Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Hugo Studart

‘A crise institucional que envolve o governo e as Forças Armadas em torno da abertura dos arquivos da ditadura militar deve piorar. O ministro da Defesa, José Viegas, e os comandantes militares dizem que os documentos da repressão teriam sido destruídos; por isso não poderiam ser abertos. Não é verdade. Há documentação, sim – e em abundância. ISTOÉ teve acesso a 37 documentos militares secretos ou confidenciais sobre a Guerrilha do Araguaia, o episódio mais dramático e obscuro da recente história brasileira. São papéis que fazem parte de um longo dossiê, preparado pelos próprios militares, todos eles ex-integrantes dos órgãos de Inteligência e repressão. Ao longo de quatro anos, eles copiaram documentos que permanecem nos quartéis e recolheram outros que estavam escondidos nas residências dos colegas. Para preencher as lacunas, colheram entrevistas e depoimentos formais, gravados ou por escrito, com 27 militares que participaram dos combates, de cabo a general. ISTOÉ também possui cópia das gravações e de parte dos relatos escritos. O Dossiê Araguaia é incisivo naquilo que as Forças Armadas tentam há 30 anos esconder – quantos brasileiros morreram e a data provável de cada morte. De acordo com o PCdoB, tombaram 75 pessoas, sendo 58 guerrilheiros e 17 camponeses. A contabilidade dos militares é mais sangrenta: teriam sido 85. Ou seja, dez a mais.

Segundo o Dossiê, dos 107 guerrilheiros e camponeses que participaram do conflito, 64 teriam morrido ‘em combate’, 18 estariam ‘desaparecidos’ (eufemismo para explicar que podem ter sido executados depois de presos), 15 foram presos e sobreviveram, sete teriam desertado e dois teriam cometido suicídio. Os militares informam ainda que um guerrilheiro teria sido ‘justiçado’ pelos próprios companheiros, um dos temas mais delicados para a esquerda armada. O documento também desvenda outro segredo de Estado, as possíveis baixas nas Forças Armadas: cinco mortos e seis feridos. A lista dos militares sobre os insurgentes mortos é igual à dos guerrilheiros. A novidade é que eles admitem a morte dos desaparecidos e fornecem uma data provável para o fim de cada um. A diferença está na listagem dos camponeses recrutados na região. O PCdoB aponta que 17 camponeses teriam morrido. Na relação de um militar do Centro de Informações do Exército (CIE), há pelo menos oito nomes inéditos de camponeses desaparecidos. Entre eles Luís Viola e Marco Aurélio Lisboa, identificados pela primeira vez. Os outros seis, os militares não se deram ao trabalho sequer de identificá-los corretamente – figuram simplesmente como Rita, Zé Maria e Humberto, por exemplo.

A redação final do Dossiê coube a dois oficiais que participaram da guerrilha. Decidiram manter preservadas suas identidades – pelo menos enquanto estiverem vivos – identificando-se por seus codinomes da repressão, Dr. George Alves Costa e professor Carlos Ilich Azambuja. Durante os conflitos no Araguaia, o Dr. George tinha a patente de tenente-coronel. Nos últimos meses da guerrilha, quando as Forças Armadas desceram na selva com ordens de não fazer prisioneiros (e nenhum foi feito), ele coordenava uma das equipes secretas de operações especiais. Era um dos dois oficiais de maior patente acampados na área. ‘Tentamos fazer um trabalho o mais honesto possível, contando nossa versão, mas evitando o sensacionalismo’, diz. O professor Azambuja, por sua vez, talvez seja o analista de inteligência mais experiente ainda em atividade no País. Está nos serviços de informações militares desde 1967. Organizou um dos mais completos arquivos sobre as organizações marxistas. Na época do Araguaia era capitão; coube a ele identificar a maior parte dos mortos. Na elaboração do Dossiê, também coube a ele compilar a relação das vítimas, assim como tentar encontrar a data de cada morte. ‘Deu um trabalhão’, conta. ‘Em muitos casos, tive que instigar a memória dos companheiros que estiveram lá.’

