realidade?’.
Se não vivêssemos em uma era em que a cultura noticiosa mesma está divorciada da realidade, a história talvez parasse por ali. ‘Jeff’, poderíamos supor, era um repórter amestrado de uma organização legítima, ainda que direitista, como a Fox, e um vídeo com os melhores momentos de sua campanha para puxar o saco dos poderosos geraria boas risadas.
No entanto os vídeos transmitidos no jornal de Olbermann não eram falsos. ‘Jeff’ estava mesmo na Casa Branca, e participou dos diálogos registrados, com o verdadeiro McClellan e com o verdadeiro presidente Bush.
O nome verdadeiro de ‘Jeff Gannon’ é James D. Guckert. A empresa que o empregava é o site Talon News, cuja equipe é composta essencialmente por ativistas republicanos trabalhando sem remuneração. Suas ‘notícias’ muitas vezes não passam de comunicados reciclados da Casa Branca.
Mesmo assim, por quase dois anos a Casa Branca manteve a credencial de Gannon, um repórter de uma empresa de mídia falsa, sem leitores reais.
De que forma isso aconteceu é um mistério ainda não resolvido. ‘Jeff’ agora se demitiu da Talon News, não porque ele e a empresa tivessem sido expostos como farsa, mas devido a outras embaraçosas revelações, em blogs, que o vinculavam a sites como hotmili tarystud.com (um site erótico sobre soldados) e a uma promissora carreira como ‘acompanhante’ pornô cobrando US$ 200 por hora de trabalho.
Se Guckert, autor de matérias exclusivas para a Talon News como ‘Kerry pode se tornar o primeiro presidente gay’, é outro elo na rede infindável de republicanos gays que assumem posições públicas homofóbicas, o tema não deixa de ser interessante. Mas isso não deveria desviar nossa atenção da verdadeira notícia, que gira em torno da estranha posição desse falso repórter como membro da máquina de propaganda da Casa Branca, que se torna mais curiosa a cada dia.
Pelos meus cálculos, ‘Jeff Gannon’ já é pelo menos o sexto ‘jornalista’ (quatro dos quais desmascarados neste ano) a ser identificado como propagandista pago -quer pelo governo Bush, quer por um aliado muito próximo como o Talon News- que ao mesmo tempo trabalha para organizações de mídia que supostamente veiculam notícias reais.
Dos seis, dois eram colunistas publicados em diversos jornais dos EUA e tinham seus salários pagos pelo Departamento da Saúde, com o objetivo de promover as iniciativas do governo quanto a casamentos. Os outros quatro se faziam passar por jornalistas de verdade na TV, cujas ‘reportagens’, transmitidas em mais de 50 jornais de todo o país, agora foram classificadas como ‘propaganda encoberta’ e consideradas ilegais pelo governo.
O dinheiro usado para pagar três desses falsos repórteres foi canalizado por meio da mesma empresa de relações públicas, a Ketchum Communications, que recebeu US$ 97 milhões da verba total de US$ 250 milhões que o governo reserva às relações públicas. As trapaças envolvendo os repórteres desmascarados respondem por apenas uma fração do dinheiro. Temos ainda de descobrir onde foi parar o restante.
Mesmo agora, sabemos que as notícias falsas geradas pelos seis trapaceiros são apenas uma pequena parte do esforço geral de propaganda do governo. O presidente Bush não estava brincando quando classificou a notoriamente mansa entrevista coletiva que concedeu um dia antes da invasão do Iraque como ‘roteirizada’, enquanto o programa ainda estava no ar. Tudo é roteirizado.
Durante a campanha eleitoral do ano passado, as reuniões entre cidadãos e o presidente em pequenas cidades, durante as quais as pessoas supostamente podiam fazer perguntas a Bush (pergunta típica: ‘senhor presidente, enquanto criança, como posso ajudá-lo a conseguir votos?’), eram na verdade cuidadosamente produzidas para a televisão.
