Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Hélio Fernandes

‘Quando Janio Quadros fingiu renunciar em 1961, só mesmo Leonel Brizola faria aquele movimento de se opor aos que não queriam dar posse ao vice-presidente eleito. (Eleito mesmo, pois naquela época, o vice disputava eleição, não vinha a reboque do próprio presidente.) Leonel Brizola governador do Rio Grande do Sul, com exatos 40 anos, criou a Liga da Legalidade, atraiu o general Machado Lopes, comandante do III Exército, frustrou os objetivos dos comandantes do I, II, e IV Exércitos. Os generais tiveram que mudar de planos partiram para a fórmula, ‘Parlamentarismo com Tancredo Neves’. Muita gente só fala no Parlamentarismo para burlar a posse do vice. Mas eles queriam mais: o Parlamentarismo e Trancredo, em quem confiavam.

Jão Goulart estava em Cingapura, pulou para Paris, de lá para Montevidéu. O golpe não estava destroçado, muita gente ‘entrou no circuito querendo conversar e aparecer como Salvador da Pátria e da Democracia’. Menos Brizola.

Durante 30 dias João Goulart passou ‘pendurado’ no telefone. E conversou bastante com Brizola, mas sem seguir seus conselhos e advertências. Um dia, já confirmada a posse de Tancredo como primeiro-ministro e João Goulart como presidente-sem-Poder, Brizola disse a ele com total visão dos acontecimentos: ‘Jango, não aceite essa presidência diminuída, você pode tomar posse como presidente de fato’. Jango que era um contemporizador nato, respondeu: ‘Nada disso, vou tomar posse assim mesmo, o Tancredo é nosso amigo, não vai criar problemas, depois recuperaremos o Poder’.

(Em 1952, ministro do Trabalho de Getulio Vargas, o senhor João Goulart contrariou, involuntariamente, os militares. Estes então fizeram um manifesto, chamado de ‘Manifesto dos Coronéis’. Eram 69 deles, e a primeira assinatura era do coronel Amaury Kruel. Getulio tentou resistir, afirmou que um presidente da República não ‘pode aceitar ultimatum ou exigência’.

Jango disse a Vargas que era melhor ceder naquele momento, deixou o ministério. Depois, feito presidente da República e tendo recuperado todos os Poderes com o plebiscito de 6 de janeiro de 1963, Jango praticou estes atos inacreditáveis.

1 – Promoveu Amaury Kruel.

2 – Nomeou Kruel, já general, para chefe da sua Casa Militar.

3 – Elevou Kruel a ministro da Guerra.

4 – Nomeou Kruel comandante do II Exército e alavanca da sua derrubada.

Brizola morreria mas não se humilharia nem praticaria suicídio igual.

Não vou examinar agora o movimento de 1964, realmente um dos mais estranhos, controversos e contraditórios de toda a História do Brasil. Basta verificar o seguinte: todos os grandes personagens de 1964, de um lado, do outro, e até sem lado, foram triturados, afastados, não tiveram a menor chance. Vejam estes nomes que tiveram participação importante em 1964, TODOS ELES CANDIDATOS A PRESIDENTE, e todos ultrapassados. Juscelino, presidente por 5 anos, passou o cargo a Janio e lançou seu nome para dentro de 5 anos, ninguém pensava em reeleição.

Carlos Lacerda, governador da Guanabara, já lançado pelo seu partido. Magalhães Pinto, governador de Minas, candidatíssimo. Ademar de Barros, governador de São Paulo, já candidato duas vezes, não queria outra coisa. Miguel Arraes, governador de Pernambuco, com o sonho de ser o preferido de João Goulart, e que por causa disso foi ao espantoso comício da Central do Brasil, ficou 5 minutos e foi embora. E Jango, claro, que queria continuar no governo, manobrando de todas as formas. E acreditando que teria o apoio de Roberto Marinho (e da Organização Globo), que ainda não era tão poderoso como se transformou, elegendo em 1989 o candidato Fernando Collor.

E Leonel Brizola? É lógico que era candidato, não pensava em outra coisa. Tinha já todos os títulos apesar de estar com 43 anos, dera posse ao cunhado na Presidência. Não existe a menor dúvida: sem Brizola e o general Machado Lopes, Jango não teria sido presidente. Excelente analista dos acontecimentos, Brizola ‘viu’ logo que precisava de visibilidade para ser o sucessor de Jango. E não teve a menor dúvida: o cargo que teria que ocupar era o de ministro da Fazenda. Mas isso era demais para o establishment (o famoso sistema), que decretou: ‘Brizola ministro da Fazenda? Isso jamais em tempo algum’. E João Goulart, mais uma vez acreditando nas boas intenções dos outros, aceitou o veto, colocou no Ministério da Fazenda, alguém sem lenço nem documento, um vago Ney Neves Galvão.

