Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

James Görgen

‘No mês de junho, a linha que separa a liberdade de imprensa e de expressão do livre exercício do poder de mando das empresas jornalísticas sobre seus contratados foi rompida. Para alguns, as demissões do comentarista e apresentador esportivo Jorge Kajuru, na TV Bandeirantes, e do jornalista e colunista Alberto Dines, pelo Jornal do Brasil, foram provocados pelas atitudes extremadas dos dois profissionais. Para outros, a reprimenda, com ares de censura, partiu de seus empregadores como forma de retaliação contra opiniões e informações consideradas inaceitáveis por contrariarem interesses particulares das empresas (saiba mais nas páginas 9 e 10). Mais do que uma simples desavença patrão-empregado, a punição a que foram submetidos os jornalistas puxou um dos fios mais frágeis do cobertor curto que serve de manto para a liberdade de imprensa no País. Aquele que está a exigir uma revisão dos códigos tácitos que regem os contratos sociais no jornalismo nacional.

O assunto não é novo e parece estar longe de se esgotar. Em qualquer lugar do mundo, onde existe jornalismo, existe a possibilidade real de transgressões e violências ao direito à informação. Contra jornais, jornalistas ou contra o público. De forma sub-reptícia ou escancarada. O passado recente tende a manter na lembrança arbitrariedades causadas à imprensa como instituição e geralmente praticada por governos – a censura prévia de Estado. Os conflitos relativos à liberdade de imprensa e de expressão que vieram à tona no Brasil, porém, parecem afetar dois outros elementos desta equação: os profissionais e a sociedade.

Desculpas públicas

Para o diretor de Programas para a América Latina do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), Luis Manuel Botello, os casos recentes demonstram que ‘as autoridades do governo no Brasil não têm a tolerância necessária nos países democráticos’. Em sua opinião pessoal, a situação se torna mais grave pelo fato de as empresas estarem cedendo. ‘Os governos sempre tentaram pressionar a imprensa para atingir seus objetivos. A imprensa tem a responsabilidade de denunciar estas pressões. A melhor maneira de enfrentar as pressões é a partir do debate público sobre os problemas que afetam a livre expressão’, avalia o representante do ICFJ.

Foi o que ocorreu no início de maio, a partir de um texto assinado pelo correspondente do The New York Times no Brasil, Larry Rother, questionando posturas do presidente Luís Inácio Lula da Silva. A decisão do governo federal em expulsar o repórter do País mobilizou o Congresso Nacional, entidades de jornalistas e a sociedade, tornando pública a polêmica sobre a qualidade do jornalismo e os excessos cometidos por todas as partes. No final do mesmo mês, o tradicional jornal norte-americano fez justiça em seu quintal. Publicou artigo assinado por seus editores com o resultado de um auto-exame a respeito da cobertura que o jornal dedicou à Guerra do Iraque. Os leitores do NYT receberam um pedido de desculpas pelo fato de o jornal ter sido ‘pouco agressivo’ na apuração de informações e pelo excesso de confiança em determinadas fontes.

Silêncio constrangedor

Essas podem ser consideradas exceções à regra. O que acontece no Brasil, quando casos de censura interna vêm a público, parece ser justamente o contrário. Com exceção dos leitores de serviços de notícia especializados em jornalismo, o Brasil só foi informado sobre novos atentados à liberdade de imprensa por meio de uma matéria da revista Veja e de notas na Folha de São Paulo. Ambas tratavam apenas da demissão do radialista Jorge Kajuru e ignoravam a situação dos jornalistas mineiros e de Alberto Dines.

Esse silêncio constrangedor foi denunciado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) em nota pública na qual a entidade se solidarizou com os profissionais punidos. Depois de apresentar os episódios de Minas e do Rio como ‘sinais de recrudescimento do ambiente de liberdade de expressão e de imprensa no Brasil’, a Federação lamentou a atitude dos veículos. ‘A não repercussão destes episódios pelos demais veículos parece confirmar a aprovação silenciosa de todo um setor empresarial, que deveria ter na credibilidade da informação e na transparência de seus negócios seu patrimônio maior’, afirma o texto. ‘As empresas perderam o fair-play e não estão dispostas a promover este debate esclarecedor’, entende Dines.

Para produzir esta reportagem, ao longo de duas semanas, o Versão solicitou entrevistas à TV Bandeirantes, ao JB e à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Somente as assessorias de imprensa da emissora paulista e da Abert responderam. Ambas informaram que não iriam conceder entrevista. O Versão também não recebeu retorno das solicitações de entrevista feitas por telefone e e-mail à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e aos Repórteres Sem Fronteiras (RSF).