Um ‘Serviço de Influência Estratégica’, no Pentágono, com o objetivo de gerar itens noticiosos (alguns dos quais falsos) dirigidos à imprensa internacional, para fins de propaganda, foi fechado em 2002, quando se tornou uma fonte de embaraços políticos. Mas, de maneira muito mais discreta, outra divisão de propaganda do Departamento da Defesa, o Pentagon Channel, foi acrescentada recentemente como canal gratuito em uma rede de TV a cabo dos EUA. Quanto será que demorará até surgir o canal do seguro social?
É uma estratégia brilhante. Quando o governo Bush não está usando o dinheiro dos contribuintes para comprar notícias falsas, faz tudo o que pode para bloquear e restringir os repórteres reais, que poderiam contar aos americanos o que vem acontecendo dentro daquilo que, teoricamente, constitui o governo deles.
A incapacidade dos jornalistas reais para penetrar na Casa Branca atual não se deve totalmente à Casa Branca. Os erros das organizações noticiosas reais servem perfeitamente aos esforços do governo para confundir as fronteiras entre o falso e o real, e assim demolir a idéia de que poderia existir uma imprensa verdadeiramente objetiva e independente.
Os conservadores, que supostamente deploram o pós-modernismo, agora dão boas-vindas ao admirável mundo novo onde é um axioma que as notícias não podem conter realidade empírica, mas apenas aquela que as pessoas desejam ouvir (ou a que eles desejam que as pessoas ouçam). E a freqüente ineficácia do pessoal de imprensa em Washington não faz muito para penetrar essa cortina de fumaça do governo. Tradução de Paulo Migliacci’
Tribuna da Imprensa
‘Mais técnicas de Bush para manter a mídia sob controle’, copyright Tribuna da Imprensa, 21/02/05
‘Um acúmulo de dados contundentes comprova a obsessão do governo Bush pelo controle e manipulação da informação e da mídia. E não me refiro a indícios antigos evidenciados pela conduta pessoal do presidente George W. Bush, que já apontavam nessa direção, mas aos fatos concretos mais recentes, o último dos quais gerou um escândalo nos últimos dias, o caso de ‘Jeff Gannon’.
Jeff, estranho personagem, pintou certo dia na sala de imprensa da Casa Branca, dizendo-se jornalista de um website conservador sem qualquer expressão, quase desconhecido, chamado Talon News – propriedade de uma organização igualmente suspeita, uma tal GOP USA, sendo GOP iniciais do apelido do Partido Republicano (Great Old Party), e USA, claro, Estados Unidos da América.
Um raciocínio elementar já identificaria Jeff, o Talon News e o GOP USA como capas óbvias de uma picaretagem grossa. Mas a Casa Branca estranhamente deu ao cidadão que representava os dois grupos suspeitos (para dizer o mínimo) o privilégio de receber credencial para participar dos ‘briefings’ do porta-voz de Bush, lado a lado com o ‘New York Times’, ‘Washington Post’, ABC, CBS, NBC, etc.
Até o nome dele era falso
Pior do que isso: graças ao governo (no início Scott McClellan e seus porta-vozes subordinados da sala de imprensa, e depois também o próprio presidente, George W. Bush em pessoa), o tal Jeff virou estrela, embora fosse falso até o nome dele (o nome real é James D. Guckert). Isso porque o picareta não perguntava, como os jornalistas: só levantava a bola, com ataques à oposição, para McClellan (ou Bush) chutar em gol.
A rotina fraudulenta se repetiu ao longo de meses. E a farsa afinal escancarou-se na coletiva de Bush a 26 de janeiro. O presidente, já há algum tempo, passara a adotar procedimento novo nas entrevistas. Escolhia com extremo cuidado cada perguntador. A encenação parecia obedecer a um script. E excluía gente que faz perguntas difíceis, como a veterana Helen Thomas, decana dos correspondentes na Casa Branca.
No dia 26 um dos contemplados com a honra de perguntar foi o bom e velho Jeff, chamado com simpatia por Bush. O falso jornalista fez então sua pergunta, que era um editorial. Disse que o líder oposicionista Harry Reid falava em ‘fila da sopa’, como se o país estivesse na depressão, e Hillary Clinton descrevia uma economia ‘à beira do colapso’. E arrematou: ‘O senhor acha que ainda pode trabalhar com gente desse tipo?’
