‘O cinema e o conjunto das atividades audiovisuais formam um setor estratégico para o desenvolvimento cultural e econômico do país e a conseqüente inserção soberana do Brasil na globalização. Trata-se de uma economia dinâmica e plural, que gera renda e emprego qualificado e influencia positivamente outros setores da produção e da cultura. Também pauta comportamentos e promove reflexões e mudanças indispensáveis ao avanço da sociedade. Uma estimativa conservadora revela que a produção e a difusão de conteúdos audiovisuais movimenta no Brasil cerca de R$ 15 bilhões, ou 1% do PIB. Mas o potencial é muito maior. O Brasil é um dos poucos países emergentes que podem se afirmar como produtores, e não apenas como consumidores, de audiovisual.
Diante da certeza de que o país não pode desperdiçar a oportunidade histórica de realizar esse potencial, o Ministério da Cultura assumiu o compromisso público de elaborar, em diálogo com o setor, a proposta de transformar a Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), de modo a fortalecer os agentes econômicos brasileiros do setor, valorizar a nossa cultura e ampliar o acesso dos brasileiros à produção audiovisual do país e do resto do planeta, através da televisão, do cinema, da internet, da telefonia celular e de qualquer outro meio de difusão. É preciso encarar o desafio da convergência digital e incluir o Brasil entre os países que têm uma compreensão profunda e, mais do que isso, uma política pública para o tema.
Inspirada em medidas tomadas por outros países, como França, Canadá, Austrália e Coréia do Sul, e nas reflexões empreendidas por instituições como a ONU e a Comunidade Européia, além do valioso trabalho de especialistas brasileiros, essa proposta encontra-se aberta à consulta pública no site do Ministério da Cultura (www.cultura.gov.br) e foi entregue ao Conselho Superior de Cinema, para debate e deliberação.
Este é o momento para que o conjunto da sociedade se manifeste. Também é a oportunidade para os interessados diretos apresentarem suas propostas concretas, assumindo publicamente a defesa do que realmente pensam e querem, para além dos adjetivos vazios e das simplificações de ocasião. Esperamos que a concretização da Ancinav se torne exemplo de debate, e não de embate.
A minuta do projeto que cria a agência resulta de um longo percurso democrático. Houve uma ampla negociação entre o Ministério da Cultura e as diferentes entidades e empresas do setor, nos últimos 14 meses, com o objetivo de elaborar uma proposta que represente a convergência -e não o consenso absoluto, pois isso seria utópico- entre a visão do governo que o povo brasileiro elegeu em 2002, os interesses das empresas e dos criadores e, o mais importante, o desejo dos cidadãos. Trata-se de um setor tão importante quanto complexo, com interesses muitas vezes contraditórios e visões algumas vezes pequenas, imediatas, que não incorporam a grandeza do país e a necessidade de um desenvolvimento econômico que também seja social e cultural.
Nascida da convicção de que o audiovisual tem plenas condições de se transformar em um dos setores mais competitivos da indústria brasileira, a agência funcionará para regular e mediar as práticas econômicas, e não o teor do conteúdo a ser distribuído pelos meios audiovisuais. Não há na minuta apresentada o impulso de interferir sobre as escolhas de autores, como alguns interpretaram. É natural, aliás, que um tema tão novo e complexo, com medidas cuja adequada compreensão às vezes escapa aos leigos, gere controvérsias.
A idéia norteadora da Ancinav tem a ver com um modelo contemporâneo de regulação, testado em diversos países, e procura adaptá-lo às singularidades do Brasil, país que tem um modelo único de televisão aberta, em que os canais são produtores de boa parte do conteúdo exibido e a geração é concentrada em suas sedes, com uma pequena incidência de conteúdo local e regional. A Ancinav vai regular as relações no setor audiovisual no que diz respeito à produção e à circulação de conteúdo, além de fiscalizar e de criar novos mecanismos de fomento. Tudo isso sob o amparo da Constituição Federal e do Estado de Direito, da mesma forma que trabalham as outras agências. Trata-se de equilibrar os múltiplos interesses do mercado com os múltiplos interesses da sociedade, para que todos se beneficiem de um ambiente propício ao crescimento.
Pretende-se que a nova agência funcione como árbitro, estabelecendo procedimentos capazes de evitar que um setor, ou um elo da cadeia produtiva, sobreponha-se a outro.
A monopolização e a oligopolização só interessam a quem monopoliza ou oligopoliza. A hegemonia avassaladora de uma cinematografia só interessa a ela. Acreditamos que é possível harmonizar interesses e adequá-los à realidade. Por isso a Ancinav vai normatizar, pactuar e fiscalizar, com a intenção de possibilitar o crescimento e o fortalecimento dos diferentes atores que produzem, distribuem e consomem conteúdo audiovisual brasileiro.
Apesar dos obscurantistas, a proposta da Ancinav está na agenda do país. Agora, vamos aos debates, às sugestões, às melhorias. O diálogo afirma a democracia e confere ao país a possibilidade de dar mais um passo adiante. Esse é o objetivo e o compromisso do Ministério da Cultura.’
Murilo Salles
‘Ancinav: unir para democratizar’, copyright Jornal do Brasil, 30/8/04
‘Sinto necessidade de abordar alguns pontos importantes sobre o anteprojeto de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav). Além das distribuidoras estrangeiras e de parte das corporações de mídia, alguns cineastas ilustres, que historicamente lutaram para que o cinema brasileiro se torne uma atividade regular, profissional, desenvolvida, vieram a público emprestar seu prestígio a um ataque maciço que a mídia desencadeou contra a proposta de transformação da Ancine em Ancinav, um campo minado, onde nós, cineastas, deveríamos estar mais unidos . Confesso que fiquei muito surpreso com a atitude desses colegas.