Justiça revolucionária – O Dossiê revela que a guerrilheira Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, listada como desaparecida política, teria matado o companheiro Rosalindo Cruz Souza, o Mundico, julgado por um ‘tribunal revolucionário’, acusado de traição por causa de um caso banal de adultério, triângulo entre ele e o casal de guerrilheiros Áurea e Arildo Valadão. Dina o teria executado com um tiro no peito, logo acima do coração. O documento mostra também que Dina, por sua vez, foi morta pelos militares em julho de 1974. O depoimento complementar de um militar que ajudou na elaboração do Dossiê (ISTOÉ possui cópia da gravação) revela que a guerrilheira foi presa por uma patrulha do Exército em junho de 1974, numa localidade chamada Pau-Preto. Estava em companhia da guerrilheira Luiza Augusta Garlipe, a Tuca – outra que figura na lista dos desaparecidos. Levada para interrogatório em Marabá, permaneceu duas semanas nas mãos da inteligência militar. Estava fraca, desnutrida, há quase um ano sem comer sal ou açúcar. Por conta da tensão, fazia seis meses que não menstruava.

No início de julho, Dina foi levada de helicóptero para algum ponto da mata, perto de Xambioá. Um sargento do Exército, codinome Ivan, chefiava uma pequena equipe de três homens. ‘Vocês vão me matar agora?’, indagou Dina, assim que pisou em solo. ‘Não, um pouco mais à frente’, respondeu Ivan. Os dois caminharam por 15 minutos lado a lado. Mantiveram uma conversa cordial, testemunhada pelos dois militares que vinham logo atrás. A guerrilheira se queixou de que estaria se sentindo traída pela cúpula do PCdoB. Ela queria combater, mas os chefes do partido, resguardados em São Paulo, teriam dado ordem de fuga. O grupo parou em uma clareira. ‘Vou morrer agora?’, perguntou Dina, segundo o depoimento da testemunha. ‘Vai, agora você vai ter que ir’, respondeu Ivan. ‘Eu quero morrer de frente’, pediu. ‘Então vira pra cá.’ Ela virou e encarou o executor nos olhos. Seu peito foi estourado com um tiro de pistola calibre 45. Levou um segundo tiro na cabeça. Enterrada ali mesmo, seu corpo jamais foi encontrado. Ivan, por sua vez, morreu de forma trágica em 1987, no Rio de Janeiro, quando assaltantes arrebentaram sua cabeça a pauladas. Deixou uma filha adolescente, que pregou no quarto um pôster do ídolo Che Guevara.

Outro depoimento revela as circunstâncias da morte do mais carismático dos guerrilheiros, Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão, um negro de 1,98 m, campeão de basquete pelo Botafogo e coronel do Exército chinês, patente conquistada na Academia Militar de Pequim. Corria a lenda na região que Osvaldão virava lobisomem e outros tipos de assombração. Para os militares, apanhá-lo significava abalar o moral dos guerrilheiros. Foi abatido no início de abril de 1974, aos 36 anos, quando por acaso se viu frente a frente com o mateiro Arlindo Vieira. O mateiro ajudava os militares desde o início da campanha; Osvaldão o havia jurado publicamente de morte. Um estava caçando o outro. Certo dia, Vieira guiava uma equipe que encontrou perto de São Geraldo pegadas enormes de uma sandália de pneu. Osvaldão calçava 48 e usava uma sandália dessas. Caminharam dois dias atrás do rastro. Uma hora notaram movimentos no capinzal e pararam. Osvaldão deu azar. Entrou na clareira com o peito de frente para a espingarda calibre 12 de Vieira. Morreu de braços abertos, enquanto afastava o capim. Foi inicialmente enterrado dentro da base militar de Xambioá e depois cremado.