Só um completo idiota não percebeu a farsa. Até porque Reid e Hillary não tinham dito aquilo. Um extremista do conservadorismo bushista, o radialista de ‘talk show’ Rush Limbaugh, é que fabricara aquelas imagens para ridicularizar os dois. O próprio radialista, muito ‘honrado’, fez a correção em seu programa do dia seguinte, vangloriando-se das suas imagens fantasiosas e enchendo a bola de Jeff.
Recebendo vazamentos ilegais
Diante de tanta coisa concreta, toda a comunidade jornalística afinal ousou indagar quem era o falso jornalista e como era admitido ali, se não passava de picareta. O caso ganhou destaque e Jeff demitiu-se ante a revelação de que seus websites fajutos ainda eram ligados a outros, pornográficos. Ficou no ar a pergunta: quem deu credencial ao picareta, rejeitado antes ao tentar uma no Congresso?
Jeff também já fora escolhido antes como um dos privilegiados a receber vazamento ilegal da informação que identificou Valerie Palmer como agente da CIA. Esse caso, ainda sob investigação, ameaça comprometer autoridades como Karl Rove – marqueteiro e alto assessor de Bush. Pois o vazamento pode ter sido vingança contra o marido de Palmer, ex-embaixador Joseph Wilson.
O pecado desse ex-diplomata foi ter constatado na áfrica, a serviço da CIA, que não passava de fraude a suposta prova de que o Iraque tentara comprar urânio em Níger. Ele denunciou o presidente porque, mesmo depois de comprovada tal fraude, Bush ainda repetiu a versão mentirosa num pomposo discurso do Estado da União, perante sessão conjunta do Congresso.
A mesma obsessão do engodo
Daria para relevar o escândalo Gannon como apenas mais uma trapalhada da Casa Branca, não fosse a sucessão de casos que comprovam a obsessão de usar a mídia, com fraude, para enganar o país. Mais quatro antecedentes:
1. Dinheiro do contribuinte foi usado para pagar dois atores, Karen Ryan e Alberto Garcia. Vídeos gravados por eles, como se fossem repórteres, falando de decisões maravilhosas do governo e eram usados por centenas de emissoras de TV no país (o orçamento da ‘operação’ era de US$ 124 milhões). Ryan e Garcia tinham feito a mesma coisa antes, em comerciais da indústria farmacêutica;
2. Armstrong Williams, outro suposto jornalista (habituado a participar de debates em ‘talk shows’, defendendo Bush e sua gente), recebia dinheiro de órgão oficial (ao todo, US$ 240 mil), o Departamento de Educação, para defender como magníficas e revolucionárias as controvertidas iniciativas educacionais do governo Bush;
3. Mike McManus foi pilhado em flagrante levando grana (do Departamento de Saúde) para falar bem do governo na TV e no rádio. Como especialista em ‘ética e religião’, nome de sua coluna na mídia, proclamava as maravilhas do programa Bush de ‘defesa do casamento’;
4. Maggie Gallagher, próspera profissional do império Murdoch de desinformação (‘New York Post’ e rede Fox, e mais veículos pelo mundo afora), chegou a ser atraída em 1998 por uma editora de extrema direita, a Regnery, para fazer o livro de Paula Jones (descrevendo, por exemplo, as características peculiares do pênis do presidente Clinton). O governo Bush também pagou a ela, mas para exaltar o ‘programa casamenteiro’. Até que faz sentido: se entende de pênis, deve ser boa em casamento.’
ENTREVISTA / JUDITH MILLER
‘O sigilo que pode dar cadeia’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/02/05
‘Em quase três décadas como repórter do New York Times e autora de best-sellers sobre terrorismo e Oriente Médio, a jornalista Judith Miller, de 57 anos, ganhou prêmios, colecionou críticos mordazes e demonstrou incomparável talento para manter-se em evidência. Hoje, ela é personagem central de um enredo que não escreveu, mas que poderá levá-la à cadeia e adicionar uma dimensão heróica – a de mártir na defesa da liberdade de imprensa – à sua controvertida reputação.
‘Isso a reabilitou um pouco’ entre seus colegas, disse na semana passada Lucy Dalglish, a diretora do Comitê de Repórteres para a Liberdade de Imprensa.
