‘Depois da Palma de Ouro em Cannes e de um sucesso imenso nos EUA, esse panfleto eficaz mas simplista, e ocasionalmente demagógico, estréia na Europa. Michael Moore usa todos os meios para atingir seu objetivo: impedir a reeleição de George W. Bush.
As discussões giram em torno do ‘bom lugar’; onde instalar a câmera, onde filmar os depoimentos, onde colocar os microfones? Dúvidas que geram novas questões: até onde se pode ir com o cinema-verdade, até que ponto é possível reconstituir o real? A proliferação de filmes que tomam Bush por tema, ou alvo, introduz uma nova noção, a do ‘bom momento’. Nenhuma eleição presidencial foi precedida por tal acúmulo de obras de propaganda visual que questionam a honestidade de um candidato. Além de prova de uma saudável liberdade de expressão, a situação nos faz refletir sobre o estatuto das acusações.
Com base em seus objetivos declarados, seu tom panfletário, ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ [que estréia na próxima sexta no Brasil] surge como filme militante, como filme de propaganda, o que não é uma infâmia, como Dziga Vertov, Mikhail Kalatozóv e Joris Ivens ajudaram a provar. Não importa o que diga o presidente do júri, Quentin Tarantino, a recompensa que o filme obteve no festival de Cannes serve como confirmação desse fato.
Supondo que o prêmio tenha sido conferido por motivos que não tenham conexão com o fato de que Tarantino e Moore trabalham para a mesma produtora (Miramax), afirmar, como o fez o autor de ‘Kill Bill’, que ‘Fahrenheit…’ foi coroado apenas por qualidades cinematográficas é ou prova de incompetência ou mentira deslavada, para não dizer uma escancarada provocação.
O estilo desenvolvido por Moore tem mais a ver com a revista ‘Mad’, com o humorista Karl Zero ou com programas investigativos feitos para a tela pequena do que com o que é esperado de um documentário cinematográfico.
Isso não quer dizer que ‘Fahrenheit’ seja um mau filme, ou que não se possa assistir com prazer a esse trabalho sarcástico. Moore relembra a eleição que conduziu Bush à Presidência, depois de uma contagem de votos problemática, para não dizer fraudulenta. Depois, ele encaixa uma seqüência satírica em que afirma que de janeiro a setembro de 2001, o presidente passou 42% de seu tempo em férias.
Mas a graça logo se esgota. Para introduzir os atentados de 11 de Setembro, Moore emprega a única idéia cinematográfica do filme: um minuto e 10 segundos de tela escura. Só se ouve o som. Tudo que ele relata a seguir é espantoso.
Como o governo Bush criou a ilusão de que o Iraque era a base do terrorismo, como promoveu um clima de medo em todo o país com a cumplicidade cega da mídia, e por que as TVs não mostraram imagens dos caixões de americanos mortos no Oriente Médio.
Isso já havia sido mostrado em ‘Le Monde selon Bush’ [O mundo segundo Bush], de William Karel, entre outros, e de maneira melhor. O que se vê em ‘Fahrenheit’ é como o Estado utiliza as classes populares como bucha de canhão. Fiel a seu gosto pelo confronto, o diretor aborda congressistas para incitá-los a oferecer os nomes de seus filhos para alistamento. O momento espantoso em que se vê Bush atônito em uma cadeira de escola maternal quando lhe informam que um segundo avião atingiu uma torre do World Trade Center adquire toda sua força no filme, um impacto arrasador: uma demonstração visual de que esse homem é incapaz de dirigir os Estados Unidos.
O filme, que Moore designa como ‘não-ficção’, se dirige a uma audiência popular. Uma espécie de Rambo da antiglobalização, ele não poupa recursos para atingir seu objetivo, a começar da idéia de se colocar como justiceiro.
Depois de ‘A Paixão de Cristo’ fundamentalista de Mel Gibson, em que Jesus clama contra seus fanáticos torturadores, e de ‘Tróia’, de Wolfgang Petersen, em que o ataque dos gregos é filmado como se prefigurasse o desembarque aliado na Normandia, ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ é um novo sintoma da maneira pela qual o cinema norte-americano pratica o espetáculo como arte da denúncia contra os eixos do mal.’
