‘O mundo do jornalista de economia é bem diferente da rotina dos que vão atrás do que acontece nas cidades ou na política. O cenário por onde transitam é normalmente de Primeiro Mundo. Salas na maioria das vezes com ar condicionado, nas quais os entrevistados estão de terno e gravata. Nas conversas, sobram expressões em inglês. A pobreza é um índice de renda. A violência, um fator de risco para investimentos. Tudo civilizado.
Muito diferente do dia-a-dia do repórter que tem de percorrer favelas para apurar detalhes sobre tiroteios que muitas vezes ainda estão acontecendo. Suando, tendo de entrevistar pessoas apavoradas e sem perspectiva de achar um banheiro decente.
Mesmo o repórter de política, que convive muito bem com os gabinetes do poder, um belo dia é obrigado a enfrentar uma campanha eleitoral. E, aí, são infindáveis os corpo-a-corpo dos candidatos com eleitores em lugares para lá de longínquos, com lama, valas de esgoto e muita pobreza. Resumindo os dois casos, nada mais do que o Brasil real.
Essas diferenças me vieram à mente durante uma visita de autoridades e jornalistas ao porto de Sepetiba, no Rio. O porto é realmente impressionante, com os contêineres milimetricamente posicionados, guindastes novíssimos, funcionários com equipamentos de segurança e nem um lixo fora do lugar. Nas entrevistas, números sobre projetos de expansão, em centenas de milhões de reais.
Chegaram perto de me convencer que o país está no rumo certo. Não durou muito. Na volta, o rádio trazia mais um crime na cidade. Um aposentado, Josias Tavares, 67, estava brincando numa praça com seu neto de um ano e meio. Era meio-dia, na Barra. Quando estava segurando o neto no escorregador, caiu. Estava morto, vítima de uma bala perdida. Só repetindo para acreditar. Ele foi assassinado enquanto segurava o neto no escorregador da praça. Apesar do absurdo, nada que vá abalar a assepsia do mundo econômico. Afinal, esse caso é apenas mais um dado para a próxima estatística.’
JORNALISMO & CIDADANIA
‘Aspirina para câncer’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br) , 29/07/04
‘O carro arrastava-se pela rua morta. Feia, cinzenta, suja da própria existência. Logo depois, eu devolveria o gravador e iria embora de ônibus. Pior do que plantão, só mesmo a volta para casa. Ficaria esperando, esperando e ninguém apareceria. Só às vezes. Fim de semana é assim mesmo, uma alma extenuada e dois olhos metidos nas várias plaquinhas, estranhas à vontade de chegar.
Pensava nessas coisas, sem ânimo. Por que não ficara em casa? Mas não se falta ao plantão… Não que eu soubesse.
Estávamos, eu e o motorista, na Alameda Nothmann, a uns trinta metros da emissora, na Rua das Palmeiras, quando assomou uma mulher aos gritos de socorro. Veio quase de encontro ao carro e rogou auxílio. Ao chegar mais perto, abri o vidro e me surpreendi: ‘Me ajuda! Me ajuda pelo amor de Deus!!!’. Parecia mais velha do que deveria ser, efeito provável da miséria. Ostentava um buraco no rosto.
Perguntei ao meu colega qual era o hospital mais próximo. Ele hesitou:
– É melhor a gente não ir… Vai dar problema…
– Por quê?
– Vão abrir inquérito. Dá muita dor-de-cabeça…
– Azar, não vou deixar essa mulher morrer. Abra a porta.
Temeroso, embarcou-a. Logo apareceu um homem. O casal sentou-se no banco de trás. Os dois choravam: ela acabara de levar um tiro. ‘Eu vou morrer! Eu vou morrer!’; ele… não sei… Ele tentava consolá-la, mas era repelido… Somei um mais um na minha cabeça e engendrei a trama: os dois deviam morar ali perto, em algum cortiço. Discutiram e ele atirou. Felizmente, a bala trespassou-lhe o rosto e ela vai viver. Ele arrependeu-se. Devem voltar abraçados para casa. Ou não foi nada disso.
