‘Um fenômeno pouco previsível está acometendo o bilionário mercado brasileiro de televisão. Depois de perder participação consistentemente na audiência em meados dos anos 90, a Rede Globo recuperou níveis muito próximos de seus melhores tempos de soberania, nas décadas de 70 e 80.
Nos últimos oito anos, a líder elevou sua participação em 25% no chamado ‘prime time’ nacional, horário das 18 horas às 24 horas, em que se concentra em torno de 70% da receita em publicidade na televisão. Partiu em 1997 de 31 pontos para 39 pontos nos oito primeiros meses deste ano. Com isso, elevou a participação sobre os televisores ligados de 53% para 64%.
A soberania global sufoca as concorrentes, que de pretensões para chegar ao topo anos atrás agora investe como nunca na disputa dos pontos que restam fora do domínio da líder. No ano passado, enquanto a Globo elevou o faturamento em 20%, para R$ 3,6 bilhões, a vice-líder, o SBT, perdeu 7%, para R$ 555 milhões. A Record, a terceira, admite copiar a Globo para poder brigar pela ponta.
Audiência da líder retorna aos melhores níveis, chega a 64% de participação média e põe rivais a brigar pelo restante. Quando Laura matou Lineu, ou quando Preta finalmente fechou negócio com Paco, a caixa registradora da Rede Globo tilintou, nos últimos meses, com a fúria de seus melhores momentos, nas décadas de 70 e 80, período em que a concorrência mal existia. As duas últimas novelas, ‘das 8’ e ‘das 7’, são bons exemplos de como o grupo de comunicação mais poderoso do País retomou surpreendentemente os níveis de audiência de décadas atrás e reverteu a pressão que sofria da concorrência até recentemente.
Reaver índices próximos do que detinha décadas atrás parecia improvável, depois que SBT, Rede Record, e mais recentemente, Rede Bandeirantes, passaram a investir pesado para conquistar os milionários pontos na preferência do telespectador brasileiro. Desde que passou a dominar o ranking da TV no País, no início dos anos 70 – desbancando então líderes como Tupi e Record – a Globo não largou mais a liderança isolada, num mercado em que cada ponto de audiência em rede nacional no horário nobre vale hoje em torno de R$ 50 milhões em propaganda por ano.
Mas a primeira posição vinha cedendo pontos desde o final dos anos 80 e nos 90, com o crescimento de concorrentes como o SBT do apresentador e empresário Sílvio Santos, que alcançou prodígios como fazer com que seu policial-jornalístico Aqui Agora encostasse, por vezes, no Jornal Nacional, o espaço mais caro da mídia brasileira (R$ 200 mil cada 30’). Analistas chegaram a prognosticar uma inevitável queda da Globo, até o equilíbrio com alguma adversária. Inferia-se também o crescimento rápido dos canais por assinatura, que roubariam audiência das TVs abertas, inclusive da líder.
Mas a pressão que se impunha à líder dez anos atrás se reverteu. As concorrentes, agora, é que aumentam as apostas para sustentar os pontos amealhados a duras penas no horário nobre e limitam-se a brigar pelo segundo ou terceiro lugares. E a suposta disparada da TV paga não ocorreu. Para se ter idéia, nos últimos sete anos a Globo cresceu 25% em audiência no chamado ‘prime time’ (entre 18 horas e 24 horas), enquanto as concorrentes, que nunca investiram tanto, se mantiveram estáticas ou perderam pontos. Do ano passado para este (considerando a média de audiência entre janeiro e agosto), a emissora elevou sua média de 34 para 39 pontos, em torno de 15% no período. Isto faz com que sua participação no horário tenha subido aos 64% dos aparelhos ligados nessa faixa de horário.
‘Somos a única emissora que investe consistentemente na grade de programação. E por isso os resultados são favoráveis’, limita-se a diagnosticar Luís Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação. Ele considera que não apenas as várias últimas novelas do horário nobre alcançaram recordes, mas programas estáveis, como o telejornal mais duradouro do País, o Jornal Nacional (que este ano completou 35 anos), elevaram a audiência.
