‘BERLIM. Única judia a viver entre os palestinos, a jornalista israelense Amira Hass, de 48 anos, ficou conhecida como a voz da Palestina, região que conhece há 11 anos. Ela já morou em Gaza e atualmente vive em Ramallah, na Cisjordânia. Amira contou ao GLOBO que seu interesse pelas minorias foi despertado pela história da família, que sobreviveu ao Holocausto. Na Segunda Guerra, sua mãe foi deportada em um trem de Sarajevo para um campo de concentração, onde viveu um inferno. Durante uma parada do trem, enquanto os prisioneiros eram remanejados para outro vagão, mulheres alemãs observavam o trem e seus passageiros. Embora soubessem que seu destino era o campo de concentração, ficaram indiferentes.
Um tribunal internacional decidiu que o muro que está sendo construído por Israel é ilegal. A senhora acha que Israel vai ceder à pressão internacional?
AMIRA HASS: Seria bom se finalmente cedesse. Mas não acredito que Israel desista do projeto do muro. Até agora Israel se considera forte o bastante, até para desrespeitar decisões internacionais, porque tem um poderoso apoio dos americanos. E os americanos não demonstram o mínimo interesse na solução do conflito da Palestina porque são vassalos dos israelenses.
Por que a senhora resolveu morar nos territórios palestino, onde não vive qualquer outro israelense?
AMIRA: Quando me formei em jornalismo, fui trabalhar no jornal ‘Ha’aretz’, que aprecio muito. Trabalhando para ele, na Faixa de Gaza, onde fazia reportagens, notei que a perspectiva que conhecíamos em Israel era inteiramente errada, pelo menos bem diferente da vivenciada pelos palestinos. Um dia resolvi vir morar na Palestina.
Os anos de convivência com os palestinos mudaram o seu ponto de vista?
AMIRA: Certamente, vejo as coisas hoje de uma forma diferente do preto-e-branco de antigamente. Quando fui morar em Gaza, em 1991, como correspondente, meu objetivo era documentar o processo de paz. Naquela época muitos tinham a esperança de que a paz seria possível. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Em todos esses anos, eu conheci de perto o drama que significa viver em um país ocupado. Essa experiência é forte o bastante para mudar o ponto de vista de qualquer pessoa.
Qual é o papel da sua biografia, do passado da sua família, no seu trabalho atualmente?
AMIRA: Eu aprendi com as histórias que ouvi da minha mãe como seria possível evitar ou reduzir a dimensão de tragédias se as pessoas não fossem indiferentes. Nós não podemos olhar com indiferença quando populações inteiras são oprimidas, humilhadas, vivem em uma situação sem perspectiva. Eu aprendi com os meus pais também um forte senso de justiça.
A senhora não tem medo de ser seqüestrada pelos terroristas como ocorre freqüentemente com civis americanos no Iraque?
AMIRA: No início do meu trabalho, os palestinos diferenciavam pessoas como eu do aparato opressor. Havia naquela época muito mais contato entre palestinos e israelenses. Muitos palestinos ganhavam o seu pão trabalhando em Israel. Mas hoje isso não é mais possível, porque os palestinos vivem isolados atrás de barricadas. Atualmente cresce uma geração de palestinos que conhece apenas a vida no gueto. E a tendência é que tenha uma aversão por qualquer israelense, que o veja como invasor e opressor.
A senhora é bastante criticada por parte dos israelenses por causa de seu trabalho, que é visto por muitos como anti-Israel. Qual é a reação dos palestinos, de Arafat e dos outros integrantes do governo (da Autoridade Nacional Palestina)?