Cinismo e contradição

Uma das causas para esta postura pode ser subproduto de um fenômeno dos tempos modernos: o cinismo. De meados dos anos 90 para cá, as entidades representativas do setor têm aprovado declarações de princípios e códigos de ética que condenam expressamente a censura a jornalistas e pregam a busca incessante pela verdade. ‘O cinismo vem crescendo, uma vez que estes acordos e contratos não representam mais do que ‘trapos de papel’’, afirma o chefe do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Francisco Karam. ‘A contradição em relação a estes princípios se apresenta cada vez que o interesse público esbarra no interesse da empresa’, destaca. Autor do livro ‘Jornalismo, Ética e Liberdade’, o professor não vê formas imediatas de se avançar nesta questão. ‘Chega a ser surreal: os jornalistas que seguem os princípios que os empresários subscreveram são punidos’, resume.

Defensor da idéia de que a informação não é um bem privado, Karam entende que o jornalismo mundial está se afastando rapidamente dos ideais e de conceitos ambicionados ao longo do século XX. ‘Ao lidar com os fatos, fenômenos e interpretações não se pode negar o maior número possível de visões do mundo’, lembra. Ao mesmo tempo, ele entende que a mídia reflete o grau de democracia da sociedade e que o Brasil ainda não atingiu a maturidade política exigida para se expressar a controvérsia sem retaliações. ‘Há um clima geral de apelação à violência que é ruim’, concorda Dines.

A ampliação do campo de interesse das empresas de comunicação também contribui para o aumento do controle editorial interno. ‘As próprias empresas deveriam zelar para que o repórter tivesse interesse em cobrir pautas que as envolvem ‘, acredita o presidente da Radiobrás e autor do livro ‘Sobre Ética e Imprensa’, Eugênio Bucci. No século passado, os proprietários de veículos estimulavam a separação entre ‘Igreja’ (redação) e ‘Estado’ (departamento comercial) por enxergarem na credibilidade sua garantia de rentabilidade e atração de mais leitores e anunciantes. Aos poucos, este jornalismo feito de ‘relações e distanciamento’ foi dando lugar ao que o professor Karam chama de ‘jornalismo de compadrio’. Para Bucci, a redução destas fronteiras é um dos principais obstáculos para a evitar a decadência nas relações dentro das redações.

Lei na gaveta

O jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, presidente do Conselho de Comunicação Social e estudioso da regulação da liberdade de imprensa e de expressão, entende que não existe modelo de auto-regulação possível para a imprensa. ‘Isso não existe em país nenhum do mundo’, afirma. Para o advogado, existem outras saídas para reduzir este tensionamento que leva à censura privada ou à autocensura. ‘Jornalista escreve o que o dono de jornal quer ou consente que diga. A maioria dos autores internacionais diz assim. Para dar mínimos de dignidade à frase, e democracia nessas relações, penso que se deveria tratar de três pontos: cláusula de consciência, cláusula de autor e uma lei de imprensa decente, que valorize o papel do jornalista’, resume José Paulo. Segundo ele, das tentativas de alteração à atual Lei de Imprensa (lei nº 5.250/67) que tramitam no Congresso Nacional, um substitutivo responde aos três pontos citados.

Mais uma vez, impera a lei do silêncio. A primeira versão do novo projeto de lei de imprensa – o PL 3232 – é de 1992 e surgiu no Senado por iniciativa do senador Josaphat Marinho (PMDB-BA). Três anos depois, a Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados aprovou novo substitutivo. Uma terceira versão, surgida a partir da relatoria de Vilmar Rocha, tramitou na Comissão de Constituição e Justiça de março de 1996 a setembro de 1997, quando foi a Plenário. Desde lá, permanece engavetado, sob custódia da Mesa Diretora da Câmara.

Assédio moral

Mais do que silêncio e cinismo, o grau de subjetividade em que este assunto está mergulhado impede até que se registre oficialmente as agressões ao trabalho do jornalista. ‘Isso é quase uma rotina nas redações mas não se tem como provar’, afirma o coordenador do departamento técnico do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, Nelson Sato. Responsável pelo acompanhamento das estatísticas de admissão e demissão dos jornalistas brasileiros, Sato tem contato permanente com as mais variadas formas de humilhação, perseguição e controle praticadas contra jornalistas por parte das empresas. ‘São vários os casos de restrição à liberdade de imprensa, mas temos que tratar como processo trabalhista’, diz.

Nos últimos anos, os sindicatos de jornalistas do país passaram a enquadrar este tipo de denúncia em processos por ‘assédio moral’. Mesmo assim, os trabalhadores evitam assumir que foram demitidos por se negarem a alterar uma notícia para agradar à empresa ou porque algum anunciante ou governante ‘pediu sua cabeça’, como é comum ouvir dentro das redações. Em uma profissão em que ter o nome ‘limpo’ é um patrimônio importante, a liberdade vigiada se impõe mesmo na hora da denúncia dos abusos de poder. E se confunde credibilidade com comportamento dócil. Com exceção de Dines, o Versão não conseguiu entrevistar jornalistas dispostos a relatar momentos em que sofreram punições ou foram despedidos por atuação em pautas contrárias aos interesse da empresa. Neste momento, o Sindicato de São Paulo está acompanhando apenas dois casos de assédio moral.

