No período compreendido entre a quarta-feira de Cinzas e a Páscoa, conhecido no calendário católico como quaresma, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promove, anualmente, a Campanha da Fraternidade. Este ano o tema proposto para o período quaresmal é ‘fraternidade e segurança pública’ e o lema, inspirado na máxima do profeta Isaías, ‘a paz é fruto da justiça’ (Is 32,17).
Já tratamos neste Observatório da Imprensa da complexidade que envolve o tema da segurança pública. O problema da violência e da criminalidade é, infelizmente, um fenômeno mundial. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, as mortes por causas externas correspondem a grande parcela de óbitos em, praticamente, todos os países do mundo, ocupando, sempre, a segunda ou terceira colocação. Porém a sua distribuição quanto ao tipo de causa é diversa.
Diversos fatores contribuem para a violência e, consequentemente para a deterioração das condições objetivas da segurança pública. Questões no âmbito pessoal (características individuais, uso de drogas); fatores sócio-econômicos (exclusão social, desemprego, miséria); fatores ambientais (locais ermos, mal iluminados, tráfico de drogas); corrupção de agentes públicos; sensação de impunidade; problemas do sistema de justiça criminal (corrupção, violência policial); fatores institucionais: insuficiência e incompetência do Estado, crise do modelo familiar, recuo do poder da Igreja; fatores culturais: problemas de integração racial e desordem moral; demografia urbana: as gerações provenientes do período da explosão da taxa de natalidade no Brasil chegando à vida adulta sem muitas referências éticas; e o surgimento de metrópoles, sem a mínima infra-estrutura, que receberem uma fortíssima migração nas últimas décadas; a mídia, com seu poder, que colabora para a apologia da violência; a globalização mundial, com a contestação da noção de fronteiras; e o crime organizado (narcotráfico, posse e uso de armas de fogo etc.).
A segunda arma mortífera
As estatísticas não relevam tudo…
Em se tratando das estatísticas de crimes, que contam somente uma parte da história da violência em nossa sociedade, recordamos alguns dados que nos ruborizam frente à comunidade internacional. Enquanto a taxa de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil chega a 25,2, na Itália, por exemplo, o índice é de 1,1 por grupo de 100 mil pessoas. No Brasil, com os dados do último ano disponível (2005), foram registradas 47.578 mortes; na Itália, os dados de 2003 indicavam apenas 648 mortes (73 vezes menos).
Quando se trata apenas de homicídios entre jovens, o Brasil avança no indesejável ranking da violência e ocupa a quinta posição, com uma taxa de 51,6 por 100 mil habitantes. No ano em que os dados foram computados – 2005 – ocorreram 17.994 homicídios juvenis contra 29.775 de não-jovens. Na Itália, no ano avaliado (2003), ocorreram 73 homicídios entre jovens e 570 entre não-jovens. Na Europa, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes fica em 1,2 jovens por grupo de 100 mil.
Estes dados fazem parte de um relatório, divulgado em novembro do ano passado, pelo Instituto Sangari, em parceria com a Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla) e Ministério da Justiça. Salvo a notícia, amplamente divulgada, a informação não suscitou nenhum debate ou mobilização nacional.
Os dados disponíveis permitem caracterizar a América Latina como região muito violenta também em termos de mortalidade por acidentes de transporte. Efetivamente, agregando os dados dos 83 países disponíveis por região ou continente percebe-se que a América Latina, com sua taxa de 16,2 óbitos por acidentes de transporte para cada 100 mil habitantes, ultrapassa levemente a América do Norte – 16,1 – e de forma bem mais ampla a Europa (10,5) e a Ásia (11,8). Não obstante, a cada dia que passa e com o aumento no número de automóveis circulando (num país que incentiva o transporte privada em detrimento do transporte público), além de inúmeros homicídios, o carro virou a segunda arma mortífera nas mãos dos brasileiros.
‘Fenômenos culturais’
Na avaliação da ONU, apenas 10% dos homicídios em São Paulo e no Rio são levados ao tribunal. Em Pernambuco, essa taxa é de apenas 3%. Dos casos levados a julgamento em São Paulo, apenas metade acabam em condenação.