Exatamente quando temos um governo que trata como assunto de Estado o mercado audiovisual, com uma visão abrangente do setor, surgem criticas ao suposto ‘autoritarismo’ dessa postura, que sempre demandamos. Em 2001, participamos de várias reuniões, que resultaram na MP 2228. A proposta era criar a Ancinav, mas ficamos, no bater do martelo, com a Ancine, ou seja, só com o cinema. Agora, a maior parte das sugestões que fizemos na época foram contempladas.
Há no texto do anteprojeto um desejo de regulação. Sim, isso é complexo, e muito trabalhoso, mas é necessário e pode ser transformador. Acho que estamos diante de uma oportunidade histórica única, de mudança de rumos, que aponte para a realização do potencial existente no setor.
Claro que também há problemas no anteprojeto, mas temos um governo que escuta entidades de classe; que tenta legitimar suas ações, com consultas públicas; e que efetivou o Conselho Superior de Cinema. Acho que por trás das críticas ao suposto ‘autoritarismo’ do governo está o temor das ‘grandes questões’: a TV Globo, a Globo Filmes, o artigo terceiro da Lei do Audiovisual, usado pelas majors. Em escala menor, a remodelação da Lei do Audiovisual e da Rouanet.
Acredito que estamos mexendo mais com ‘fantasmas do passado’ do que com a realidade atual. Qual cineasta hoje, em sã consciência, pode ser contra a Globo Filmes? Precisamos de uma cinematografia nacional popular. É ela que cria sustentação para que cineastas independentes continuem a fazer cinema e lançar seus filmes. Existir uma produtora que usa seu casting e conteúdo para fazer filmes de sucesso é positivo. Como podemos acreditar que alguém queira ou possa ‘acabar’ com a Globo Filmes? O que precisamos é ampliar e democratizar conquistas. Já que a concessão da emissora é pública, por que não pensar em disponibilizar a divulgação que os produtos da Globo Filmes têm para uma quantidade maior de filmes? Por que não envolver as outras emissoras de televisão? A Ancinav poderá fazer isso.
O que a TV Globo teme de fato? Ela está bem representada nos debates do CSC. Será medo da proposta de taxação sobre a compra de mídia por parte dos anunciantes? Não acredito, isso já foi superado no passado. Pelo contrário, ela vai ampliar o cardápio de produtos anunciados, pois os anunciantes terão incentivo fiscal para anunciar no cinema nacional. Hoje a TV Globo é uma forte aliada na questão da preservação do conteúdo brasileiro na produção audiovisual. Acho que a Globo, inclusive, poderia ser uma parceira ainda mais presente, com novas idéias para aumentar o faturamento e a circulação do cinema brasileiro.
Precisamos de recursos para financiar uma produção plural, regular e ampliar no mínimo em 100% nossa capacidade de exibição. A proposta da Ancinav traz várias possibilidades. Podemos e devemos debater todas, para ver quais poderão cumprir de fato seus objetivos e quais talvez sejam ineficientes. O governo já disse que está a fim de negociar cada ponto, para que tenhamos a melhor Ancinav possível. Este é o ponto. O governo quer! Quando em nossa história recente um governo quis?
Sobre a questão da taxação sobre a copiagem de filmes estrangeiros: não vamos ficar batendo nessa tecla. Mas volto a insistir: temos que discutir muito e encontrar alguma forma de tributar a entrada voraz e predadora do entretenimento audiovisual estrangeiro no Brasil. Da forma que isso está hoje, pessoalmente acho uma vergonha. Não como cineasta, mas como brasileiro. Isso é tarefa nossa, do cinema brasileiro. Sabemos também que é delicado porque não pode vir por imposição, por decreto, mas ‘dirigismo cultural’ é o que a indústria de entretenimento americana faz hoje. Precisamos criar regulações pró-isonomia de mercado.
Resta o artigo terceiro, que suscita discussões entre cineastas, porque existe a ‘turma que tem acesso’ e a ‘turma que não tem’. Acho que 50% dos recursos públicos destinados às majors para investimento no cinema brasileiro deveriam ir para um fundo da Ancinav, para distribuição segundo critérios pré-determinados. É claro que haverá debate. E isso é saudável. Não entendo porque nossos históricos batalhadores estão temerosos e municiando os oponentes da Ancinav.
Se na proposta existirem artigos que possam ser vistos como autoritários ou dirigistas, vamos tirar, e o ministro Gil assumiu este compromisso publicamente. Agora precisamos nos unir e propor mudanças transformadoras, generosas, democráticas, que contemplem o produtor estável, não o aventureiro; que impliquem no desenvolvimento geral de toda a atividade, e não de um ou outro segmento. Estão usando a Ancinav para atacar o governo. Isto não nos interessa. Mas a Ancinav interessa. E muito.’
Ancelmo Gois
‘Ancinav revisada’, copyright O Globo, 30/8/04
‘Gilberto Gil é devoto de Nossa Senhora da Democracia. O ministro da Cultura entrega hoje ao Conselho Superior de Cinema uma versão revisada do projeto que cria a Ancinav.
Tirou expressões como ‘controlar’ ou ‘disciplinar’ para que não pairem dúvidas sobre o espírito democrático da coisa. A conferir.’