Elogios – Tanto no Dossiê quanto nos depoimentos complementares, os militares só se referem ao falecido João Amazonas, à época um alto dirigente do PCdoB, com o adjetivo pejorativo de ‘desertor’ – ele deixou o local da guerrilha pouco antes de os militares chegarem ao Araguaia. Mas tecem elogios rasgados a seus adversários mais difíceis, como o guerrilheiro Idalísio Soares Aranha Filho, o Aparício, que teria levado 53 tiros de metralhadora, inclusive no rosto, e ainda assim conseguiu escapar pela mata. Foi apanhado dois quilômetros adiante, agonizando no chão. Levou um tiro de misericórdia na cabeça, disparado por uma Winchester 44. O tiro moeu por completo seu crânio. Os restos do guerrilheiro foram levados numa rede a Xambioá para que fosse identificado – ao vê-lo, um major da Aeronáutica vomitou copiosamente. Referem-se também com admiração a José Humberto Bronca, o Zé Fogoió, um mecânico que fez treinamento na China, o único operário da direção da guerrilha, ‘bravo, dinâmico, o cão’, nas palavras de um dos militares que o perseguiram. Falam ainda do profundo respeito que passaram a nutrir pela guerrilheira Rioko Kaiano, a Kika. Colocada na câmara de torturas por ordem do general Antônio Bandeira, ela resistiu bravamente aos maus-tratos. ‘Só pode estar tentando proteger algum macho’, grunhiu Bandeira. A certa hora, encapuzada, Kika escutou a voz de um guerrilheiro e chorou copiosamente – e só então contou quem estava tentando proteger. Era o guerrilheiro Geraldo, José Genoino, também encapuzado, logo ali a seu lado. Estão casados até hoje.

Outra guerrilheira admirada pelos militares é Lúcia Maria de Souza, a Sônia. Ela feriu de uma só vez o major Lício Augusto Maciel, no rosto, e o capitão Sebastião de Moura, o Major Curió, no braço. Corre até hoje na região a história de que, ao ser apanhada, teriam lhe perguntado o nome. ‘Guerrilheiro não tem nome, tem causa, guerrilheiro está em busca da liberdade e de um mundo melhor’, teria respondido, antes de tentar sacar a pistola. O militar que a matou ajudou a elaborar o Dossiê. Em seu depoimento, ele revela: ‘Quando chegamos, ela estava deitada de costas, com o 38 ainda na mão. Tinha mais de dez tiros de nove milímetros no corpo. Ela quis levantar a arma, eu pisei em seu braço e perguntei seu nome. ‘Guerrilheiro não tem nome’, ela disse. ‘Nem nome nem vida’, respondi. Foi só isso. Segurei o gatilho da metralhadora e dei os tiros de misericórdia. Ela ficou com mais de 80 furos. Era uma grande guerreira.’

O Dossiê Araguaia relata mortes, mas não revela a informação mais desejada pelas famílias que ainda buscam seus mortos – onde estariam exatamente enterrados os corpos dos guerrilheiros. Nos depoimentos complementares, contudo, os militares contam que entre dez e 15 mortos dos primeiros meses da campanha, de maio a outubro de 1972, teriam sido enterrados nos cemitérios de Xambioá, na área reservada aos indigentes. Em 1975, porém, esses corpos teriam sido exumados e depois cremados. Quanto aos demais, a grande maioria teria sido sepultada na própria mata, perto de onde cada um tombou. O corpo de Mundico, por exemplo, estaria num banco de areia do sítio de um camponês conhecido como João do Buraco. Estaria sem a cabeça. Os militares a levaram em fins de 1974, numa lata de bolachas, para comparar com a ficha dentária de um soldado desaparecido. A cabeça era mesmo de Mundico. Em 1975, cerca de 20 desses corpos – aqueles que os militares encontraram – teriam sido exumados e cremados com pneus.

O Dossiê Araguaia é um livro quase acabado, que narra ainda o que os militares pensavam de seus inimigos, como os viam e o que temiam. Detalha quais os batalhões mobilizados em cada período, o número de homens empregados e a vida cotidiana dos pelotões. Com base nos documentos recolhidos, revela todo o esquema de inteligência montado para o levantamento de informações sobre os guerrilheiros, o treinamento dos agentes, a infiltração dos espiões, a íntegra de alguns relatórios e os mapas das patrulhas. O Dossiê é rico em informações sobre a participação efetiva dos militares nas três campanhas do Araguaia, em especial na terceira, quando teriam sido utilizadas tropas em trajes civis, com ordens superiores para aniquilar os guerrilheiros, fato negado oficialmente pelas Forças Armadas.

