Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Isabel Travancas

‘Uma história social da mídia, Asa Briggs e Peter Burke, Jorge Zahar Editor, 380 páginas, R$ 49

O historiador inglês Peter Burke, em seu livro A fabricação do rei, no qual analisa a imagem pública de Luís XIV da França, declara: ‘O que me interessa quando escrevo sobre história é sobretudo a tarefa de fazer mediação entre duas culturas, entre o passado e o presente.’ É sobre a possibilidade desta mediação entre tempos e espaços distintos que trata seu novo livro Uma história social da mídia, escrito a quatro mãos com o pesquisador e reitor da Universidade Aberta Britânica, Asa Briggs. Briggs é autor de vários livros sobre radiodifusão. Burke é um pesquisador eclético, tem vários livros publicados no Brasil sobre temas variados como o Renascimento, a história do conhecimento, além do clássico sobre o Rei Sol. E não é apenas um visitante freqüente dos trópicos, como tem grande interesse por nossa história.

Uma história social da mídia é uma obra de fôlego. Procura abarcar a comunicação no mundo ocidental do século 15 aos nossos dias. Sabiamente os autores apontam, já no título, para a idéia de que essa é ‘uma’ história, não é a única, reforçando as escolhas que realizaram nesta seleção de eventos e reflexões. Outro ponto importante que Burke e Briggs enfatizam desde a introdução é o uso do conceito de mídia. Explicam que ele apareceu a primeira vez na década de 20, mas que eles irão usá-lo indistintamente desde a Bíblia de Gutenberg, porque entendem que o interesse pelos meios de comunicação é muito anterior ao aparecimento desta noção.

A obra, dividida em seis capítulos, tem diversas imagens que não apenas ilustram, mas fazem o texto respirar, uma vez que seu conteúdo é denso. O que não significa uma escrita árdua ou difícil para o leitor menos habituado com textos acadêmicos. Uma história social da mídia é contada nos seus detalhes, com suas peculiaridades e anedotas. Por trás delas está uma pesquisa minuciosa e aprofundada de cada inovação e seu contexto.

Os dois pesquisadores tiveram o cuidado de demarcar bem seus territórios, o que não acontece com freqüência em livros escritos em conjunto. A introdução e os dois primeiros capítulos são de autoria de Burke e os restantes e a conclusão são de Briggs. Ainda que esta divisão não comprometa o desenrolar do livro, fica evidente a marca e as diferenças de cada um deles.

Um dos méritos de um livro com estas dimensões e propósitos é não apresentar uma história de fatos e acontecimentos ou de invenções e inovações. À medida que vão entrando em cena novos elementos, seu contexto é apresentado, sem ênfase em alterações bruscas e irreversíveis. Como eles mesmos destacam: ‘Pensar em termos de um sistema de mídia significa enfatizar a divisão de trabalho entre os diferentes meios de comunicação disponíveis em um certo lugar e em um determinado tempo, sem esquecer que a velha e a nova mídia podem e realmente coexistem, e que diferentes meios de comunicação podem competir entre si ou imitar um ao outro, bem como se complementar.’ Esta preocupação está presente desde o surgimento da imprensa e sua relação com os manuscritos. Estes continuaram a ser usados para comunicações específicas. Lógica que se repete ao lembrarmos do surgimento do rádio, que, para muitos, ameaçaria os jornais – raciocínio que se repetiu com a invenção da televisão e que se perpetua com a entrada em cena da internet.

Os dois primeiros capítulos do livro abordam as transformações sofridas pela mídia desde a impressão gráfica no século 15 até a Europa Moderna. Burke fala das mudanças na forma de leitura, a relação entre divulgação oral e impressa, os acontecimentos políticos e sociais como a Reforma, as guerras religiosas, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Para o historiador, neste movimento a participação do povo foi tanto causa quanto consequência da atuação da mídia. É sabido que o movimento político foi bom para a imprensa. Havia um grande número de notícias e as publicações se multiplicaram neste período, ainda que, como lembra Burke, em 1789 a maioria do povo francês não soubesse ler.