Brizola ficou revoltado, o intermediário do veto ao seu nome foi o próprio Roberto Marinho, então no limiar dos 60 anos. Um dia, não agüentando mais, Brizola disse na televisão: ‘Não vou mais ao Palácio Laranjeiras, (onde vivia Jango, Brasília era e continua sendo uma ficção), toda vez que vou lá, dou de cara sempre com esse Roberto Marinho’. Verdade pura. E outro assiduidíssimo, que entrava no quarto de dormir de Jango e sentava despudoramente na sua cama, era Antonio Carlos Magalhães.

Brizola não foi ministro, lógico, as coisas não seriam mais como eram, João Goulart não percebeu que perdera o Poder, o governo e a iniciativa de tudo. Outros íntimos dessa época, que logo passaram para o outro lado em abril de 1964. Jorge Serpa, que ia a todos lugares acompanhando Roberto Marinho, Roberto Campos, que era embaixador de Jango nos EUA, veio ser o ministro mais importante do golpe.

Para Brizola sobrou o exílio duro, implacável, o inimigo era ele e não João Goulart. Foi o único condenado a um ‘exílio dentro do exílio’. Exilado no Uruguai, o governo brasileiro exigiu do governo de lá, e Brizola foi então confinado em Atlantida.

Em 1982 retomava a caminhada política, que não abandonara nos 18 anos de exílio. Sempre acreditou que voltaria. Não importa que o tempo fosse correndo, que amigos e inimigos, adversários e correligionários fossem morrendo. Sabia que seu destino não seria truncado. E não foi mesmo. Resistiu o quanto pôde, voltou, em 1982 foi eleito governador do Estado do Rio de Janeiro. Ainda aí teve que contrariar a ordem natural das coisas. Todos que giravam em torno dele, achavam que deveria sair candidato a governador do Rio Grande do Sul, onde ganharia sem fazer comício ou um discurso.

Mas teve a intuição ou a premonição, de que seu destino estava na luta e na polêmica, e que a luta e a polêmica estavam no Rio de Janeiro e não em qualquer outro lugar.

Tenho que parar, pois escrever sobre a vida de Brizola é não parar nunca. Talvez eu volte. Deixa eu contar apenas episódios ligeiros.

PS – Quando Carlos Lacerda foi a Montevidéu levar a Jango o Manifesto da Frente Ampla, o ex-presidente perguntou: ‘Governador, o jornalista Helio Fernandes não vinha com o senhor?’ E Lacerda: ‘Vinha, mas teve compromissos’. E Jango: ‘Uma das raras satisfações que temos aqui, é quando chega a Tribuna da Imprensa. Não sei como é que se pode lutar tanto, sem sair do País’. Uma das minhas frustrações é que jamais falei com Jango, nem antes nem depois.

PS 2 – Termino aqui a homenagem escrita a Leonel Brizola. Dois artigos publicados com ele em vida, dois escritos na emoção da despedida. A homenagem não escrita mas lembrada, continuará para sempre.

***

O jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul, tablóide, fez o que tinha que fazer: foto excelente de Brizola (de Robson Fernandes), tomando quase toda a Primeira. E a manchete obrigatória: ‘Morre Brizola’.

O Estado de Minas com foto expressiva (Paulo Pinto) dominou a Primeira. E manchete indo além da morte, concluindo: ‘Morte de Brizola adia a votação do mínimo’. Foi pretexto para mais conversação, aprovaram no dia seguinte. Brizola morreu, Lula sofreu o abalo.

O Globo usou uma boa foto (Custodio Coimbra) e apenas uma chamada ligeira: ‘Brizola, o adeus das ruas’. Acharam que o assunto estava morto.

O Jornal do Brasil, foi pelo mesmo caminho pedregoso. Foto excelente (Luiz Morier) e uma linha de uma coluna: ‘O silêncio e o vazio ocupam a Brizolândia’. Vão se manifestar em outubro, nas urnas.

Desde a morte de Brizola, a Folha não deu a menor importância. Desconheceu sua importância. Ontem completando o desinteresse, apenas uma foto pequena na Primeira. Que não representava nada.

O Dia insistiu na importância dada a Brizola. Ontem, na Primeira, (aproveitando a ausência do Lewinson, incoporador imobiliário): ‘Brizola no caminho da História’.’



Tutty Vasques

‘Obituário não-autorizado’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 26/06/04

‘Com a mesma alegria sublinhada por Elis Regina no refrão ‘quando eu morrer me enterrem na Lapinha’, vivo cantando meus amigos para que me façam dois favores no limiar da minha hora. Que doem meus órgãos em bom estado de conservação para recall, e que cremem o resto. A idéia do caixão fechado e a sensação dos bichos me comendo lá dentro me provocam um misto de pânico e nojo. Pouparei os leitores dos detalhes escatológicos de minhas fobias, mas não posso deixar de aqui expor uma delas, a que sempre me sobressalta quando alguém importante vai desta para outra melhor: morto ouve o que dizem a seu respeito? Deve ser horrível não poder reagir a tanta hipocrisia.