Ela se referia a uma decisão que uma comissão de três juízes do Tribunal Federal de Apelações de Washington anunciou na terça-feira, rejeitando recurso apresentado por Miller e Matthew Cooper, vice-chefe da sucursal da revista Time em Washington, contra ordem de prisão por até 18 meses que receberam de um juiz federal, em outubro, por ignorar intimação para revelar suas fontes a um grande júri que investiga o vazamento à imprensa da identidade de uma agente da CIA, Valerie Plame, por altos funcionários da Casa Branca.
Os juízes determinaram que a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão, não protege os acordos de confidencialidade entre jornalistas e suas fontes, em investigações criminais. Os advogados de Miller e Cooper entraram com novo recurso e o caso deve chegar à Suprema Corte.
O vazamento de nomes de agentes dos serviços de inteligência americanos é, potencialmente, crime federal nos EUA, embora haja controvérsia também a esse respeito. O caso que pode levar Miller e Cooper à cadeia começou em julho de 2003 com a publicação do nome da espiã pelo colunista ultraconservador Robert Novak, no Washington Post e dezenas de outros jornais. O vazamento foi uma clara vendeta política contra o marido de Plame, o ex-embaixador Joseph Wilson, um democrata que um mês antes causara enorme embaraço à administração. Num artigo publicado no New York Times, em junho, Wilson revelara que havia realizado uma missão especial para a CIA no Níger e constatado serem falsas as afirmações feitas pelo presidente George W. Bush num discurso ao Congresso, no início daquele ano, sobre a compra de minério de urânio no país africano pelo ditador Saddam Hussein.
Em vez de ir direto às fontes do vazamento, ou pressionar Novak a revelar quem lhe disse que Plame trabalhava na CIA, o promotor especial nomeado para investigar o caso investiu contra os jornalistas que apuraram o caso. Alguns foram liberados do compromisso de confidencialidade por suas fontes e compareceram perante o grande júri – um grupo de 21 cidadãos que determina se houve ou não crime. O próprio Cooper chegou a depor uma vez.
O fato de Miller ter se tornado alvo das investigações é especialmente intrigante, por várias razões. Embora tenha feito algumas entrevistas, ela nada escreveu a respeito. Além disso, Miller é vista como uma jornalista politicamente próxima dos neoconservadores que mandam na administração americana. As matérias que produziu sobre o programa de armas químicas do Iraque, antes da invasão do país, e um livro que publicou sobre o tema ajudaram Bush a vender a noção de que Saddam possuía armas de destruição em massa e representava um perigo iminente à segurança dos EUA.
Não foi a primeira vez que a jornalista ajudou a acirrar os ânimos em relação ao Oriente Médio. No livro Covering Islam (Cobrindo o Islã), o intelectual americano-palestino Edward W. Said, já falecido, descreveu um dos best seller de Miller – God Has Ninety Nine Names (Deus tem Noventa e Nove Nomes), de 1996, sobre a militância radical no Oriente Médio – como ‘um manual das impropriedades e distorções da cobertura do Islã’ nos meios de comunicação nos EUA.
Miller é figura polêmica dentro da própria redação do New York Times. Em maio, Howard Kurtz, que cobre imprensa para o Washington Post, revelou uma troca de mensagens de e-mail entre ela e o chefe do escritório do Times em Bagdá, John Burns, nas quais este a admoestou por ter entrevistado e publicado matéria com político iraquiano Ahmed Chalabi sem seu conhecimento. Chalabi, hoje em desgraça em Washington, era então próximo dos neoconservadores da administração e grande fornecedor das informações falsas sobre o arsenal de armas de Saddam.
Este mês, o ombudsman do próprio New York Times, Daniel Okrent, criticou Miller por afirmações que ela fez no programa Hardball, da MSNBC. Citando fontes anônimas, Miller disse que a administração Bush estava se reaproximando de Chalabi – uma informação que ainda não havia publicado no Times.