Chegamos rápido ao pronto-socorro da Santa Casa. No nosso carro, uma inscrição que deve ter evitado a burocracia: CBN- A Rádio que Toca Notícia.
Levaram-na para dentro. Eu não entrei e disse apenas que a havíamos encontrado na rua. Ninguém perguntou nada. Fomos embora. Contamos a história não mais do que dez minutos depois, na Redação, mas o assunto morreu. Acho que é autodefesa, ou rotina, ainda que bata, literalmente, na nossa porta.
Não me preocupei em ir atrás de nomes, de entrar no ar com esse fato. O infortúnio da mulher baleada – sem gravidade, acredito – não ganharia espaço no rádio, numa cidade como a nossa. Ou talvez devesse ganhar, em se tratando de um fim de semana modorrento. Mas eu não quis falar sobre isso, e a chefia também não se interessou.
Na segunda-feira, folheei as páginas policiais, em busca de alguma nota sobre a mulher. Não saiu nada. Será que deu tudo certo? Nunca mais soube.
O presidente Lula tem falado de auto-estima. Li e, por alguma razão, me lembrei disso tudo – de que raramente me recordo. Associa-se à convicção de ter feito o melhor em um certo momento, rotineiro para a cidade louca, crucial para o ser humano.
Não agi como repórter. Os personagens não eram mais do que fragmentos das redondezas de tudo o que não presta na sociedade. Não precisavam da minha matéria. A verdadeira ajuda eu não poderia oferecer-lhes de pronto: a dignidade e a saúde mental para levar a vida. Todo o resto me soa assessório, como uma aspirina para curar o câncer.
A auto-estima deve resistir a tudo isso, a esse desalento. Mas, penso eu, o jornalista tem que ser o apêndice do cidadão, e não o contrário. O meu ouvinte, naquele dia, ficou em segundo plano. Honestamente, não ligo a mínima. Porque, em larga escala, não era importante para ele. Nem mesmo para mim. De que adianta contar uma história por contar, apenas para ‘informar’? Uma baleada a mais na periferia da decência. Ninguém se importa, é pobre mesmo.
Quase dez anos depois, relato este evento pela primeira vez. Não deixa de ser uma seqüência do meu artigo da semana passada. Houve então quem dissesse que jornalista só existe para dar notícia, que filosofar é bobagem, que o articulista é pedante, aquele papo raso e medíocre de todo o sempre.
Insisto do lado de cá: você, eu, todos nós só seremos jornalistas até o dia em que mudarmos de idéia, por várias e criativas razões que só a vida sabe inspirar. Mas seremos sempre cidadãos. Pode até parecer que sim, mas não é pouco.’
JORNALISMO DECLARATÓRIO
‘A falta que faz um ‘por quê?’’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br) , 30/07/04
‘O XIS DA QUESTÃO – A aceitação e a socialização passiva de declarações de entrevistados é a manifestação de um jornalismo preguiçoso, que se deixa seduzir pelos encantos de frases ditas por gente que sabe muito bem quando e como dizer.
1. Pedintes de ‘aspas’
O saber produzido nas redações devia chegar à Universidade e pelos cursos de jornalismo ser apreendido, para cruzamentos criativos com o saber considerado acadêmico. Por estar convencido disso, sempre gostei de usar, nas minhas disciplinas, procedimentos pedagógicos que levassem os alunos à descoberta de como ocorre a tal ‘prática’ que alguns teóricos olham com arrogância. As incursões ao jornalismo real tornam-se, assim, formas de aprender e, ao mesmo tempo, aproximações que revelam verdades – algumas surpreendentes – do ‘fazer jornalismo’.
Nem sempre o que os alunos descobrem corresponde ao ideário que neles anima o sonho de serem jornalistas. Porém, mesmo quando assim é, as descobertas feitas nessas incursões servem para motivar e alimentar proveitosas discussões.
Certa vez, até eu fiquei surpreendido. No cumprimento da tarefa pedagógica, duas alunas conseguiram assistir à reunião matinal da pauta de ‘local’ da Folha de S. Paulo e, devidamente autorizadas, saíram com o repórter escalado para cobrir um evento em que a estrela principal seria a prefeita de São Paulo. Marta Suplicy é mulher política, sempre de língua afiada, inclusive para descompor jornalistas inconvenientes, quando é o caso. Por isso, para os repórteres escalados, o mais importante da tarefa do dia seria ouvir o que a prefeita diria.