Isabela Boscov
‘Yes, eles têm homem-bomba’, copyright Veja, 28/07/2004
‘Em 6 de agosto de 2001, depois de vários avisos feitos em reuniões, a CIA entregou ao gabinete do presidente George W. Bush um relatório sobre a iminente ameaça terrorista ao país. Trinta e seis dias depois, dois aviões derrubaram as torres do World Trade Center, em Nova York, uma terceira aeronave demoliu parte do Pentágono, em Washington, e uma quarta foi derrubada por ação dos passageiros antes de atingir um outro alvo na capital americana. Por que ninguém deu atenção ao relatório? Talvez, especula o cineasta Michael Moore, porque seu título fosse um tanto vago. Corta para Condoleezza Rice, assessora para Segurança Nacional, depondo no Congresso. Qual, afinal, era o título do relatório, pergunta o interrogador. ‘Bin Laden planeja atacar dentro dos Estados Unidos’, responde ela. É com justaposições como essa que Fahrenheit 11 de Setembro (Fahrenheit 9/11, Estados Unidos, 2004), que estréia nesta sexta-feira no país, se torna um coquetel de altíssima temperatura de documentário, libelo e comédia. Vai desde a eleição de Bush até os desdobramentos mais recentes no Iraque, passando por toda espécie de teoria conspiratória, das mais às menos críveis, no caminho. Duas coisas, porém, se fazem presentes durante todo o filme. Primeiro, a dedicação comovente com que os alvos de Moore providenciam munição contra si próprios. Segundo, a firmeza com que o diretor lhes dá belos empurrões quando eles não colaboram voluntariamente. Moore é cheio de ardis que nem sempre primam pela lisura, mas são de um inegável senso de oportunidade. Por exemplo: depois de uma hilariante exposição sobre o hábito obsessivo de Bush de sair em férias (42% dos oito primeiros meses de mandato em folga, segundo levantamento do jornal Washington Post), Moore corta para uma cena em que o presidente o manda procurar um emprego de verdade. É óbvio que uma coisa nada tem a ver com a outra, mas o efeito da blague é exatamente o pretendido: pôr o adversário no papel de bobo.
No momento, aliás, o emprego de Moore parece estar mais garantido que o de Bush – e aí, sim, uma coisa tem a ver com a outra. Fahrenheit 11 de Setembro ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes (que não costuma aceitar documentários), tem provocado filas às portas dos cerca de 1 000 cinemas em que está em cartaz nos Estados Unidos (inclusive nos Estados conservadores e em cidades pequenas) e rendeu quase 100 milhões de dólares em menos de um mês (contra o saldo final de 21,5 milhões do recordista anterior da categoria, Tiros em Columbine, também de Moore). Já é o documentário mais visto da história, e o primeiro filme, de qualquer gênero, que pode vir a ter peso real numa decisão política de primeira grandeza – a corrida presidencial americana. Para muitos analistas americanos, não é o democrata John Kerry o maior rival do republicano Bush em sua campanha pela reeleição. É Michael Moore, com sua longa, furiosa e divertidíssima diatribe contra Bush, que nas últimas semanas ganhou páginas e páginas diárias nos grandes jornais americanos (além de uma capa da revista Time) e mobilizou mais debates do que a agenda eleitoral dos dois candidatos.
Pouco mais de um ano atrás, Michael Moore era objeto de escárnio, e não podia sair à rua sem que cuspissem nele ou tentassem agredi-lo. Ao subir ao palco para agradecer pelo Oscar de Tiros em Columbine, em março de 2003, o cineasta furtou-se a agradecer ao agente, ao advogado e à mulher, como fazem todos os ganhadores. Em vez disso, fez um comício: ‘Vivemos em tempos fictícios, em que resultados eleitorais fictícios elegem um presidente fictício, que nos manda para a guerra por razões fictícias’, disse ele, gritando por sobre as vaias, os aplausos e o barulho da orquestra, que tentava abafá-lo. A invasão do Iraque começara três dias antes, e o sentimento patriótico americano andava no auge da inflamação. Passados dezesseis meses, são exatamente essas afirmações, escandidas nos 122 minutos de Fahrenheit e defendidas com mais ou menos propriedade, que tornaram Moore um sucesso. Nesse meio-tempo, claro, muito veio à tona para fazer a balança pender para o seu lado: a ausência de armas de destruição em massa no Iraque, as torturas na prisão de Abu Ghraib, os quase 1.000 soldados americanos mortos em combate e as imagens chocantes dos quatro civis que foram queimados e destroçados por uma multidão em Falluja, as notícias de que muitos dos cerca de 15 000 iraquianos mortos eram civis inocentes, a impressão de que a guerra se converteu num atoleiro do qual será difícil desencalhar e, também, a nitidez crescente do sentimento antiamericano não só nas nações árabes, onde ele era esperado, mas entre os tradicionais aliados europeus.