Os militares brasileiros foram seletivos na produção de documentos sobre a repressão. Nos arquivos que restaram nos quartéis, não há muitas provas sobre a prática da tortura pelos agentes do Estado, por exemplo. Em compensação, é grande a documentação sobre as 99 vítimas, militares ou civis, produzidas pela esquerda armada durante os anos de chumbo. Nesses arquivos, estão as fichas dos que colaboraram com a repressão, entregando os companheiros, muitas vezes em troca de dinheiro. Mas os documentos não apontam o nome dos militares que mataram os guerrilheiros. Na guerrilha urbana, quando os militares executavam alguém, faziam relatórios falsos, inventando uma troca de tiros na rua. Na gíria dos porões, dizia-se que o guerrilheiro entrara para a VPC, vanguarda popular celestial.

Em relação ao Araguaia, há uma farta documentação sobre os primeiros dois anos da guerrilha, quando ainda se faziam prisioneiros e os mortos costumavam ser de fato abatidos em combate. Para a chamada Primeira Campanha, entre abril e maio de 1972, as forças oficiais promoveram uma manobra de reconhecimento da área, integrada basicamente por recrutas de 18 e 19 anos, na qual quase tudo deu errado. Mobilizaram 170 homens e foram embora em 40 dias. A Segunda Campanha ocorreu entre setembro e outubro de 1972, quando o Exército voltou para realizar uma manobra de treinamento em campo de batalha real com tropas especiais – uma brigada de pára-quedistas, pelotões de guerra na selva e de fuzileiros navais. Segundo o Dossiê Araguaia, nada menos que 3.260 homens combateram por 12 dias, todos regularmente fardados. Nessas duas campanhas, 17 guerrilheiros morreram e 11 foram presos. Também morreram dois militares e três moradores da região. Sobre essa fase, há muita documentação.

Depois disso, os militares retiraram as tropas e silenciaram por 11 meses. Os guerrilheiros comemoraram a vitória e avançaram nos justiçamentos. O que o Dossiê revela é que os militares estavam executando a maior ação de espionagem na história do País, batizada de Operação Sucuri. Sob o comando do general Milton Tavares, chefe do CIE, e a coordenação de um major ligado ao general Bandeira, os militares infiltraram 45 agentes na região, em sua maior parte cabos e sargentos, todos caboclos – um deles militou por mais 20 anos no PCdoB, chegou a ser enterrado com honras de herói da esquerda, com o caixão coberto pela bandeira do partido. Um dos relatórios revela que o Major Curió estava nessa operação, sob o codinome de Dr. Luchini. Em outro, um agente relata que quase foi executado pela guerrilheira Dina; traumatizado, teve que ser retirado da região.

Massacre – Quando a Terceira Campanha teve início, em outubro de 1973, revela o Dossiê, o CIE já tinha mapeado o nome e a localização provável de cada guerrilheiro, assim como a rede de colaboradores. Teriam feito, então, uma operação cirúrgica. Foram empregados 750 homens, divididos em três grupos de 250 que se revezavam na mata a cada três semanas. Dessa fase, 47 guerrilheiros entraram para a lista dos desaparecidos políticos. Não foi feito um único prisioneiro e somente três conseguiram escapar da região com vida. Um deles foi o comandante Ângelo Arroyo, morto em 1976 na chamada Chacina da Lapa, em São Paulo. O outro se chama Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho, que hoje mora em Goiânia (GO). Há um terceiro, que até hoje nem o PCdoB nem os militares sabem ao certo quem é. Os autores do Dossiê acreditam que seja José Antônio Botelho, codinome Antônio, que integra a lista dos desaparecidos. Ele pode estar vivo. Nem mesmo os militares conseguiram encontrar qualquer documento sobre essa Terceira Campanha, garantem os autores do Dossiê. Por orientação do general Confúcio Danton de Paula Avelino, substituto de Milton Tavares no CIE, todos os relatórios da época davam conta de ‘mortes em combate’. Ainda assim, esses documentos teriam sido queimados em fins de 1974, por ordem expressa do presidente Ernesto Geisel, informam os autores do Dossiê. Para que a Nação saiba se a ordem foi cumprida, só há um meio: abrir oficialmente os arquivos, como acontece em qualquer país democrático.’