A questão da constituição de uma esfera pública nos termos de J. Habermas é o tema da discussão que fecha esta etapa do livro. O historiador procura trabalhar tanto a favor quanto contra a idéia do pensador alemão. Para Burke, contrariando Habermas, é possível pensar em esfera pública nos séculos 16 e 17. Ele enfatiza a sua fraqueza estrutural nos antigos regimes, distinguindo dois tipos de esfera pública: o temporário e o permanente, ou o estrutural e o conjuntural. Este é um dos pontos altos do livro, que em alguns momentos se excede em minúcias e exagera na quantidade de informação, condensando épocas e complexidades.

Essa falha se acentua no terceiro capítulo e em parte do quarto, escritos por Asa Briggs e que tratam das inovações decorrentes da Revolução Industrial, principalmente na área de transportes com o aparecimento do motor a vapor. Para Briggs, este é ‘o grande marco da história humana’ e trouxe implicações para a própria produção dos jornais que passaram a ser impressos mais tarde e trazer notícias mais recentes.

Em seguida, ele trata da invenção do transistor eletrônico, de como a própria relação com o tempo se modifica ao longo deste processo. O pesquisador talvez se entusiasme demais com a história das ferrovias, navios, correio, telégrafos, telefones e radiotelegrafia, esmiuçando detalhes que muitas vezes distanciam o leitor do objetivo principal do autor: relacionar estas novas máquinas e sistemas com a própria mídia.

Os dois últimos capítulos do livro são o filé mignon do trabalho dos dois historiadores, por estarem mais próximos do leitor na sua viagem no tempo – abordam os séculos 19 e 20 — e por dialogarem com autores fundamentais para a discussão sobre a indústria cultural e os meios de comunicação de massa, tendo em mente o acesso à informação e à melhoria da educação. Isso sem deixar de lado o poder destes meios e o seu papel na formação da opinião pública. Não por acaso, os autores citam uma fala de uma personagem do romance Coningsby, de Bejamin Disraeli, que afirma: ‘Deus fez o homem à sua própria imagem, mas a do público é feita pelos jornais.’

Tanto Burke quanto Briggs são cuidadosos ao se referirem à influência dos meios de comunicação de massa sobre os indivíduos. Eles apontam para o exagero da perspectiva dos pensadores da Escola de Frankfurt que demonizam a mídia, mas não negligenciam sua força. E, mesmo que rapidamente, os autores lembram de O público e a multidão, obra de Gabriel Tarde, hoje ausente das discussões e trabalhos sobre mídia.

O último capítulo intitulado ‘Convergência’ trata da tecnologia e traz uma história do computador, que, mesmo breve, é importante. Busca, ainda, sistematizar a discussão sobre a internet, a introdução do cabo nos sistemas televisivos e o avanço tecnológico que significou o computador de uso pessoal. Briggs não se esquece da dimensão do lazer, abordando os jogos e programas de diversão. Também não se deixa fascinar pela tecnologia, chamando a atenção para a questão do conteúdo das novas mídias, muitas vezes deixada de lado pelo entusiastas destas novidades.

Burke e Briggs finalizam a obra, que tem tudo para se tornar uma referência para estudiosos do tema, ressaltando que não houve um caminho único de desenvolvimento e que a principal característica dos fenômenos estudados é a complexidade. Complexidade que a aponta para a idéia de realimentação presente nas ciberviagens, mas que não pode, nem deve, ser exclusiva delas. Afinal, como salientam os autores, vivemos em um mundo onde há mais mediação do que em qualquer outro momento da história.’



MINORIDADE CRÍTICA
Fernanda Buarque de Hollanda

‘O nascimento da crítica’, copyright Jornal do Brasil, 12/06/04

‘Minoridade crítica: A ópera e o teatro nos folhetins da corte, Luís Antônio Giron, Ediouro, 416 páginas, R$ 49

Machado de Assis, José de Alencar e Gonçalves Dias são nomes que remetem diretamente o leitor a obras consagradas da literatura nacional. O valor literário inquestionável de seus romances e poemas leva a crer que a produção desses autores foi marcada desde o início por um merecido reconhecimento. Mas nem sempre foi assim. Pertencentes a geração pioneira de críticos musicais brasileiros, esses escritores, assim como outros jornalistas, sofreram preconceito por produzirem artigos considerados superficiais, relegados aos rodapés das publicações da imprensa nacional.