No estado do Rio de Janeiro, a polícia matou mais de 1,3 mil pessoas no ano de 2007, o número representa 18% de todos os assassinatos ocorridos no estado. Todos estes óbitos são descritos pelos dados da segurança pública como ‘resistência seguida de morte’. No estado de Pernambuco, cerca de 70% dos homicídios registrados foram praticados por grupos de extermínio, muitos dos quais contam com participação de policiais.
Há que se registrar, ainda, uma série de violências que não se destacam nas estatísticas policiais, mas que causam traumas nas vidas das pessoas; corroem o tecido social; corroboram para o aumento da violência interpessoal e percepção da insegurança. A violência doméstica e contra as crianças e adolescentes; os vários tipos de assédio; o bulling, tão comum e naturalizado nas escolas; o preconceito e o ‘racismo cordial à brasileira’, para citar somente alguns tipos de agressões aceitos como ‘fenômenos culturais’.
Segurança e justiça social
Como falar de segurança pública quando 1% dos latifundiários detém 50% das propriedades rurais produtivas? Nas últimas décadas, milhões de brasileiros foram expulsos do campo e jogados nas periferias de nossas metrópoles. E como naturalizar a legião de sem-terra, formada por 4,5 milhões de famílias? Os índios, vítimas de um massacre secular, continuam assistindo à invasão de suas terras por posseiros expulsos pelo latifúndio. Lembremos da pressão exercida pelo latifúndio em relação à demarcação da reserva Raposa Serra do Sol…
Nas nossas grandes cidades, poucos ricos vivem em situação de verdadeiro apartheid, em condomínios luxuosos, cercados de cercas, câmeras e guardas por todos os lados. As condições objetivas da segurança pública se deterioram; por outro lado, cresce, exponencialmente, a segurança privada: um mercado equivalente a 10% do PIB brasileiro, bom somente para os 10% da população que concentra 75% de toda a riqueza nacional.
Nosso sistema judiciário é um dos mais seletivos e discricionários do mundo. Justiça punitiva para os pobres; leniente, generosa e complacente com os abastados.
Enquanto isso, as nossas prisões assistem a um aumento vertiginoso de sua população: jovens, pobres e negros. Vivem em condições desumanas e de aviltamento da dignidade da pessoa e ao arrepio das leis. Impossível que dali saiam cidadãos capazes de uma vida construtiva na sociedade.
Reformas no sistema de justiça criminal (polícias, judiciário, sistema prisional e de medidas sócio-educativas) são impostergáveis. Porém, serão insuficientes se subsistirem as estruturas injustas que regem a vida social e política brasileira.
Uma inesgotável fonte de renda
Enquanto boa parte da mídia e dos formadores de opinião satanizam os moradores das favelas e fazem do tráfico de drogas o bode expiatório de todos os males sociais, os crimes de corrupção, sonegação de impostos, contrabando e outros, tão nocivos à sociedade, são praticados com a complacência da sociedade e da justiça. Os gabinetes de empresários e políticos corruptos, onde tais crimes são urdidos, não são alcançados pelos olhares da polícia. Uma das polícias, diga-se de passagem, mais violentas do globo.
Quando a violência bate à porta da classe média, o noticiário sai das páginas policiais e ganha os horários nobres da mídia. Imediatamente parlamentares de plantão e apresentadores inescrupulosos e sensacionalistas propõem maior endurecimento das penas. Equivocam-se ao defenderem que o recrudescimento da lei reduz a criminalidade. Pensam que Justiça se faz com o Código Penal, que no Brasil existe só para os pobres. Vide as decisões do Supremo Tribunal Federal em relação aos inúmeros crimes praticados pelos poderosos. Em boa medida e salvo raras exceções, a grande mídia trata a violência urbana de duas maneiras. Ou superexpondo o drama das nossas cidades em folhetins policiais que, na sua maioria, prestam para aumentar o sentimento de impotência da população e, no outro extremo, insuflando a idéia de se fazer justiça com as próprias mãos; ou glamourizando a criminalidade violenta, principalmente o tráfico de drogas, transformando tão sórdida e letal atividade em inesgotável fonte de renda. Vide o sucesso do filme Tropa de Elite – que segundo notícias virará seriado na maior emissora de TV brasileira e outros tantos produtos midiáticos derivados da deificação, pela mídia, da guerra urbana.