Para os alunos, essa experiência de acompanhar repórteres em ação tem sabor de aventura emocionante. Mas é de difícil execução, porque os repórteres profissionais, com justas razões, não gostam de trabalhar sob a observação crítica de estudantes metidos a investigadores. Dessa vez, porém, o repórter pouco se importou com a presença das duas estudantes. E fez o seu trabalho naturalmente.
Revelou, assim, o que realmente é: um repórter trapalhão, além de trapalhão, indolente. Chegou tarde a todas as entrevistas. E perdeu, por isso, declarações importantes da prefeita e de outras personalidades.
Para se safar, fez algo que deve ser freqüente em sua rotina diária de repórter atabalhoado: pediu ajuda aos colegas. E o fez, abordando-os da seguinte maneira: ‘Fulano, você gravou? Me empresta umas aspas aí, por favor’.
Repetiu várias vezes a frase, ao longo da tarde.
2. Sedução declaratória
Ri muito com a descrição do episódio. Manifesta-se, nessa gíria engraçada, a cultura do gravador, que os tempos modernos transformaram no mais importante instrumento de trabalho do jornalista repórter. Mas penso que, atrás da gíria, escondem-se os vícios daquilo que os críticos do ramo chamam de ‘jornalismo declaratório’.
Como todos sabemos, jornalismo declaratório é aquele em cujos relatos predominam declarações das fontes. Com freqüência, faz-se a simples reprodução de falas tão interessadas quanto competentes. Quando assim é, o jornalista reduz a sua intervenção à insignificância de simples passador de recados. Mas, se elaborado com talento, esse jornalismo recheado de declarações pode resultar em narrações de boa qualidade, de leitura agradável e soluções eficazes.
De qualquer forma, temos aí um tipo de texto de crescente freqüência na imprensa brasileira. Trata-se de um formato criado pela objetividade do jornalismo americano e tipificado por um autor chamado Carl Warren, que, cinco décadas atrás, deu a esse tipo de reportagem o nome de ‘Quote Story’, (na tradução do espanhol Martinez Albertos, ‘Reportaje de citas’), descrevendo-o como uma forma de reportagem em que os resumos descritivos do redator se alternam com declarações textuais dos personagens.
É um estilo de texto cuja ocorrência cresceu bastante na imprensa brasileira nos últimos 30 anos. E estou convencido de que a vulgarização do uso do gravador certamente contribuiu para isso. Mas não de se pode atribuir ao gravador a culpa pelos vícios e cacoetes do jornalismo declaratório praticado pela imprensa brasileira.
3. Pergunta indispensável
O problema não está na quantidade maior ou menor de declarações dos personagens da história contada. Problema existe quando a ação jornalística se limita à reprodução de falas.
A aceitação e a socialização passiva de declarações de entrevistados são a manifestação de um jornalismo preguiçoso, que se deixa seduzir pelos encantos de frases ditas por gente que sabe muito bem quando e como dizer, para tirar proveito da eficácia da linguagem e da difusão jornalística.
É um jornalismo que não faz o mínimo esforço para ir além das aparências. Incapaz, portanto, de perceber e apreender os discursos, ou seja, as ações contidas nas falas que reproduz. É um jornalismo que não questiona, não investiga, incapaz de pensar em confrontos discursivos. Não atribui significado ao que vê, capta e relata. E quando o jornalismo fica preguiçoso, enganado e enganador, é natural que acolha e tolere repórteres com vocação para mendigos de ‘aspas’.
À época, lembrei aos meus alunos um ensinamento que continuo a repetir sempre que possível, ouvido de Antonio Carlos Fon, repórter de invejável coragem, autor de reportagens históricas sobre tortura nos tempos da ditadura. Numa noite em que aceitou o convite para falar aos meus alunos, dizia ele aos futuros repórteres, com voz mansa e impressionante convicção: ‘No mínimo, devemos ter a coragem e a teimosia de perguntar por quê’.’