A falta de estatísticas não apaga o fato de que a ameaça à liberdade de imprensa está cada vez mais presente. ‘O que sempre existiu no Brasil foi a liberdade de empresa’, diz o jornalista e secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República, Ricardo Kotscho, 40 anos de profissão, ressalvando que não defende a impunidade do mau jornalista. Ex-presidente da Fenaj, ele acredita que os recentes desvios de comportamento das empresas estão muito ligados à desmobilização dos jornalistas. ‘Antigamente, quando se mexia com um jornalista, mexia-se com todos. Agora cada jornalista quer mais é cuidar da própria vida’, lamenta.

Comissão inédita

Nem sempre foi assim. De 1986 a 1988, os jornalistas gaúchos experimentaram em Porto Alegre avanços só conhecidos pela imprensa européia. O apogeu e a queda do Diário do Sul, ligado ao grupo Gazeta Mercantil, é visto como um marco na busca da qualidade do noticiário e da não intromissão dos interesses da empresa no bom andamento das relações internas da redação. Desde o início, o projeto do Diário destoava do que existia na época e do que se pratica hoje em termos de jornalismo. ‘O jornal todo era fora do comum’, lembra Vera Spolidoro, ex-editora de economia do Diário e atual colunista de política do jornal O Sul.

Democrática sem cair no assembleísmo, a redação do Diário comportou até uma comissão de redação, mecanismo que é visto com cautela por editores e sequer é discutido pelas empresas jornalísticas. No jornal gaúcho, a comissão era formada por um profissional de cada editoria em esquema de rodízio. O professor universitário e atual membro da Comissão Nacional de Ética da Fenaj , Pedro Osório, recorda que o grupo foi formado depois da última greve geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT) nos anos 80, quando 80% da redação parou. ‘Paramos sem haver uma discussão prévia e o jornal foi tirado pelos editores. Depois fomos cobrados por isso’, afirma. Como resultado, surgiu a comissão. Osório afirma que o grupo era mais um canal de conversação com o editor-chefe, Delmo Moreira, que atualmente é um dos editores-executivos da revista Época. A rotina não era diária, mas semanal. A cada 15 dias, havia um encontro com toda a redação. ‘Na verdade, não trabalhávamos com a definição clássica de comissão de redação e sim com um espaço assegurado de interlocução’, afirma Osório.

Eugênio Bucci entende que este é um debate que deveria interessar às empresas e aos jornalistas. ‘Mas não há clareza de como funcionaria uma comissão dentro da redação. A maneira com que foram implementadas as experiências em Portugal e no Paraguai, que eu não conheço a fundo, pode levar a uma situação inadministrável’, entende. Para o presidente da Radiobrás, este assunto ‘contém caminhos para que se avance no jornalismo’.

Vera e Osório destacam que a comissão do Diário do Sul nunca atrapalhou o cotidiano do jornal. ‘Esta comissão foi o que viabilizou a edição do jornal mesmo com a crise’, afirma o jornalista ao referir-se a problemas de endividamento que abateram o projeto três anos após sua implantação. A independência editorial do Diário do Sul foi uma de suas marcas. ‘Havia pressão do comercial, mas elas não chegavam à redação’, diz a ex-presidente do sindicato. Pedro Osório registra que, durante a crise, o jornal conquistou uma série de prêmios jornalísticos. ‘A experiência do Diário nos mostra que é possível fazer jornalismo com independência e com controle público da informação’, diz Vera.’

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‘Dines: ‘Quando o rei está nu, pega o machado e corta’’, copyright Versão dos Jornalistas nº 74, julho 2004

‘Alberto Dines não nasceu ontem. Seus 72 anos de vida e 52 de profissão o ajudaram a dimensionar as reações que sua denúncia contra os jornais do Rio de Janeiro provocaria. Em entrevista concedida ao Versão na semana seguinte ao episódio, porém, ele admitiu que não esperava ser punido de forma tão violenta por criticar a mídia, prática que cultiva desde 1975, quando atuava no ‘Jornal dos Jornais’ da Folha de São Paulo. ‘Eu sabia que estava escrevendo algo grave. Por isso, me calcei de todas informações para não cometer uma avaliação subjetiva’, afirma. ‘Quero crer que seja apenas uma tendência, mas evidências nos levam a acreditar que a violência passou a ser um dos recursos usados dentro da imprensa’.