Fahrenheit, porém, se beneficiou mais do que não aconteceu. Desde os atentados, a mídia americana abriu mão (em maior ou menor grau, conforme o veículo) daquilo que é o privilégio e a função da imprensa: questionar. Não só deixou, no geral, de fazer perguntas incômodas em momentos delicados, como em várias oportunidades acatou as sugestões do governo sobre autocensura – não mostrar imagens dos corpos dos americanos assassinados em Falluja, dos caixões voltando para casa cobertos com a bandeira americana ou de qualquer coisa que pudesse voltar a opinião pública contra a invasão do Iraque. Mesmo as cenas de tortura em Abu Ghraib que ganharam divulgação foram editadas. Os congressistas que viram todo o material dizem haver ali imagens muito mais repugnantes. Grosso modo, portanto, prevaleceu a versão oficial dos fatos – o que, no âmbito da platéia americana, aumenta consideravelmente o poder de fogo de Fahrenheit.
Tome-se um exemplo quase insignificante. Quando recebeu a notícia – cochichada em seu ouvido por um assessor – de que um segundo avião atingira o World Trade Center, George W. Bush fazia uma visita a uma escolinha da Flórida. Durante os sete minutos seguintes ele ficou sentado, quieto, com um semblante entre o atônito e o ausente, lendo My Pet Goat (Minha Cabra de Estimação) com as crianças. Um pequeno trecho dessa imagem – aquele em que o presidente recebe a informação – foi exibido em todas as televisões do mundo no dia dos atentados. Por que não se mencionaram os sete minutos de paralisia? A explicação para eles talvez fosse perfeitamente razoável – o presidente teria sido instruído a ficar onde estava até que se pudesse garantir sua proteção. Mas existe também a hipótese de que Bush não soubesse o que fazer, um dado que certamente interessaria aos cidadãos. Na falta do questionamento e da objetividade que resultaria dele, abre-se terreno para a especulação e o populismo. Em Fahrenheit, Moore usa a versão longa dessa imagem para atribuir todo tipo de pensamento ao presidente, em especial sobre as ligações da família Bush com os sauditas donos do petróleo, entre os quais se incluem vários parentes de Osama bin Laden. É muito engraçado e até informativo, mas não é legítimo. Se Moore pode dar-se ao luxo de teorizar livremente, porém, é porque a mídia deixou que tal vácuo se criasse.
Esse é um dos perigos de Fahrenheit 11 de Setembro – tomá-lo ao pé da letra. O filme é muito menos um documentário do que um libelo eficaz e uma sátira brilhante, capaz de provocar gargalhadas durante toda a sua primeira hora. Há a paródia em tom de western da ocupação do Afeganistão, o desastrado comercial de pára-quedas para quem deseja escapar de edifícios em chamas, o caso do aposentado que falou mal do governo na academia de ginástica e foi interrogado pelo FBI, ou ainda a bizarra infiltração policial num núcleo de pacifistas da cidade californiana de Fresno (autodenominada ‘a capital americana da fruta seca’). Moore domina também todas as táticas da confrontação, como quando aborda deputados, na calçada do Congresso, para pressioná-los a mandar seus próprios filhos para a guerra. A montagem habilíssima do filme, aliás, privilegia tanto esse viés cômico que, em mais de uma ocasião, termina por reduzir a voltagem do que ele tem a apresentar – como a seqüência em que dois fuzileiros navais percorrem shopping centers de periferia para recrutar jovens pobres com promessas de um futuro dourado. Quando recorre à sobriedade, ele é capaz de causar muito mais mal-estar. É o caso de uma sessão do Senado em que Al Gore, na qualidade de presidente da Casa, tem de rejeitar as petições de eleitores negros para que se faça a recontagem de votos na Flórida (o que poderia dar a ele, Gore, a Presidência) porque elas não trazem a assinatura de um senador que as endosse.