Demétrio Magnoli

‘Os arquivos e o futuro’, copyright Folha de S. Paulo, 28/10/2004

‘‘Eu tenho certeza. Conheço o meu marido. Seu corpo. A sua expressão. A curva dos seus lábios.’ Essas palavras, de Clarice Herzog, não pareceram ao ministro Nilmário Miranda, dos Direitos Humanos, um motivo suficiente para aprofundar as investigações sobre as fotos publicadas pelo jornal ‘Correio Braziliense’. O ministro preferiu a opção mais fácil, aferrando-se à investigação da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que concluiu em horas que as fotos não são de Vladimir Herzog. As fotos deflagraram uma crise institucional, pontuada por manifestação de insubordinação do comando do Exército e por operações de bastidores destinadas a soterrar o tema dos arquivos dos ‘anos de chumbo’ da ditadura militar. No baile do Dia do Aviador, no Clube da Aeronáutica, o presidente Lula assegurou que o governo ‘não tem problema’ em conservar ocultos os arquivos e sugeriu que os militares tratem do assunto com a Câmara dos Deputados e a sua Comissão de Direitos Humanos. Nilmário Miranda desrespeita seu passado de defensor dos direitos humanos quando eleva a célere investigação da Abin à condição de verdade revelada. Lula convida à quebra da hierarquia quando aconselha chefes militares a pressionarem o Parlamento, passando por cima do Ministério da Defesa, e ilude a sociedade ao fazer de conta que não é o Executivo que detém a chave-mestra dos arquivos. No fundo, o ministro e o presidente expressam a natureza da transação entre militares e civis firmada no momento em que se encerrava a ditadura militar. Formalmente, essa transação resume-se à lei de anistia. Na prática, é um compromisso para ocultar o passado. No crepúsculo de seu segundo mandato, Fernando Henrique assinou decreto que assegura sigilo de meio século, renovável indefinidamente, a documentos classificados como ‘ultra-secretos’. Os alvos do sigilo eterno não são arquivos relacionados à segurança externa, que perdem valor instrumental após algumas décadas, mas documentos que abrangem desde os feitos de Duque de Caxias na Guerra do Paraguai até os dos chefes militares e seus subordinados nos subterrâneos da tortura nos anos 70. O que se esconde não são crimes de indivíduos, mas papéis históricos desempenhados pelo Estado e as Forças Armadas. O Estado brasileiro acerta as contas com o período da ditadura militar mediante indenizações a perseguidos políticos. Essa estratégia dilui o confronto de princípios éticos no caldo da noção de injustiça pessoal e limita o campo da política à esfera da compensação. Na lógica da transação que encerrou a ditadura, o dinheiro das indenizações substitui a narrativa histórica do funcionamento da máquina de repressão política. Na Base Aérea de Brasília, o presidente do STJ, Edson Vidigal, classificou como ‘incabível’ a abertura dos arquivos e citou a canção de Raul Seixas: ‘E agora eu me pergunto, e daí? Eu tenho uma porção de coisas pra conquistar e não posso ficar aqui parado’. Eis uma síntese da concepção de que o Estado deve tutelar a sociedade, seqüestrando o passado para moldar o futuro sem interferência da plebe. O governo tem a obrigação de discordar, abrindo todos os arquivos da repressão.

Ao contrário do que escrevi semana passada, a TV Rocinha é um negócio legítimo, amparado em contrato de difusão de sinais de TV por assinatura. O sucesso da empresa evidencia que seus responsáveis descobriram há tempo que o ‘asfalto’ e o ‘morro’ são duas faces de uma única cidade. Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.’



Radiobrás

‘Jornalista Paulo Markun diz que Lula estuda maneira de abrir arquivos da ditadura’, copyright Radiobrás, 28/10/2004

‘O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o governo está estudando uma maneira de abrir os arquivos da época da ditadura militar, separando o que são documentos de Estado dos documentos ilegais. A informação foi dada pelo jornalista Paulo Markun, que esteve com o presidente nesta quinta-feira, para entregar o seu livro ‘O Sapo e o Príncipe’.