Passei a semana tendo pesadelos tenebrosos. Eu estava ali, imóvel e gelado no Palácio da Rosinha – o lugar fedia a flores -, escutando minha história de bravura edificada por meus inquisidores ao redor. Victor Fasano, Orestes Quércia, Norma Bengell, Malcon Montgomery, Jorginho Guinle, Kleber Leite, João de Deus Mena Barreto, todos os que em vida me cobraram ofensas nos tribunais de justiça davam entrevistas ao Jornal Nacional enaltecendo a firmeza com que defendi meus pontos de vista, meu temperamento singular, minha teimosia, meu carisma, minha importância para a história do Brasil, meu legado para a imprensa, ‘Tutty vai fazer muita falta…’

Acordo sempre no mesmo momento do sonho. Quando Antônio Carlos Magalhães entra no meu velório arrastando câmeras e microfones no manto de sua compunção, um grito de filme de terror me desperta empapado de suor na imensidão do ninho armado no topo do cafofo. O pesadelo se repete toda noite desde a morte de Leonel Brizola. Refeito do susto, troco o pijama e passo uma boa meia hora consternado com o drama do líder trabalhista. Ninguém merece morrer e ficar assim exposto a toda sorte de elogios disparados pelos nobres Garotinho, Moreira Franco, César Maia, ACM, Sérgio Cabral Filho, José Sarney, Arthur Virgílio, Rosinha… Ninguém merece!

Deveria ser prerrogativa do morto escolher em testamento os oradores de suas homenagens póstumas. Ou melhor, como nas biografias, deveriam existir dois tipos de obituário: o autorizado e o não autorizado. Sei que o problema não é exclusivamente brasileiro – com Ronald Reagan foi a mesma coisa -, mas aqui no Brasil neguinho sempre passa dos limites na hora de elogiar morto. Ainda que não seja de bom tom esculhambar o falecido, será possível que não dá pra ficar em silêncio, caramba?

O luto se desmoraliza a cada grande personalidade brasileira que se vai – e vice-versa. Para quem passa a vida inteira brigando pelo direito de discordar deve ser muito triste chegar ao fim com todo mundo fingindo concordar com suas idéias. O Brizola não merecia isso. Que na segunda-feira, sétimo dia de sua partida, o silêncio lhe faça justiça.’



Carlos Heitor Cony

‘O palanque e o púlpito’, copyright Folha de S. Paulo, 26/06/04

‘Num programa na TV, mesmo contra a vontade do partido, Brizola quis que eu desse um depoimento. Tanto o PDT como eu próprio argumentamos contra, nunca me filiei a partido nenhum e nada entendo de política. Brizola insistiu: ‘Diga que eu gosto de você e que você gosta de mim’. O deputado Neiva Moreira, que coordenava a campanha, topou.

Quiseram cortar meu depoimento, que sobreviveu na edição final. Disse pouca e pobre coisa: Brizola deixara de ser político, tornara-se uma espécie de místico, de profeta ambulante, desses que deixam crescer a barba, empunham um bastão e vão pelas estradas ou ficam parados na esquina, pedindo que todos se entendam, que todos tenham um prato de comida, que tenham um teto, que os molequinhos de rua freqüentem uma escola de graça e, no fim da tarde, alimentados, de banhozinho tomado, voltem para casa.

No seu segundo governo no Estado do Rio de Janeiro, deixou a administração rolar, preferia gastar uma tarde inteira contando como um gaúcho faz isso ou deixa de fazer aquilo, perdeu votos e aliados, perdeu quase tudo, mas nunca se perdeu: esqueceu que estava num palanque, achava que estava num púlpito.

Maria Vitória Benevides lembrou seu primeiro encontro com Brizola. Ela vinha da feira e Brizola, que vinha do exílio, comeu-lhe as jabuticabas e ainda levou algumas para dona Neusa, que ficara no hotel. Numa viagem aérea, saiu de seu lugar e veio sentar a meu lado, falou a viagem toda, contando histórias de um parente meu que, fugindo da polícia, se refugiara na fazenda onde o menino Leonel tomava conta do gado.

Quando a comissária distribuiu aquela caixinha com o lanche, eu recusei, mas Brizola ficou com ela. E explicou: ‘Vou almoçar com o Zé Dirceu (que o esperava no aeroporto). É bom levar um reforço’.

Foi-se um romântico que infelizmente era político.’