Em outros momentos, Moore usa as mesmas manhas que atribui à Casa Branca – maquiagem, distorção, omissão, exploração sentimental. O que querem significar, por exemplo, as cenas de criancinhas risonhas empinando pipas em Bagdá? Que o Iraque era feliz com Saddam Hussein? É justo indagar se os iraquianos estavam dispostos a trocar seu ditador por carros-bomba quase diários, mas não é honesto circunvencionar esse argumento com imagens fora de contexto. Esse ranço apelativo contamina também a última parte de Fahrenheit, dedicada a uma assistente social de Flint, no Estado de Michigan – a cidade natal de Moore -, que se converte à corrente anti-Bush após perder seu filho em combate. Moore tem ainda a reputação de manobrar fatos e estatísticas segundo sua conveniência. Depois de ser pego em uma ou outra falta em Tiros em Columbine, ele contratou a equipe de checagem da revista New Yorker, célebre por sua precisão obsessiva, para desconstruir Fahrenheit em busca de dados duvidosos. Na versão que está nos cinemas, diz, não há nada que possa ser contestado sem que ele, Michael Moore, possa retrucar até nos tribunais. Moore promete processar também qualquer um que saia dizendo que, graças ao sucesso de seus filmes e best-sellers (como Cara, Cadê o Meu País? e Stupid White Men – Uma Nação de Idiotas, ambos publicados no Brasil), ele agora mora numa cobertura da Quinta Avenida com hidromassagem no terraço. Essas controvérsias, entretanto, bastam para que os democratas – ‘tão patéticos que, mesmo quando ganham, perdem’, nas palavras de Moore – venham mantendo uma distância cautelosa do cineasta e de seu filme. A assessoria de John Kerry, por exemplo, apressou-se em afirmar que o candidato não assistiu a Fahrenheit.
Moore é um polemista por vocação. A origem proletária e a imagem de intransigente são uma parte importante do patrimônio que ele explora em seus livros, programas de televisão e documentários – daí sua preocupação em que não venham a manchá-las. Até aqui, as tentativas de atingi-lo só o têm ajudado em sua cruzada: o ódio de várias facções, algumas articuladas o suficiente para elaborar contra-ataques como o documentário, ainda em produção, Michael Moore Hates America (Michael Moore Odeia a América), é o tipo de publicidade gratuita que o cineasta adora. O fato de que há muito de nebuloso em Fahrenheit 11 de Setembro, porém, não invalida os méritos do filme. O maior deles, provavelmente, é reinstituir uma certa dose de irreverência no debate político. A combinação de informação, diversão e vituperação de Michael Moore é, em muitos aspectos, um retrocesso em relação ao pendor crítico que a mídia americana demonstrou em outras passagens de sua história, como a era Nixon. Mas não há dúvida também de que ele representa um avanço em relação a um retrocesso maior – o clima de consenso obrigatório e coerção que os Estados Unidos têm vivido desde a manhã de 11 de setembro de 2001.
MM é um agente da CIA
Considere-se a seguinte hipótese: atormentada pelas trapalhadas de George W. Bush, a cúpula da CIA resolve criar um antídoto perfeito. Um homem supostamente de esquerda que vai falar tantos horrores sobre o presidente americano, defendendo teses tão primárias, atribuindo-lhe maldades tão ignóbeis, que até os maiores adversários de Bush se sentirão constrangidos. Recorrendo ao seu laboratório secreto, onde vicejam clones (juntamente com ETs escamoteados aos olhos do mundo), produzem o anti-Bush. Até no físico ele é um antípoda – mas deve provocar, com sinal invertido, a mesma e imediata reação de repulsa. Onde os olhinhos do presidente são espremidos, ele os tem esbugalhados. Em lugar do físico milimetricamente mantido à base de exercícios, um oceano primal de gordura. As vestimentas desleixadas e a cabeleira ensebada, coroada pelo boné que nos Estados Unidos é o signo das classes proletárias, contrapõem-se ao correto figurino presidencial. O agente secreto terá o cinema como instrumento de trabalho e, o leitor já adivinhou, se chamará Michael Moore.