‘Aconselhamento’ de padres e bispos
Há que se registrar, ainda, o papel da mídia católica em relação ao tema da segurança pública. Sabe-se que a Igreja tem em suas mãos poderoso conglomerado midiático: são centenas de rádios (somente a Rede Católica de Rádio tem mais de 200 concessões), emissoras de TV, jornais, revistas, além de púlpitos em 9.410 paróquias onde atuam 17.976 sacerdotes, 1.557 diáconos permanentes, 4.003 irmãos religiosos e 34.697 irmãs religiosas (dados de 2005). Com esse poderio, a Igreja promoveria, se desejasse, uma revolução em quaisquer setores da sociedade. Mas ‘revolução’ é uma palavra perigosa demais nessa seara…
Porém, o império da mídia católica é uma colcha de retalhos. As principais emissoras de TV (a Igreja Católica tem 12 emissoras em funcionamento, outras 14 concessões já autorizadas pelo governo, a serem implantadas, e centenas de retransmissoras), têm-se transformado, ao modo de emissoras evangélicas, em púlpitos eletrônicos, visando a uma catequização de seus fiéis. Não apresentam como alternativas à mídia tradicional em termos de qualidade e formato de sua programação. Algumas emissoras competem entre si. Outras disputam espaço dentro de determinados grupos. Outras, ainda, sucumbiram aos apelos mercadológicos, reproduzindo programação de apelo meramente comercial.
Em relação à Campanha da Fraternidade não há uma articulação dos veículos de comunicação católicos para discutir e aprofundar o tema. Tudo se limita à reprodução de um vídeo institucional da Campanha, alguns debates pontuais, e muito ‘aconselhamento’ dado por padres e bispos que, apesar de cheios de boas intenções, pouco entendem da complexidade da violência e da insegurança pública.
Sem risco à ‘ordem pública’
Ora, se a mídia católica não consegue se articular na divulgação, no debate, no aprofundamento, na apresentação de propostas para a sociedade e para o Estado acerca do tema da segurança pública, o que esperar da mídia tradicional, pouco preocupada em debater temas que envolvem mudanças estruturais?
Evidentemente, a Igreja presta relevante serviço à sociedade e aos governos pautando o tema da violência que vem se institucionalizando em nossa sociedade. Porém, a motivação da Campanha é necessária, mas insuficiente para mudar essa realidade. Uma pergunta objetiva seria: que ações de enfrentamento aos dilemas da segurança pública serão articuladas pela Igreja?
Não fosse isso o bastante, assistimos hoje uma tendência no Poder Público em criminalizar os movimentos sociais. Mais uma vez se tenta silenciar a luta dos pobres com o Código Penal.
O presidente do Supremo Tribunal Federal mais uma vez, na semana que passou, deixou clara sua ‘isenção’ sobre o tema. Ameaçou, veladamente, criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Insuflou os movimentos direitistas nacionais, historicamente comprometidos com o latifúndio e a concentração de renda. Afinal, a existência de movimentos sociais fortes, combativos e organizadores sempre arrepiou as elites nacionais e seus porta-vozes na imprensa. São melhores os movimentos sociais cooptados, seja pelo Estado, seja pelos sindicatos pelegos. Sendo assim, não oferecem risco ‘à ordem pública’.
Justiça e paz
Como se não bastassem esse desolador quadro, políticas públicas paternalistas transformam os miseráveis em objeto de esmola, pela via de vários programas ditos ‘sociais’. Os pobres deixam de ser sujeitos de direitos e continuam a ser objetos de favores de políticos bons de mídia e pouco comprometidos com a cidadania.
Será que a Igreja está disposta a lutar pela efetiva mudança desse quadro? Será que o governo está comprometido com mudanças estruturais na gestão pública, tornando o estado verdadeiramente democrático e justo? Será que a imprensa presa pela segurança como um direito de todos, ou simplesmente clama pela segurança de seus principais consumidores (as classes média e alta)?
Porém, inúmeras iniciativas da sociedade civil organizada e de movimentos sociais que lutam em defesa de uma justa distribuição da terra e da renda e pela efetividade dos direitos humanos abundam em nosso país. ‘Justiça e paz se abraçarão’ (Salmo 85,1). Aqui reside a esperança.
******
Filósofo, integrante do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (Crisp), Belo Horizonte, MG