Christopher Simpson, professor da Escola de Comunicação da American University, em Washington, e estudioso das leis que regem a imprensa nos EUA, vê na ameaça de prisão de Miller e Cooper ‘uma estratégia do governo para intimidar os meios de comunicação’, que, segundo ele, aumentou com a ascensão das forças conservadoras na política americana.
‘Há, contudo, uma deliciosa ironia nesse caso’, observou ele ao Estado. ‘Judith Miller causou mais intimidação e mágoa entre jornalistas profissionais do que qualquer outro repórter e fez uma carreira de sua associação com a ala neoconservadora do Partido Republicano.’ Segundo o professor, ‘nos últimos 20 anos, Miller promoveu em suas matérias uma linha de alarme extremo sobre o que ela define como terrorismo e que vai muito além da realidade’.
Esta é uma das raras entrevistas exclusivas que a jornalista deu sobre o caso.
Como você descreveria sua situação se tivesse que escrever a respeito.
Não quero descrevê-la… É uma situação absurda, na qual estou sendo acusada de desacato à Justiça por me recusar a prestar depoimento sobre algo que pode nem ter sido um crime e a respeito do que nunca escrevi. É uma coisa meio orwelliana.
O que está em discussão?
A questão subjacente é se jornalistas devem ou não ser considerados como advogados, membros do clero, esposos, médicos e terapeutas, que estão legalmente dispensados de comparecer perante grandes júris para depor sobre fatos de que tomaram conhecimento no exercício de suas atividades profissionais ou na privacidade do lar. Em 1972, a Suprema Corte decidiu que esse privilégio não se estende aos jornalistas. Mas desde então 49 Estados e o Distrito de Columbia, por meio de leis e decisões judiciais concluíram que essa proteção aos jornalistas existe ou deveria existir. A ironia é que se o caso estivesse num tribunal estadual em Nova York, onde eu trabalho, na corte municipal do Distrito de Colúmbia, onde eu trabalho, e não na Justiça federal, eu não teria de comparecer ao grande júri.
Mas os juízes rejeitaram o argumento apresentado por seu advogado, segundo qual a Primeira Emenda da Constituição protege os jornalistas contra intimações para depor em investigações criminais federais….
Nossa posição é que muita coisa aconteceu desde que a Suprema Corte tomou tal decisão em 1972 e esperamos que os juízes, quando começarem a pensar a respeito, compreenderão que as situações evoluem, as leis mudam, a lei comum mudou e as atitudes quanto à natureza vital, essencial da imprensa também mudaram. Tivemos, desde então, Watergate, guerras e crises, e em todos os casos a imprensa desempenhou papel central.
Você está pronta para ir para a cadeia se a Justiça rejeitar seus argumentos de forma definitiva?
Estou. Tenho de estar, para proteger a confidencialidade das fontes, que é vital para nossa profissão. Somos apenas tão bons como jornalistas quanto forem as nossas fontes. Se as pessoas não confiarem em que as protegemos quando elas nos dão informações que podem ser ilegais ou impróprias, ou revelar atividades ilegais ou impróprias, elas deixarão de nos procurar. E o governo está tornando cada vez mais difícil para as pessoas falar sobre atos ilegais ou impróprios.
Isso é mais acentuado na atual administração ou vem de antes?
Nos EUA, isso tem acontecido com governos republicanos e democratas, mas aumentou, especialmente, desde o 11 de Setembro. A tendência ao sigilo não é republicana ou democrata.
Em seus artigos no ‘New York Times’ você sempre procurou assinalar que um dos problemas do Oriente Médio é a falta de democracia. Como se sente, como jornalista e cidadã do país que consagrou a liberdade de imprensa e diz exportar liberdade, agora que é alvo de uma ordem de prisão por exercer o jornalismo.
É por isso que sou otimista que, no final, o tribunal chegará à conclusão apropriada. Eu acredito em nossa democracia. Acredito que temos mais liberdade aqui do que em qualquer outra parte do mundo, para dizer o que pensamos e praticar nosso ofício. Eu sei qual é a diferença, por experiência própria, entre a cobertura jornalística aqui e em outros países. Seria, de fato, uma triste mensagem se os EUA, ao mesmo tempo em que dizem estar promovendo a democracia ao redor do mundo, começassem a reprimir a imprensa em casa, que é um dos garantes da nossa democracia.