E lá se vai o nosso agente. Sua missão é espalhar idéias estapafúrdias que pulverizem a credibilidade de qualquer oposição a Bush. Posando de americano comum, ele deve despertar o repúdio exatamente desse cidadão médio, que não costuma achar graça quando o presidente do país é: 1) seguidamente ridicularizado, através da manipulação flagrante de imagens, ou 2) indiretamente acusado de conluio, imaginem só, com os maiores inimigos dos Estados Unidos, os homens que atacaram o coração da América, mataram 3 000 inocentes e seguem conspirando contra a nação. Missão cumprida?
Nada disso. Como se sabe, a CIA tem um histórico sólido de análises equivocadas, previsões desmentidas, planos frustrados (ou versões domesticadas da realidade, como aconteceu quando quis dar a um famoso presidente o pretexto que ele pedia para invadir um país do Oriente Médio). Michael Moore será mais uma das experiências que escapam ao controle dos homens de preto que dominam o mundo. De repente, ele começa a dar certo. Em lugar de desdém, suas teorias conspiratórias são recebidas com entusiasmo. Ataque ao Afeganistão? É claro que o objetivo secreto era construir um gasoduto. Iraque? Petróleo, evidentemente. Explicações primárias para situações complexas são aplaudidas por inteligências que normalmente se sentiriam insultadas por coisa muito mais sofisticada. O agente MM é premiado, afagado, incensado. Liberais de todos os matizes, de Leonardo DiCaprio (sim, o namorado de Gisele tem pendores políticos) ao bloco de parlamentares negros do Congresso americano, posam a seu lado. Pior ainda: ele faz um filme bom. Desonesto, manipulativo, delirante. Mas bom.
Bush e suas coortes, reconheça-se, colaboram. Desde Paul Wolfowitz, o comandante dos neoconservadores do governo americano, azeitando um pente com saliva para dar um jeito no cabelo antes de aparecer diante da câmera, numa cena hilária, até o próprio presidente, notório pela desarticulação verbal. O trabalho inacreditavelmente malfeito no Iraque, os ataques às liberdades civis em nome do combate ao terrorismo, o próprio horror da guerra – justa, injusta ou simplesmente inexplicada -, tudo ajuda. A CIA criou um monstro, o governo Bush cevou-o, a Arábia Saudita pagou a conta, nós o aturamos.
Tudo o que foi escrito acima evidentemente é apenas uma paródia das teorias conspiracionistas tão caras a Michael Moore.
Ou não.’
George Monbiot
‘O nascimento de um herói grosseiro’, copyright O Estado de S. Paulo / The Guardian, 24/07/04
‘Quando pessoas famintas encontram comida, não se preocupam muito com os ingredientes. O filme de Michael Moore, Fahrenheit – 11 de Setembro, é grosseiro, às vezes condescendente. Ele põe palavras na boca das pessoas.
Termina as frases para elas. Às vezes, é engraçado e comovente, outras, desajeitado e incoerente. Mas o filme me impressionou e no final aplaudi.
Porque Fahrenheit faz as perguntas que deveriam ter sido feitas todos os dias nos últimos quatro anos. O sucesso do filme é testemunha do fracasso da mídia.
Na Grã-Bretanha, o relatório Butler reabriu o debate sobre a quem deve ser atribuída a culpa pelas mentiras segundo as quais os britânicos foram para a guerra – o governo ou as agências de informações. Uma coisa que as redes noticiosas não vão discutir é a culpabilidade das redes noticiosas. Por que os jornalistas ajudam os governos a mentir para as pessoas?