AMIRA: Os que pensam que sou anti-Israel estão enganados. Seria um grande erro uma posição unilateral nesse conflito tão complicado. Também na Palestina há desrespeito aos direitos humanos. Por isso, acho que os palestinos sofrem duplamente. De um lado, por serem um país ocupado. Mas além disso, sofrem com um regime autoritário, que também é corrupto. Um bom emprego só consegue quem faz parte da Fatah. Nos territórios, os dissidentes são executados como colaboradores. Na minha opinião, isso é tão grave como quando os militares israelenses matam civis palestinos. Até eu já recebi ameaças. Há alguns anos, um policial palestino disse que a minha vida estava em perigo. Depois descobri que ele disse isso por encomenda do governo de Arafat.
A senhora ainda vê a chance de uma solução para o conflito?
AMIRA: As chances são cada vez mais remotas. Quanto mais tempo dura o isolamento dos palestinos, mais remotas são as chances de conseguirmos a paz. E maiores são as chances do Hamas. Por volta de 1994, quando as coisas pareciam caminhar em direção à paz definitiva, as pessoas iam à praia, aos cafés. Naquela época, rejeitavam como absurdos os panfletos do Hamas. Mas é sempre importante ver a Palestina como um todo. Há o Hamas e os homens-bomba. Mas a maior parte da população está preocupada em como conseguir sobreviver em meio a tantas dificuldades. Este é o meu tema.’
ECOS DA GUERRA
‘Crises de identidade’, copyright Jornal do Brasil, 11/7/04
‘Em comum, os Estados Unidos e o Iraque têm, pelo menos, crises de identidade. Saddam Hussein, levado ao tribunal de um governo tutelado por tropas de ocupação, gerou, ao identificar-se como ‘presidente do Iraque’ diante de um juiz atônito, uma crise na cabeça dos iraquianos. Estes vivem entre dois regimes de terror que não foram escolhidos livremente e que disputam entre si uma legitimidade que não podem ter.
O governo Bush deve ter se arrependido de não ter dado a Saddam o mesmo destino reservado a seus filhos. Foi vítima das suas próprias ilusões de que seria recebido como libertador do povo iraquiano e que este faria do julgamento de Saddam uma festa de coroação de um regime tutelado mas assumido pelo povo como seu. Hoje, se houver testemunhas públicas, várias delas poderão falar do que sofreram no regime de Saddam, ao lado do que sofrem desde que as tropas anglo-saxãs ocuparam o país. Nesse caso, transformarão o processo em um espaço de denúncia contra os dois regimes. Não ficará claro quem julga e quem está a ser julgado.
Do outro lado do mundo, os EUA não vivem uma crise de identidade menor. Desde os atentados de setembro de 2001 que os norte-americanos se perguntam: ‘Por que nos odeiam tanto?’ Não faltaram respostas do tipo ‘porque nos invejam’. É o tom, entre outros, do conservador Dinesh D’Souza, em seu livro O que há de tão bom na América, do qual um dos capítulos se chama exatamente ‘Por que nos odeiam’. Sua resposta é a mencionada. Fareed Zakaria, editor de política da revista Newsweek, Michael Walzer, professor de Ciência Política de Princeton, Robert Kagan, ensaísta do Pentágono, tentam responder, entre tantos outros, à inquietação de um país que considera encarnar o bem no mundo, com a responsabilidade de zelar pelos valores da liberdade, e se sente rejeitado e incompreendido.
A versão mais recente vem de Samuel Huntington, uma aplicação dos seus ‘conflitos de civilização’, agora adaptados a um vizinho próximo, os mexicanos. Huntington tinha se notabilizado, em vários momentos, por teses as mais variadas, conforme soprava o vento nos EUA. Terminada a Guerra Fria, quando a elite norte-americana buscava o ‘novo inimigo’, inicialmente reciclado como o ‘narcotráfico’, Huntington propôs, para esse inimigo que o Império buscava, outras ‘civilizações’ – nos antípodas da sua, branca, anglo-saxã, protestante.