Segundo o jornalista, Lula disse que pretende transferir para o âmbito do Ministério da Justiça a documentação, onde seria feita a separação. ‘Ele considera importante separar o que são documentos de Estado de documentos ilegais e irregulares desse período e encaminhar ao Ministério da Justiça, que com a participação de outros setores, como a Igreja, dará um destino para essa documentação, vendo realmente aquilo que merece ser preservado daquilo que definitivamente pode ser eliminado’, disse o jornalista.’



Folha de S. Paulo

‘Sigilo Inaceitável’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 28/10/2004

‘Segredos de Estado são um mal necessário. É inconcebível uma situação em que todos os projetos, atos e registros do poder público estivessem disponíveis para qualquer interessado. Um general, por exemplo, não deve divulgar em detalhes os planos de defesa nacional, sob pena de torná-los inúteis. De modo análogo, há informações tecnológicas e estratégicas que pode ser do interesse do país resguardar.

A necessidade de que alguns documentos sejam mantidos em segredo, porém, de modo algum justifica o decreto 4.553, que em tese permite o sigilo eterno de informações no Brasil. Documentos públicos só deveriam permanecer ocultos em casos justificados e excepcionais e, assim mesmo, por prazos determinados.

O decreto 4.553 foi editado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso na última semana de seu governo e, desde então, não foi alterado pelo seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Depois das reações ao recente episódio envolvendo fotografias duvidosas e o nome do jornalista Vladimir Herzog, preso e morto em 1975, sob custódia dos órgãos de segurança, Lula ameaçou rever a disposição, mas até agora não o fez.

Além de impróprio, o decreto é também ilegal. Ao permitir, no caso de papéis considerados ultra-secretos, a renovação do sigilo por prazo indefinido, o dispositivo contraria frontalmente a Lei de Arquivos (8.159/91), para a qual documentos públicos, mesmo que ‘referentes à segurança da sociedade e do Estado’, podem ser mantidos em segredo por no máximo 30 anos, prorrogáveis (uma só vez) por mais 30. E um decreto, como se sabe, não pode alterar ou prevalecer sobre uma lei.

É imperativo, portanto, que o presidente Lula, restaurando a legalidade, revogue sem tergiversações o malfadado decreto. Não há razão convincente para que arquivos públicos anteriores, posteriores ou referentes ao regime militar (1964-1985) continuem protegidos por sigilo. É inaceitável privar o país de conhecer sua própria história.’

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‘‘Documentos devem ser abertos’, diz dom Paulo’, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/2004

‘Na Câmara Municipal de São Paulo, no aguardo dos manifestantes que acompanharam a homenagem ao metalúrgico Santo Dias da Silva, o arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, conversou rapidamente com a Folha. Na entrevista, falou sobre a reabertura de documentos da ditadura militar.

‘Cada instituição tem suas regras. Eu, por exemplo, fui arcebispo de São Paulo por 28 anos e tinha regras fixas as quais devia obedecer. O Fernando Henrique [Cardoso], estabeleceu que alguns documentos que tratam de segredos militares só fossem abertos daqui a 50 anos. Então, o novo presidente, provavelmente em respeito a esse decreto, mas também por causa da irritação da ala dura do Exército- que soltou nota inconveniente esses dias-, não se conformaria se a abertura fosse imediata’, disse.

O arcebispo diz que a abertura dos documentos deve ser feita imediatamente. ‘Porque ainda há pessoas que podem confirmar e testemunhar. Há quem possa acrescentar ou modificar alguma coisa porque pertenceram àquele tempo em que esses arquivos revelavam a tortura máxima no Brasil, sobretudo no tempo dos generais pós AI-5’.

Perguntado sobre se há falta de união entre as Forças Armadas, Congresso, entre outros poderes, foi categórico. ‘Acho que não. Ninguém pode ir contra uma determinação do presidente da República. Se ele declarar que todos os documentos devem ser abertos ao público, nós temos simplesmente que obedecer. Mas, como existe uma linha dura dentro do Exército, que pode se revoltar, acredito que o presidente tome muito cuidado para não agravar uma dissidência dentro da própria corporação.