O que mais surpreendeu o jornalista neste episódio foi o fato de que o artigo ‘Imprensa sob custódia’, publicado no site Observatório da Imprensa em 8/6, não passava de uma ‘suíte’ de outro texto publicado pelo próprio JB três dias antes. A coluna ‘Benfica e Haiti’ não havia provocado reação da empresa, apesar de já veicular: ‘Desse acintoso conluio de passividades, não pode ser excluída parte da imprensa carioca. Tiritando com o frio outonal, subitamente europeizada ou simplesmente engabelada pelo casal Garotinho, a verdade é que esse quadro desolador só pode acontecer numa sociedade onde parte da imprensa está distraída. Ou foi desfibrada’.

No mesmo dia em que o OI publicava o segundo texto de seu editor, o JB registrava o protesto do secretário de Comunicação Social do Estado, Ricardo Bruno, sob forma de carta. No texto, não havia resposta à acusação de ‘conluio’ da governadora Rosinha Garotinho com as empresas jornalísticas. Esta reportagem tentou ouvir o secretário de comunicação do Rio de Janeiro, Ricardo Bruno, por mais de dez dias, mas não obteve retorno. Para Dines, a punição se deu na segunda oportunidade e não após a publicação do primeiro artigo simplesmente por ele ter nomeado os diários que teriam amenizado o noticiário a soldo da governadora. ‘Quando o rei está nu, pega o machado e corta’, diz. ‘A trapaça dos Garotinhos só foi possível porque ambos têm poder grande sobre a imprensa’, resume.

Olhando para o passado, Dines recorda que este machado simbólico é uma constante em sua carreira. O mesmo Jornal do Brasil pediu seu cargo em 1973, no auge da ditadura militar, depois de 12 anos comandando a revolução gráfico-editorial que o tornou um dos mais modernos do mundo. ‘Ninguém me ofereceu emprego e eu tive que sair do Rio de Janeiro’, lembra.

Anos depois, já na abertura política, na lendária Folha de São Paulo, de Cláudio Abramo, Dines foi demitido na primeira vez pela família Frias por ter sustentado a acusação de que o então governador biônico Paulo Maluf teria promovido a repressão policial que resultou em uma morte durante as manifestações da greve do ABC Paulista. ‘Minha desilusão foi tanta que peguei o dinheiro do FGTS e passei quatro anos escrevendo meu livro [‘O Papel do Jornal’]’, lembra.

Isso foi em 1980. Ao final dos 90, de volta ao Rio e às páginas da Folha e hospedado no portal UOL com seu ‘Observatório’, Dines foi despejado com mala e cuia novamente por citar Maluf. Desta vez, o jornalista reivindicava que o ex-prefeito e ex-governador, recém-chegado da Europa, também fosse investigado no escândalo da Máfia da Propina por ter ligações políticas com o prefeito da época, Celso Pitta. ‘Aquilo foi uma demissão coletiva’, classifica Dines, ao lembrar que toda a equipe do OI foi desligada do portal UOL junto com ele.

Fazendo questão de ‘desfulanizar’ o episódio, Dines quer agora contribuir para promover o ‘debate esclarecedor’ sobre os limites da liberdade de expressão e de imprensa no país. ‘Não foi o [Nelson] Tanure que inventou isso’, justifica, referindo-se ao atual controlador do JB e da Gazeta Mercantil. ‘Os empresários de comunicação não estão sabendo demarcar. Quem cumpre o papel de jornalista não pode ser chamado de encrenqueiro’, considera. O termo empregado por Dines é uma menção à matéria da revista Veja sobre a demissão do radialista Jorge Kajuru (leia matéria na página seguinte).

Apesar de se considerar otimista, Dines não vê como possibilidade as redações brasileiras alcançarem o avanço de criar comissões internas de jornalistas que possam mediar a ocorrência deste tipo de conflito. ‘Acho difícil chegarmos a isso’, diz.’

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‘Cláusula de consciência: novidade tão antiga quanto distante’, copyright Versão dos Jornalistas nº 74, julho 2004

‘Dispositivos que garantam o direito de se rejeitar a execução de um trabalho jornalístico por conta de conflitos éticos ou outros motivos pessoais não são novidade na história. ‘Com diversas matizes, modalidades e alcances, está prevista no direito comparado como um instrumento para fazer valer o direito à informação e o pluralismo informativo próprio de um Estado de direito democrático’, escreveu Ernesto Villanueva, diretor do Programa Iberoamericano de Direito à Informação e da Revista Iberoamericana de Direito à Informação da Universidade Iberoamericana, no artigo ‘La cláusula de conciencia del periodista’, publicado em 1998, ao defender a incorporação da cláusula de consciência na legislação mexicana.

Segundo ele, esta possibilidade foi identificada oficialmente, pela primeira vez, na lei francesa de 29 de março de 1935. ‘Na realidade, está implícita desde a Lei Austríaca de 13 de janeiro de 1910’, continua Villanueva. Na Espanha e no Paraguai, o mecanismo é uma prerrogativa legal fixada em nível constitucional. ‘Na Itália, deriva de uma resolução jurisprudencial, isto é, seu fundamento legal deriva de atos de interpretação de diversas normas do direito vigente por parte do órgão máximo de ensino de Justiça’, informa.