Você foi criticada por outros jornalistas no passado e mais recentemente por ter escrito matérias que ajudaram a montar o argumento sobre a existência de armas químicas no Iraque e justificar a invasão do país. Isso tem afetado o nível de solidariedade que você está recebendo, agora, de seus colegas?
Nós todos cometemos erros, baseados em nossas fontes. A informação (sobre armas químicas no Iraque) estava errada. Hoje sabemos isso. Quando (o então diretor da CIA) disse que a existência de armas de destruição em massa no Iraque era evidente, ele não estava falando isso somente para mim, ele estava falando para o presidente dos EUA. A polarização provocada pela guerra fez com as pessoas buscassem bodes expiratórios, e eu era um bode expiatório natural.’
EUA / CASO MILLER
‘Mandar esses dois jornalistas para a prisão seria extremamente injusto’, Editorial copyright Los Angeles Times in O Estado de S. Paulo, 20/02/05
‘Você não vai ler isso com freqüência numa página de editorial, mas os jornalistas não estão acima da lei. Essa verdade desconfortável foi confirmada por três juízes federais na terça-feira. Eles mantiveram a decisão de um tribunal de instância inferior que determinou que dois jornalistas – Judith Miller, do New York Times, e Matt Cooper, da revista Time – terão de ir para a cadeia se não revelarem suas fontes a Patrick J. Fitzgerald, o promotor público especial que está investigando vazamentos na Casa Branca.
Os vazamentos expuseram uma agente do serviço de informações porque o governo Bush implicava com o marido dela. Isso parece um crime. Mas se os jornalistas estão isentos do dever normal dos cidadãos de testemunhar sobre o conhecimento de um crime e o autor do vazamento também está isento com a justificativa de não se incriminar, talvez não haja nenhuma forma de esse crime ser punido.
Não surpreendentemente, acreditamos que o trabalho dos jornalistas é socialmente valioso. E às vezes são necessárias fontes anônimas para fazer esse trabalho. É por isso que somos a favor do privilégio do jornalista de honrar sua promessa de sigilo, mas compreendemos que dois avisos podem ser socialmente valiosos, também. Primeiro, esse privilégio não pode ser absoluto. Precisa ser analisado em relação a outras considerações tais como a aplicação da lei. Segundo, abalar esse equilíbrio não pode ficar somente a critério dos jornalistas individualmente. Essa avaliação precisa ser feita por tribunais ou, preferencialmente, pelo Congresso, com um lei nacional de proteção.
Há mais de três décadas que o privilégio concedido aos jornalistas tem sido uma confusão, diferentemente, por exemplo, do privilégio de advogados e cônjuges de não testemunhar contra alguém. Os jornalistas têm precisado prometer o anonimato sem saber se isso pode levá-los para a cadeia. Se a extensão do privilégio fosse mais definida, a maioria dos jornalistas não prometeria o que não poderia cumprir.
O problema no caso de Miller e Cooper é que eles já prometeram manter o anonimato e se sentem obrigados a cumprir essa promessa, independentemente do que decidirem os tribunais.
Miller e Cooper nem mesmo foram aqueles que publicaram o nome do espião da CIA. Isso foi feito pelo colunista Robert Novak, e o mistério porque ele não está fazendo as malas para ir para a prisão continua sem solução.
Cooper chegou a testemunhar a uma determinada altura, quando um suspeito da investigação sobre o vazamento lhe pediu para confirmar que o promotor público estava visando o alvo errado. Cooper fez isso e imediatamente foi citado novamente por outra evidência.
Nesse ponto está difícil de acreditar que Fitzgerald tenha qualquer dúvida sobre a identidade do culpado ou que tenha muito a ganhar atormentando Cooper e Miller.
Fitzgerald provou que, se os jornalistas não devem ter total critério para resolver sobre a extensão do seu privilégio, também não devem ter os promotores. E é por isso que necessitamos de uma lei clara.
Nesse ínterim, enviar para a cadeia esses dois dedicados jornalistas – que nem mesmo estiveram envolvidos no vazamento da CIA – seria extremamente injusto e absurdo.’