No ano passado, enquanto a segunda colocada perdeu 7% do faturamento e fechou com R$ 555 milhões, a Rede Globo de Televisão faturou R$ 3,631 bilhões. Para este ano, a expectativa não declarada é a de que o bolo global aproxime-se dos R$ 4,4 bilhões, resultado de um crescimento na receita de cerca de 20%, nos patamares do que obteve em 2002/2003. ‘Não posso falar em projeções, mas estamos crescendo bastante’, confirma Erlanger.
Mas exatamente por que a Globo voltou a liderar com tanta folga o bilionário mercado brasileiro de televisão? Entre os mais respeitados analistas da mídia nacional, o diretor comercial da agência de publicidade DPZ, Daniel Barbará, dedica o êxito, entre outras coisas, à recente reciclagem da programação. ‘A Globo tornou-se muito mais variada na última década. Talvez por pressão do crescimento da concorrência. Basta lembrar que a Globo não transmitia futebol até 1990, só a Copa do Mundo. O Campeonato Brasileiro, que hoje é um dos patrocínios mais caros do País, era da Bandeirantes. Também o próprio público adolescente e jovem passou também a ser atendido, em programas bem sucedidos como Malhação. Essa variedade com qualidade têm conseguido atrair todas as faixas de público’, avalia.
Foi de fato na última década que a líder cedeu a algumas preferências populares. Incluiu na programação, por exemplo, modismos como os músicos sertanejos – antes restritos às segundas redes – e o próprio sotaque paulista. Além dos domingos entregues a Faustão, a Rede Globo transferiu a São Paulo em 1998 uma parte generosa de sua produção nacional, anteriormente restrita à matriz, no Rio. A mudança buscou atender a uma só vez a necessidade de aproximação física e cultural com boa parte de sua audiência e avizinhar-se do mercado de onde colhe pelo menos 60% de seu faturamento.
Tamanha hegemonia na audiência gera uma equivalente concentração da verba publicitária, situação sem paralelos em países tidos como referência comparativa. Nos Estados Unidos, a participação da TV na receita publicitária é de cerca de 40%, índice pouco inferior ao que ocorre na vizinha Argentina, ao redor de 45%. No Brasil, a TV toma mais de 60% de tudo o que se investe em propaganda, mais da metade nas mãos da Globo.
A terceira no ranking de audiência e em faturamento, a Rede Record não esconde uma curiosa receita com a qual alimenta a pretensão de não só ultrapassar o vice SBT mas também abalroar a líder. ‘Não se pode negar a competência da programação da Globo. E a nossa tenta competir oferecendo cada vez mais uma grade que se pareça com a dela. Nenhuma outra tem tanta similaridade de oferta quanto a Record’, assume o presidente da rede, Dennis Munhoz. Nesse sentido, vai tirar do ar este mês um dos principais sucessos de audiência do canal nos últimos anos, o Cidade Alerta, policial-jornalístico inspirado no antigo Aqui-Agora, do SBT. No lugar, será estendida a revista diária recém-criada Tudo a Ver, comandada pelo jornalista Paulo Henrique Amorim.
‘Fizemos opção pela qualidade e nela vamos nos aprofundar. Mas não vamos apelar para o sexual, como a Globo faz muitas vezes’, resume Munhoz. Na busca de uma grade à imagem e semelhança da líder, a Record inaugura dia 18 sua nova novela, o remake de A Escrava Isaura, sucesso da Globo nos anos 70. No início deste ano, inaugurou seu horário de novelas com Metamorphose, co-produção com a produtora Casablanca que acabou mais cedo como fiasco de audiência.