E o que poderia ser feito em relação à abertura imediata dos documentos? ‘O Lula tem plena liberdade em fazer o que quiser, e também a plena liberdade de não fazer nada.’

Sobre o ato em homenagem a Santo Dias, disse que o metalúrgico é símbolo da luta contra os oprimidos e por isso conhecido em todo o Brasil.’

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‘Ex-secretário defende a abertura dos arquivos’, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/2004

‘O ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares disse ontem, em Caxambu (MG), ser favorável a ‘abrir inteiramente’ os arquivos existentes da ditadura.

O fato de muitos documentos não terem ainda sido liberados, ele diz, acontece ‘em nome da precaução’, mas, ao adiarem a sua divulgação, aumentam as tensões ‘entre civis e militares’ e ‘entre militares e militares’.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva tem sofrido pressões para rever um decreto editado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso [1995-2002], às vésperas da posse de Lula, que ampliou o prazo de indisponibilidade de documentos oficiais considerados sigilosos. Nesta semana, o ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, anunciou que a revisão e a abertura dos arquivos serão feitas ‘sem pressa’.

Enquadramento

O ex-secretário disse acreditar que os grupos militares que resistem à divulgação de documentos ‘não teriam como reagir’ se o governo Lula, dentro de um princípio de autoridade, ordenasse que isso fosse feito.

‘Se seguirmos a linha de autoridade e de hierarquia haveria enquadramento [dos descontentes]’, afirmou o cientista social, atualmente professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Ele diz que a demora em abrir os arquivos da ditadura continua ‘animando esse personagem misterioso que são ‘as forças ocultas’, que cria a ‘expectativa de tensões’.

‘Esses grupos [militares] só têm poder na medida em que continuem a ser tratados como fontes misteriosas de um virtual poder tentacular que tem que ser sempre reverenciado. Se o governo agisse, não teriam como reagir.’

Para o ex-secretário de Segurança Pública, há uma diferença, ‘que negligenciamos no Brasil’, entre perdão e esquecimento.

Para que haja uma verdadeira reconciliação, ele disse, é necessário que a verdade apareça, e os fatos do regime militar sejam conhecidos do público.’



O Estado de S. Paulo

‘Arquivos devem ser abertos’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 31/10/2004

‘Logo após conhecidos os resultados das eleições de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso ofereceu ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva todas as facilidades para que o período de transição de uma administração à outra não tivesse percalços de qualquer natureza. Prontificou-se mesmo – e o fez, em alguns casos – a submeter antecipadamente ao presidente eleito e sua equipe o teor de algumas medidas que teria de tomar e, mais que isso, a adotar as providências sugeridas pelo sucessor que pudessem facilitar os primeiros dias do novo governo.

Não se pode abstrair desse contexto a edição, em 27 de dezembro de 2002, do Decreto n.º 4.553, que dispõe sobre a salvaguarda de documentos sigilosos de interesse da segurança do Estado, e aumentou para 50 anos o prazo de liberação de documentos classificados como ultra-secretos, podendo esse prazo ser renovado indefinidamente. É esse decreto que está na raiz da discussão que se trava agora, pelos meios de comunicação, a respeito da liberação para o público dos arquivos da ditadura, em especial dos documentos relativos à repressão, à luta armada e aos movimentos subversivos de então.

O presidente Fernando Henrique nunca criou obstáculos ao conhecimento das operações desenvolvidas pelas forças de repressão, durante o regime militar, e fez o que esteve a seu alcance para promover a reconciliação nacional. Foi dele a iniciativa da Lei dos Desaparecidos e a criação da comissão de anistia, que ainda hoje reintegra direitos e concede indenizações a pessoas que foram perseguidas. O Decreto n.º 4.553 não fugiu a esse espírito.