No artigo 12º do Estatuto do Jornalista de Portugal (lei nº 1 de 13 de janeiro de 1999), está previsto literalmente: ‘Os jornalistas não podem ser constrangidos a exprimir ou subscrever opiniões nem a desempenhar tarefas profissionais contrárias à sua consciência, nem podem ser alvo de medida disciplinar em virtude de tal recusa’. Outro item assegura ao profissional o pedido de demissão e a devida indenização em ‘caso de alteração profunda na linha de orientação ou na natureza do órgão de comunicação social’.

Em setembro de 99, jornalistas, editores e professores de jornalismo de 19 países assinaram o Código de Ética da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) a partir da Declaração de Tirana. No item ‘independência editorial’, o documento propunha que as entidades representativas dos profissionais de imprensa passassem a incluir a cláusula de consciência nos acordos coletivos ou mesmo na regulação, dando aos jornalistas o ‘direito de tomar decisões editoriais de acordo com sua consciência’.

A demanda estrangeira vem se mostrando incapaz de mobilizar os jornalistas brasileiros em torno desta questão. De uma forma geral, os sindicatos de jornalistas brasileiros não têm conseguido negociar a implementação deste dispositivo dentro das redações e os profissionais sequer o reivindicam. Nelson Sato, do Departamento Técnico do sindicato paulista, afirma que este item tem entrado na pauta de reivindicações de forma sistemática nos últimos cinco anos, mas é sempre posto de lado. ‘Esta é uma questão de liberdade de imprensa’, afirma o assessor técnico. Sato atribui o desinteresse da categoria por este tema, em parte, à ameaça constante de desemprego e, por outro lado, à mentalidade vigente na nova geração de profissionais. ‘O pessoal novo não questiona. Trabalha de 12 a 14 horas por dia, sofre o assédio moral e ainda dá razão ao empregador. Isso facilita muito para a empresa’, afirma.’

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‘Sindicato mineiro culpa governo por pressões’, copyright Versão dos Jornalistas nº 74, julho 2004

‘Quem assistia à transmissão ao vivo da TV Bandeirantes direto de Belo Horizonte na noite do jogo entre as seleções brasileira e argentina de futebol, estranhou o fato de o radialista Jorge Kajuru não ter retornado ao comando do microfone depois de um intervalo comercial. Antes da pausa, Kajuru denunciava que torcedores estavam passando uma situação difícil ao tentarem forçar a entrada no Estádio do Mineirão. Segundo ele, faltaram ingressos para o jogo e mais de 10 mil teriam sido distribuídos pelo governador Aécio Neves. O episódio acabou resultando na demissão de Kajuru uma semana depois. Até hoje, não ficou claro por que o apresentador foi tirado do ar ao vivo e o que provocou a demissão.

Em bate-papo realizado pelo site Comunique-se logo após a demissão, o apresentador se referiu ao episódio de forma ambígua. ‘Até agora posso garantir, com absoluta certeza, que o governador Aécio Neves realmente reclamou de meus comentários naquele dia 2/6, durante a exibição do Esporte Total. Quem telefonou foi a irmã dele, Andréia. Agora, devo garantir que Aécio não pediu a minha cabeça. Reclamar é bem diferente de pedir a demissão. Agora, que fui tirado do ar por causa do que vinha falando no Mineirão, isso não há dúvida’, revelou. Em outro momento, Kajuru fez outra menção a Aécio.Nas eleições de 2002, o correspondente do JB em Minas fez uma matéria sobre o passado do então candidato ao governo de Minas, Aécio Neves. O material foi publicado. Um dia depois, o editor do Jornal Brasil, Marcelo Ambrosio, foi demitido’, afirmou.

Ouvido pelo Versão, o secretário de Comunicação Social de Minas Gerais, Eduardo Guedes, desmentiu o radialista. ‘É uma acusação injusta. O governador não conhece o Kajuru e em qualquer momento ele ou qualquer outro membro do governo contatou a TV Bandeirantes para reclamar’, afirma o jornalista, que tem 22 anos de profissão e está há um ano no cargo. Segundo Guedes, o governo teve direito a apenas 86 convidados no jogo promovido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

O corte de Kajuru em Minas coincidiu com a semana de realização do VIII Congresso Estadual de Jornalistas, na cidade de Mariana. Em moção de repúdio, aprovada por aclamação no evento, do qual participaram 250 pessoas, os jornalistas mineiros protestaram publicamente pelo tipo de linha editorial que as empresas de comunicação locais adotaram para tratar um assunto que também envolvia o governo mineiro. ‘Ao contrário da cobertura feita durante a greve da Polícia Militar em 1997, quando diversos profissionais mineiros receberam prêmios nacionais pela forma ética e isenta de levar informação de qualidade a toda população, a atual se comporta como se a ‘Lei da Mordaça’ já tivesse sido institucionalizada em Minas Gerais’, afirma o texto.