No seu recém-publicado Quem somos nós – Os desafios à identidade nacional americana, Huntington localiza nos mexicanos o principal desafio. Situados na imensa fronteira Sul dos EUA (a única entre o Primeiro e o Terceiro mundos), os mexicanos romperiam com os cânones tradicionais dos imigrantes, de que os EUA sempre se orgulharam, dentro do ‘cadinho de raças’ que propagam. Mas nesse caso o rompimento não seria apenas com o protestantismo original, mas também com a língua e com o ‘espírito empreendedor’ atribuído aos norte-americanos. (Ele trata de não mencionar a questão da raça, mas não consegue esconder seu preconceito.)
Os mexicanos, ao contrário dos exilados cubanos, gostam do seu país e não se mostrariam dispostos a renunciar à sua identidade original. Retornam constantemente ao México e vivem agrupados, constituindo maioria em numerosas regiões dos Estados Unidos. Atentariam contra dois bastiões fundamentais da identidade norte-americana, segundo Huntington: o idioma e a religião.
Além disso, não obedeceriam ao trajeto tradicional dos imigrantes, que entravam por Nova York, recebidos pela Estátua da Liberdade, numa cerimônia de identificação, abraçados pelos valores do novo mundo. Os mexicanos chegam sorrateiramente, pela fronteira Sul, na maioria como clandestinos. Vão e vêm sem respeitar fronteiras, trâmites migratórios e a simbologia de quem chega à maior potência do mundo, que os deseja cooptar.
Tanto iraquianos quanto norte-americanos não sabem muito bem quem são. Estão nos antípodas do mundo – uns pertencem à maior potencia imperial, ocupante do país dos segundos – mas nem eles conseguem encontrar sua identidade. Revelam como nem verdugos nem vítimas, nem ocupantes nem ocupados, nem ‘libertadores’ nem ‘libertados’ podem se emancipar e encontrar suas identidades em um mundo fundado no poder da força e da violência, em que ninguém consegue responder ao ‘quem somos nós’ sem que todos possam se emancipar – solidários e iguais.’
Jornal do Brasil
‘Imagens fortes têm pouca procura’, copyright Jornal do Brasil, 10/7/04
‘Americanos estão divididos em relação à divulgação ou não pela internet de imagens da guerra fortes o suficiente para serem barradas pelas mídias tradicionais.
Um estudo apresentado pelo Pew Internet & American Life Project mostra que 49% dos americanos se opõem a exibição de cenas fortes na internet, como a da execução do civil americano Nicholas Berg. Apenas 7% dos internautas realmente procuram estas imagens.
– Acredito que isso justifique a decisão da mídia tradicional de não publicá-las, provando que atraem o interesse de uma minoria – disse Andrew Tyndall, editor do site Tyndall Report, que avalia a cobertura dos principais assuntos na grande imprensa.
– As pessoas não têm necessidade de ver essas coisas – reitera John Young, que publica o Cryptome.org, fornecendo documentos e imagens raras. – Mas acho que um dos papéis que a internet está começando a ter é prover materiais aos quais não se tem acesso pela TV pública ou comercial.
A maioria das pessoas com menos de 30 anos diz que as imagens devem ser publicadas na internet, mas a metade das que as viram se arrependem.
– Quando as pessoas que buscam realmente encontram essas coisas, têm reação igual à que todos teriam: de que isso é terrível – constata Lee Rainie, diretor da equipe da pesquisa.
Yazmin Aguirre, de 21 anos, uma estudante de Chicago, diz ter visto algumas das imagens mais fortes da guerra. Assim como 33% das pessoas que as assistiram, disse que preferia não tê-las visto e concorda com 60% das mulheres entrevistadas: as cenas não deveriam estar disponíveis ao público de maneira nenhuma.
Para Steve Jones, professor de Comunicação da Universidade de Illinois, em Chicago, e fundador da Associação de Pesquisadores de Internet, a pesquisa confirma que a internet ‘está fazendo o que deve’ ao fornecer mais informações que a mídia tradicional aos que querem consumi-la.’