‘Vamos insistir. Temos que ganhar experiência na área de teledramaturgia para poder competir de igual para igual com quem está na frente’, defende Dennis Munhoz. Além de Escrava Isaura ele já prevê um segundo horário de novelas para a emissora no ano que vem. Afora isso, a Record investiu forte nos últimos meses para trazer ex-atrações globais para si, como o humorista Tom Cavalcanti (diariamente) e o ator-apresentador Marcio Garcia, no comando de um reality-show. Apesar do esforço dos últimos tempos, a audiência da Record no ‘prime time’ nos oito primeiros meses do ano se manteve em 4 pontos, só um ponto a mais do que detinha sete anos atrás.
No SBT, Sílvio Santos deflagrou nova reestruturação, que cortou altos executivos e até o fim do ano vai demitir mais 100 funcionários. O objetivo é ‘voltar a ter lucro líquido’, como definiu o próprio comunicado da emissora. Mas pelo menos a princípio o canal não vai mudar a opção de programação adotada há sete anos – quando a emissora praticamente eliminou o jornalismo do horário nobre e fez opção pelo entretenimento – a base de novelas de baixo custo ou compradas no exterior, shows variados e um com pacote de filmes.
‘Somos vice-líderes absolutos e nossa busca é por uma participação de verba publicitária equivalente ao nível de audiência’, reclama o novo diretor comercial Claudio Santos, alegando que detém cerca de 15% de participação na audiência no ‘prime time’ mas só cerca de 10% do bolo publicitário.
O questionamento sobre a suposta desproporção audiência/verba em favor da Globo é também da Record. Mas com base nos números da pesquisa Inter-Meios, em 2003, embora a participação de audiência da Globo tenha sido de 64%, a publicidade ficou em 55%. ‘Não vejo vantagem neste caso para a Globo. O custo por ponto de audiência é inclusive menor do que o das concorrentes’, avalia Daniel Barbará.
E mesmo do alto da cômoda posição de líder absoluto, o executivo global Luís Erlanger promete mais. ‘Ninguém tem no horário nobre tanta produção nacional. E não nos satisfazemos com o sucesso esporádico de uma novela e buscamos novos recordes de audiência na seqüência. Isso vai continuar assim’, projeta, buscando sintetizar a liderança.
Mesmo assim, a vida das Organizações Globo não tem sido fácil nos últimos anos. Mergulhado em investimentos tecnológicos para áreas como a Globocabo (na área de assinaturas), o conglomerado viu sua dívida externa quase triplicar com a desvalorização do real. O passivo calculado em US$ 1,2 bilhão está sendo negociado com os credores externos. Por sorte, a fonte de recursos para recompor as contas é mesmo a emissora, que não podia contar com melhor fase.’
Oficina de Informações
‘O Brasil visto da Globo’, Editorial, copyright Oficina de Informações, 30/09/04
‘Não é que a Rede Globo impede o avanço da cultura política brasileira. Ela tenta: em 1984, tentou impedir que os brasileiros tomassem conhecimento de que estava em curso uma grande campanha popular por eleições livres e diretas, noticiando o grande comício na Praça da Sé que lançou o movimento como se fosse a festa do aniversário da cidade de São Paulo; em 1989, manipulou o debate entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas da eleição presidencial, para impedir que o metalúrgico derrotasse o caçador de marajás e chegasse à presidência da República. Mas a força dos fatos é maior que a da G/oba. a campanha das diretas saiu; Lula foi eleito presidente da República.