Em virtude dos acontecimentos, o Sindicato dos Jornalistas de Minas entregou uma representação formal ao Ministério Público para a abertura de um inquérito civil que apure violação de liberdade de imprensa e agressão ao direito de informação no caso da greve da PM. Segundo o presidente da entidade, Aloísio Lopes, a imprensa mineira cobriu a greve da polícia sem publicar notícias a respeito do movimento grevista. ‘Os veículos só ouviram um lado’, denuncia o dirigente. Lopes afirma que atualmente os repórteres recebem orientação expressa de suas chefias para adotar uma linha editorial que não prejudique a imagem do governo do Estado nas matérias. ‘Eu tenho informações de que a Andréia Neves [integrante do Grupo Técnico de Comunicação] visita as redações’, diz.

O secretário de comunicação de Minas negou que a irmã de Aécio Neves visite as redações e afirmou que o governo nunca ‘pediu a cabeça’ de jornalistas. ‘Nunca recebi uma reclamação formal do sindicato sobre este tema’, disse Guedes. Segundo ele, o que o governo estadual tem feito de forma assumida é ‘um exercício diário para levar às redações argumentos e dados para romper com a visão histórica de que necessariamente haja exacerbação de um só lado’. A intenção do secretário é ‘brigar por informações de qualidade’ e fazer com que ‘nenhuma matéria saia sem que o governo possa se posicionar’. ‘Este é um trabalho que me orgulho de fazer’, afirmou.’



NÚMEROS INFLADOS
O Globo

‘Jornais dos EUA são punidos por inflar números’, copyright O Globo, 14/07/04

‘Os jornais americanos ‘Chicago Sun-Times’, ‘Newsday’ e ‘Hoy’ foram punidos por terem inflado os dados sobre sua circulação. O Escritório de Auditoria de Circulação (ABC, na sigla em inglês) — semelhante ao Instituto de Verificação de Circulação brasileiro — informou ontem que os jornais sofrerão, nos próximos dois anos, auditorias semestrais, em lugar das anuais, e terão de submeter ao Conselho da entidade uma proposta para a correção de suas práticas.

Além disso, os jornais ficarão fora, no ano que vem, do ‘FAS-FAX’, relatório semestral do ABC sobre a imprensa. A ausência dos jornais no relatório será justificada em nota explicando que as publicações estão sob censura.

Mês passado, os três jornais admitiram que inflaram os dados sobre circulação (número de exemplares vendidos) em 2002 e 2003. Depois da revelação, vários anunciantes processaram os jornais.

‘Cada membro do Conselho do ABC concorda em que não podemos tolerar que as regras sejam contornadas, para não falar de fraude, e faremos o que for necessário para preservar a confiança de editores e anunciantes’ disse o presidente do Conselho do órgão, Robert Troutbeck, em comunicado.

Segundo o site EditorandPublishing.com, voltado para o setor de jornais e revistas americano, ‘Newsday’ e ‘Hoy’ (este em espanhol), ambos controlados pela Tribune Co., divulgaram notas elogiando as medidas do ABC. O ‘Chicago Sun-Times’ também publicou nota aos leitores sobre a punição.

Associação de Jornais aprovou a decisão do órgão

O Conselho da entidade também discutiu, em reunião segunda-feira, a possibilidade de pedir ressarcimento por danos morais causados ao ABC, mas nenhum valor foi divulgado. Ficou decidido que qualquer discrepância acima de 5% entre as declarações de um jornal e os números auditados pelo ABC será motivo de punição.

Segundo o EditorandPublisher, a Associação de Jornais da América (NAA, na sigla em inglês) aprovou a decisão do ABC. O diretor-executivo da NAA, John Sturm, disse que as auditorias do ABC dão credibilidade aos números apresentados aos anunciantes. Sturm também disse que os membros da NAA estão comprometidos com a integridade dos relatórios sobre circulação dos jornais.’



ANISTIA & INDENIZAÇÕES
Luiz Alberto Weber e Phydia de Athayde

‘Bodas polêmicas’, copyright CartaCapital, 14/7/04

‘‘… Os Hamlet são a expressão da força centrípeta fundamental da natureza, em função da qual todo ser vivo se considera o centro da criação e contempla todos os demais como se existissem apenas para ele…’ Ivan Turguêniev (1818-1883)

Turguêniev escreveu o ensaio de onde se destaca a epígrafe acima no século XIX. No mesmo curto texto, o escritor russo recorre ao espanhol Miguel de Cervantes – e ao histórico personagem Dom Quixote – para indicar outra força decisiva nos movimentos da humanidade, a centrífuga. Esta, ao contrário da centrípeta, empurra à doação, à defesa do outro, distancia-se do indivíduo apenas consigo mesmo.