Note-se que, logo no início do governo Lula, venceria o prazo de 30 anos de sigilo para os documentos secretos relativos à primeira fase da guerrilha do Araguaia. No final de 2004 já não haveria impedimento legal para a divulgação de todos os documentos relativos àquele episódio, que hoje pertence à História. O decreto, prolongando a salvaguarda, visava, sem dúvida, a poupar o governo que se iniciava do complicador de pressões que poderiam desencadear paixões e ressentimentos criando-se um clima que em nada facilitaria a tarefa que teria pela frente.

Passados dois anos, a situação é outra. À divulgação das fotografias que se dizia serem de Vladimir Herzog, nu e humilhado, antes de seu assassinato nas dependências do DOI-Codi, seguiu-se uma extemporânea manifestação do Centro de Comunicação Social do Exército, logo desautorizada, a mando do presidente Lula, pelo comandante do Exército. Com isso ficou evidente que as Forças Armadas estão profissionalizadas e em perfeito convívio democrático com a sociedade civil. Isso significa que críticas e revelações relativas a episódios da ditadura já não são encaradas como revanchismo ou tentativas de estabelecer um clima de animosidade contra os militares. Afinal, as pesquisas históricas produzidas nos últimos tempos demonstram à saciedade que os crimes praticados nos ‘anos de chumbo’, durante a repressão, foram ações executadas à margem da cadeia normal de comando e, por isso, não comprometem indelevelmente a instituição. E não há, também, por que comparar o caso brasileiro com as ditaduras que floresceram na região, nos anos 60 e 70, uma vez que, nos porões do DOI-Codi e nos confrontos armados, em 20 anos, morreram menos de 400 brasileiros, enquanto no Chile as vítimas estão na casa dos 10 mil e, na Argentina, dos 30 mil.

Por tudo isso, não há motivo para que as Forças Armadas se oponham à divulgação dos documentos relativos à repressão que porventura existam. Dizemos ‘que porventura existam’ porque certamente não haverá documentos comprovadores de atrocidades até agora não conhecidas nos tais arquivos secretos. A comissão que foi ao Araguaia, por exemplo, voltou de mãos vazias, apesar do apoio do governo. Arquivos inteiros foram destruídos há anos – e é por isso que membros do governo, do passado e do atual, afirmam que não restaram vestígios documentais importantes para o esclarecimento das questões levantadas pelas famílias dos mortos e desaparecidos.

Age bem o governo Lula ao cercar-se de cuidados para rever o Decreto n.º 4.553. Não porque não devam ser revelados detalhes daquilo que hoje pertence à História, mas porque o texto estabelece salvaguardas gerais, que abrangem documentos relativos à defesa nacional, às relações externas e a desenvolvimentos científicos e tecnológicos, cuja divulgação pode comprometer o interesse do Estado.

Quanto ao que se refere à repressão, tudo que exista deve vir a público para que cesse toda essa especulação, que é recorrente desde que se restabeleceu o regime democrático, e que ressurgiu agora com a publicação de fotografias que, afinal, não são de Vladimir Herzog.’

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‘‘Nenhuma das fotos retratava seu marido…’’, copyright O Estado de S. Paulo, 29/10/2004

‘Esta é a íntegra da nota divulgada pelo secretário Nilmário Miranda, no fim da tarde de ontem: ‘Cumprindo determinação do Exmo. sr. presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, visitamos – eu e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Jorge Armando Félix – a sra. Clarice Herzog em São Paulo, na tarde de hoje (28/10), para mostrar-lhe a seqüência de fotos, resultado de uma investigação ilegal conduzida no ano de 1974 pelo extinto Serviço Nacional de Informações (SNI).

Algumas das fotos que compõem a documentação foram publicadas pela imprensa nos últimos dias e identificadas como se fossem do jornalista Vladimir Herzog, morto pela repressão em 1975.

A sra. Clarice Herzog nos recebeu na companhia de uma amiga da família. E, depois de analisar toda a seqüência de fotos, chegou à conclusão de que nenhuma daquelas fotos, inclusive as que foram publicadas pela imprensa nos últimos dias, retratava seu marido Vladimir Herzog. O exmo. sr. presidente da República solicitou que, na ocasião, transmitíssemos à sra. Clarice Herzog os sentimentos de carinho e solidariedade. NIlmário Miranda, secretário especial dos Direitos Humanos.’’