O preconceito e o desinteresse por parte da imprensa e do mercado editorial – mesmo a publicação das obras completas de autores como Gonçalves Dias desprezou muitos desses artigos – já podem ser considerados retaliados. No livro Minoridade crítica, o renomado crítico musical Luís Antônio Giron analisa o trabalho de seus colegas mais antigos, os autores de crônicas sobre óperas e espetáculos musicais realizados no período de 1826 a 1861, no Rio de Janeiro.

Giron demonstra que mesmo se tratando de uma atividade descompromissada, realizada por diletantes e não por profissionais com um conhecimento amplo sobre arte, a crítica produzida naquele período teve grande importância para a memória e para o progresso musical.

Além da importância para o desenvolvimento artístico, ao tocar em assuntos tão supérfluos quanto os belos ornamentos da coroa utilizada pela cantora lírica Rosine Stolz, durante sua apresentação musical, e tão importantes quanto o surgimento de um compositor lírico brasileiro, Carlos Gomes, autor do musical Il Guarany, as crônicas retrataram os costumes, hábitos e do pensamento da sociedade brasileira pós-colonial.

Era nos folhetins – termo então utilizado para publicações dedicadas às críticas musicais – que os articulistas expressavam suas posições estéticas e políticas. Na defesa ou na crítica de determinada prima-dona, os folhetinistas revelavam posturas nacionalistas ou colonialistas, por exemplo.

Semelhante a seus antigos colegas, que se utilizavam de temas e textos ‘menores’ e realizaram alguns dos documentos mais significativos da história cultural brasileira, o autor de Minoridade crítica faz de seu livro um importante estudo da atividade crítica e do surgimento dos cadernos culturais no Brasil a partir de um material menosprezado pela historiografia musical. Originalmente uma dissertação em musicologia histórica, apresentada em 1999 à Escola de Artes e Comunicações da USP, a obra de Giron é bem-sucedida em revisitar e revalorizar as crônicas musicais produzidas entre a Independência e o Segundo Reinado do Brasil.

O mérito de pesquisador, analista e intérprete do conteúdo dos folhetins é acrescido ao grande potencial de organizador do autor de Minoridade. A seleção e a publicação da antologia de críticas, que serviram de base para a realização da dissertação, permitem ao leitor acompanhar mais de perto a evolução estilística dessas críticas e entrar em contato com os primeiros cadernos culturais, uma novidade no jornalismo daquela época. A inclusão da antologia também possibilita saciar a curiosidade em relação aos primeiros exemplares da produção literária de autores bastante conhecidos, como o dramaturgo Martins Pena.

Divididas em sete períodos dentro da fase analisada, as críticas publicadas revelam a inexistência de um padrão comum, o que proporcionou uma grande diversidade de gêneros textuais, que assumiram formas de resenha, ensaio, crônica e afins. Uma liberdade gozada por seus escritores que só poderia ocorrer mesmo no período inicial de consolidação de uma nova atividade, de um novo estilo jornalístico, como a crítica musical.

É justamente nessa liberdade que se pode constatar a habilidade e o talento peculiar dos folhetinistas. Seja na capacidade de Machado de Assis de resistir ao estilo borboleteante de seus colegas, buscando crônicas mais sintéticas, ou por outro lado, na generalidade descritiva do texto de José de Alencar. Em ambos, o leitor pode verificar um prenúncio estilístico de suas consagradas obras.

Além de apresentar uma rica antologia de textos, o livro traz ainda uma seleção iconográfica interessante, com fotos do escritor Gonçalves Dias e da cantora lírica Rosine Stoltz, caricaturas sobre o universo musical e imagens de alguns folhetins. Esse recurso complementa a ampla contextualização presente na pesquisa do autor.’