Shakespeare e Cervantes, Hamlet e Dom Quixote, sínteses grandiosas da alma humana, criadores e criaturas capazes de manter liames eternos com os movimentos dos homens. E quanto mais grandioso, dramático, grave o instante vivido, mais, com o passar do tempo, a percepção da história pode ter no nascedouro as vertentes detectadas pelo russo Turguêniev.

No Brasil, por quase duas décadas, a partir de meados dos anos 60, uma geração de homens e mulheres, com razão ou nem tanta, convictos ou nem sempre, em diferentes graus de intensidade, mas sem outra saída diante do equívoco brutal e definitivo, jogaram-se na luta contra o aparelho de Estado, contra os responsáveis pelo brutal equívoco.

Naquele tempo, esses homens e mulheres foram uma força centrífuga. Quixotescos em essência, despida a expressão de seus significados surrados e apenas desidratantes.

Não há como julgar o que sofreu e pagou cada brasileiro que resolveu enfrentar a ditadura, salvo em casos por demais conhecidos e expostos. Mais de 400 foram os mortos e desaparecidos, milhares os que, segundo relatos do Grupo Tortura Nunca Mais, foram submetidos a flagelos e privações. Sem falar nos que tiveram vidas, carreiras e sonhos interrompidos.

Em algum momento, inevitável, o Estado brasileiro teria de fazer um acerto de contas com quem se decidiu por enfrentá-lo durante o grande e brutal equívoco. O processo de ressarcimento financeiro às vítimas da ditadura começou formalmente há dez anos. Processos como esses, quando estabelecidos, e também isso é inevitável na história da humanidade, desatam a outra força, a centrípeta.

Nos últimos tempos, acelerou-se o julgamento de reparações e indenizações a vítimas da ditadura militar. Não é, como se verificará, um processo indolor.

Os desentendimentos, ou os entendimentos diversos sobre quem deveria receber e o quanto seria justo, sempre, também inevitável, freqüentaram os debates nas comissões especializadas, no Congresso e governos, nos grupos de anistiados e familiares de desaparecidos ou mortos. Mas, nas últimas semanas, às véspera dos 25 anos da Anistia, a ser comemorados em agosto próximo, depois do anúncio de nova rodada de julgamento de processos, 356 só em junho – a maior parte envolvendo militares –, a polêmica se acirrou e transbordou as habituais trocas de telefonemas e e-mails, comuns entre os que acompanham de perto a tramitação dos processos.

No centro das atenções, até pela notoriedade de sua carreira, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony. Aos 78 anos, o colunista da Folha de S.Paulo e imortal da Academia Brasileira de Letras obteve da Comissão de Anistia uma pensão mensal de R$ 23 mil, mas, por conta de uma regra que determina como teto o salário do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), irá receber R$ 19 mil. Também terá direito a R$ 1,14 milhão, já que a indenização é retroativa em cinco anos a partir da data de protocolo do pedido.

Demitido do extinto Correio da Manhã, preso seis vezes, impedido à época de deslanchar carreira literária, hoje doente, Cony se beneficiou dos critérios que, em tese, se estendem a todos na fila de espera: seu processo foi julgado com maior rapidez por conta de sua idade avançada e condições de saúde.

Quanto aos valores, a Comissão baseia-se na profissão exercida pelo beneficiado e tenta estimar a qual posto na carreira poderia ter alcançado. No caso de Cony, levou-se em conta a possibilidade de o jornalista, caso não tivesse sido vítima do regime militar, ter chegado ao cargo de diretor de redação, o mais alto em um veículo de comunicação.

CartaCapital procurou ouvir Cony sobre a polêmica levantada por outros anistiados e familiares de desaparecidos. Sua assistente informou que o escritor não falaria por orientação dos advogados.

O presidente da Comissão de Anistia, Marcelo Lavenère, explica a razão dos valores concedidos a Cony:

– Se à época ele ganhava 20 vezes mais do que um trabalhador braçal possivelmente irá receber muito mais do que um pedreiro ou um agricultor que também tenha sido prejudicado. A lei não me dá outro critério. Quem ganhava mais recebe mais, quem ganhava menos recebe menos.

Entre ex-militantes e familiares de mortos e desaparecidos, a questão não é tratada com tanta doçura. Brada Suzana Lisbôa:

– Não posso me conformar que o governo não tenha conseguido limitar as indenizações de pessoas que antes lutavam por igualdade e agora recebem valores absurdos num país de miseráveis. Isso tornou-se um Show do Milhão. (Confira a íntegra desta matéria na edição impressa)

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‘A lei não é para quem venceu’, copyright CartaCapital, 14/7/04

‘Suzana Lisbôa, representante de familiares de desaparecidos e mortos, discorda de critérios e valores de indenizações.