O problema é que a Globo contribui para atrasar o desenvolvimento da cultura política brasileira: se as eleições presidenciais diretas tivessem sido obtidas no bojo do grande movimento de massas de 1984; se Lula tivesse sido eleito presidente em 1989, quando era um líder vinculado à mobilização da classe operária e de seus aliados, outra teria sido a história recente do país. Através do Jornal Nacional, o principal veículo de informação do país, todos os dias a Globo edita o que considera as principais notícias do Brasil e do Mundo com uma orientação política que pode não ser tão explícita como a dos dois episódios citados, mas é sempre conservadora. Como disse William Bonner, apresentador e editor-chefe do JN(na foto, com Fátima Bernardes): ‘Somos vistos por famílias inteiras, e eu estaria traindo o telespectador se exibisse imagens capazes de chocar seus filhos’. Na frase, Bonner falava à revista Veja sobre a necessidade de mostrar a violência de forma limpa ‘sem sangue, sem tiros, sem pancadaria’. Mas sua avaliação vale também para definir o conservadorismo do JNde maneira mais geral: ele é contra todo e qualquer tipo de ruptura política; é um esteio na defesa do status quo, tanto a nível nacional quanto a nível local, das dezenas de acordos políticos feitos pelos Marinho com as oligarquias regionais que comandam em geral suas famosas afiliadas.
A Globo lançou há pouco um manifesto em defesa da produção nacional do audiovisual. Mas hoje se diz ameaçada pelo governo Lula, a quem ela entregou o documento. José Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo, disse numa espécie de brado de alerta que o projeto do governo para a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual é uma ameaça de morte aos principais produtos da empresa. ‘Está ameaçada a novela das oito’; ‘está ameaçado o telejornalismo de qualidade’, diz Marinho, como que conclamando o povo a defender os dois programas de maior audiência do país.
Marinho repete em seu artigo uma espécie de conto de fadas sobre o sucesso da empresa. Deixa de lado a grande articulação conservadora que sempre a sustentou e o apoio que ela sempre deu a todos os governos, para sugerir que o êxito das Organizações Globo é decorrente da genialidade empresarial de seu pai, Roberto. Ele promoveu a ‘união na diversidade’ com seus acertos regionais. E com o seu ‘respeito pelo que é brasileiro’ conseguiu ‘um índice de produção e exibição de produtos nacionais que só se encontra nas TVs americanas’. Curiosamente, um dos pontos centrais da luta da Globo contra o projeto da regulamentação do audiovisual é o fato de o governo exigir que as tevês nacionais tenham produção regional. Um dos dirigentes da Globo chega a dizer que essa exigência fere ‘o princípio constitucional que assegura a liberdade de criação e programação’ (o itálico é nosso).
Desenvolvimento neoliberal
Marinho não toca no problema em seu apelo, mas o fato é que a Globo quebrou por acreditar no desenvolvimento apoiado na dívida externa, como os governos neoliberais que apoiou. A G/oboé a garantidora da Globopar, que deve US$ 1,9 bilhão, por conta do empreendimento de tevê a cabo que seria lucrativo com 10 milhões de assinantes, mas não tem sequer 1,5 milhão. A Globo apostou nas fantasias do esporte globalizado e monopolizou os direitos da Copa do Mundo por U$ 240 milhões de dólares. A Globo passou a monopolizar os excelentes artistas que tem pagando-os para não trabalhar em outras empresas.
Hoje, a Globo se levanta contra a cobrança de impostos como se fosse uma censura. Um detalhe: o governo quer cobrar de filmes tipo Shrek e Homem Aranha, que entram no país com mais de 200 cópias, R$ 600 mil. Hoje, esses filmes pagam R$ 3 mil, o mesmo que qualquer outro filme, mesmo que de uma cópia apenas. Quanto custam um Shrek, um Homem Aranha? Aproximadamente 100 milhões de dólares em produção e 30 milhões de dólares em marketing, para empresas globais como a Time Warner. Por que o grupo Marinho não quer taxar a grande indústria cinematográfica estrangeira? Porque vê o seu desenvolvimento associado a essas grandes empresas. A Globo não quer, por exemplo, que a nova agência do audiovisual possa ser usada para discutir o seu acordo com os mexicanos da Telmex. Estes estão colocando US$ 150 milhões de dólares na empresa, na esperança de que a legislação brasileira venha a ser mais aberta, para facilitar a sua entrada no país e suas pretensões de controle. É isso o que parece estar no centro das preocupações da Globo.’