Desde a primeira Lei de Anistia, há 25 anos, a gaúcha Suzana Lisbôa está engajada na luta pelos direitos dos familiares de mortos e desaparecidos na ditadura. Funcionária pública, Suzana não tem plano de saúde e dirige um Fusca 79. Hoje, integra a Comissão Especial de Familiares de Mortos e Desaparecidos em Brasília e é uma voz indignada quanto à diferença dada pelo governo no tratamento dos anistiados em relação aos familiares, cuja reivindicação maior é por esclarecimentos de uma história que ainda não foi passada a limpo.

CartaCapital: A senhora afirma que há pessoas que são favorecidas na Comissão de Anistia?

Suzana Lisbôa: Isso acontece desde quando era uma MP do governo do Fernando Henrique, lá começou o fura-fila. São os amigos do rei. Havia no Ministério do Trabalho mais de 5 mil pessoas, e logo na primeira lista já saíram pessoas que nitidamente foram favorecidas. O fura-fila prossegue neste governo, o que é lamentável. Pessoas que têm uma situação de notoriedade têm tido seus processos julgados. Além disso, há o absurdo de valores que são concedidos.

CC: Que tipo de absurdos?

SL: O órgão a que a pessoa era vinculada é que diz o cargo que ela poderia estar exercendo hoje. Não existe eqüidade no julgamento dos processos, e é isso o que determina esses valores absurdos. Não tenho nada contra o Carlos Heitor Cony, mas ele vai receber como editor de um jornal que nem existe mais. Não posso me conformar que o governo não tenha conseguido limitar as indenizações de pessoas que antes lutavam por igualdade e agora recebem valores absurdos num país de miseráveis. Os valores retroativos não estão sendo pagos, mas as dívidas são assumidas em nome do Estado. Essa anistia é um Show do Milhão.

CC: A quem cabe a decisão final quanto aos valores?

SL: Ao presidente da comissão. A anistia foi transformada em um balcão de negócios. O processo do José Serra, por exemplo, tramitou em dois dias. Não sei se ele pediu só o tempo de serviço ou o valor, mas mesmo quem quer só o tempo de serviço está na fila junto com outros 50 mil. (Serra pediu somente a contagem do tempo de serviço, para efeito de aposentadoria, dos anos em que trabalhou fora do Brasil. Seu processo foi protocolado no dia 6 e deferido no dia 9 de dezembro de 2002.) O Nei Maranhão é outro que foi anistiado pela Comissão. Que eu saiba ele foi afastado da política por denúncia de corrupção. Que participação política ele teve contra a ditadura? Ou aquele diplomata, Jacques Guilbaud, que prestava serviço para a ditadura. Se ele foi demitido injustamente, deve ser reintegrado ao Itamaraty, mas nunca pela Lei de Anistia, porque jamais teve participação política contra a ditadura. Essa lei não foi feita para quem venceu, e sim para quem perdeu aquela guerra. Mas, pelos critérios que essa comissão está julgando, vai acabar aprovando o pedido do Cabo Anselmo também, o que é um escárnio. (O Cabo Anselmo, informante da repressão, levou à morte dezenas de antigos companheiros. Deu entrada no pedido de indenização em 1º de abril deste ano.)

CC: Que outros casos são discrepantes?

SL: Por exemplo, o de Damaris Lucena, que foi presa com os filhos, teve o marido assassinado e vai ganhar uns R$ 40 mil. Ela era feirante e vai morrer como feirante. É inconcebível que as pessoas que lutaram contra a injustiça social passem por isso. É impossível comparar seqüelas. Neste país, a injustiça social se perpetua até na Comissão de Anistia. É uma vergonha.

CC: Quais são as evidências de que a fila é furada?

SL: Por exemplo, quando a justificativa é ‘vindo de outros órgãos’, imagino que seja quem já recebeu e está ali só para retificar o valor, mas eles pegaram todo o grupo de sindicalistas de São Bernardo e passaram na frente. Essa comissão não tem prioridades, está votando conforme os seus interesses. Para esse governo, é como se os mortos e desaparecidos políticos não tivessem existido.

CC: O que a senhora quer dizer?

SL: Que os familiares de mortos e desaparecidos não tiveram anistia. Que a Lei de Anistia, de 1979, não atingiu os desaparecidos. Até hoje lutamos pela localização e resgate dos corpos, para saber as circunstâncias da morte, pela identificação e punição dos responsáveis. Nada disso foi alcançado.

CC: E as indenizações recebidas?

SL: A indenização nunca foi a nossa bandeira, e foi só o que recebemos. Os valores variam entre R$ 100 mil e R$ 150 mil. Eu recebi R$ 124.510 pelo assassinato do meu marido (Luiz Eurico Tejera Lisbôa). Não discutimos a questão financeira porque não tem o que pague uma vida. O que queríamos e queremos é o resgate dessa história, que até hoje não aconteceu. (Colaborou Sérgio Lírio)’