Não preciso discutir as deficiências das redes noticiosas dos Estados Unidos. A Fox e a NBC têm freqüentemente se vangloriado de sua lealdade ao governo Bush. De propriedade de empresários de direita, poderiam ser descritas como componentes do complexo militar-industrial. Mas os fracassos da mídia britânica, em particular da BBC, exigem mais explicação. Estudos sugerem que existe uma tendência séria e sistemática entre as emissoras britânicas a favor do governo e de seus aliados.
Por exemplo, um estudo da Cardiff mostra que 86% das reportagens noticiosas transmitidas que mencionaram armas de destruição em massa durante a invasão do Iraque ‘insinuaram que o Iraque tinha tais armas’, enquanto ‘somente 14% levantaram dúvidas sobre sua existência e possível uso’. A alegação por parte de forças britânicas e americanas de que o Iraque tinha disparado mísseis Scud ilegais contra o Kuwait foi noticiada 27 vezes nos programas noticiosos britânicos. E foi questionada em apenas quatro ocasiões: uma vez pela Sky e três vezes pela Channel 4 News. A BBC conseguiu até enfeitar a reportagem: seu correspondente, Ben Brown, sugeriu que o Scud não existente teria sido carregado com ogivas químicas ou biológicas. Tanto a BBC (mais uma vez Ben Brown) como a Independent Television News (ITN) informaram que comandantes britânicos tinham ‘confirmado’ o levante fantasma em Basra em 25 de março. Embora não houvesse indício que apoiasse qualquer uma das posições, houve o dobro de notícias afirmando que o povo iraquiano favoreceu a invasão, do que notícias dizendo que se opunha a isso. ‘No geral, foi dedicado um tempo maior às histórias originais (não verdadeiras) do que a quaisquer retratações subseqüentes’, descobriram os pesquisadores.
O estudo de Glasgow mostra que os noticiários da BBC e da ITN são tendenciosos em relação a Israel e contra os palestinos. É dada uma cobertura quase três vezes maior à morte de cada israelense do que à morte de palestinos. Os assassinatos cometidos por palestinos são descritos como ‘atrocidades’ e ‘homicídios’ ao passo que os palestinos deliberadamente mortos a tiros por soldados israelenses têm sido noticiados como ‘pegos no fogo cruzado’. No período analisado pelos pesquisadores, os porta-vozes de Israel tiveram o dobro do tempo para falar com relação aos palestinos. Tanto as notícias da BBC como as da ITN descreveram a Cisjordânia como parte de Israel. Por não explicar que os palestinos estão vivendo sob a ocupação militar que se seguiu ao confisco ilegal de sua terra, os correspondentes regularmente reduzem o conflito a um inexplicável ‘ciclo de violência’.
Mesmo esse ciclo é apresentado como sendo impulsionado pelos palestinos; e os israelenses são noticiados como se ‘reagindo’ ou ‘retaliando’ os ataques palestinos; já a violência por parte dos palestinos poucas vezes é explicada como uma reação aos ataques dos israelenses. Ambas as redes afirmam com regularidade que o governo americano está buscando a paz na região, deixando de mencionar que o governo americano fornece US$ 3 bilhões ao ano em ajuda militar a Israel.
A BBC se sai muito mal nessas análises. O relatório Cardiff mostra que a emissora usou fontes do governo americano e britânico com mais freqüência que outras redes transmissoras e usou fontes independentes, tais como a Cruz Vermelha, com menos freqüência que as outras. Deu menos cobertura sobre as baixas iraquianas e foi a menos provável de noticiar a infelicidade iraquiana com a invasão. Outro estudo conduzido pelo Frankfurter Allgemeine Zeitung, sobre redes noticiosas em cinco países, mostrou que a BBC dedicou o menor tempo de transmissão de todas as emissoras aos que se opunham à guerra — apenas 2% de sua cobertura. (Até mesmo o noticiário da ABC nos Estados Unidos deu-lhes 7%). Em contraposição, o Channel 4 News se saiu bem, pois parece ter sido a única rede britânica que buscou oferecer um relato equilibrado desses conflitos.
Então, por que isso acontece? Por que emissoras de televisão (e jornais) que têm a reputação de equilíbrio, imparcialidade e até mesmo tendências liberais ficam do lado dos poderosos? Parece haver vários motivos. Um deles é que pressupõem – correta ou erroneamente – que a audiência não quer complexidade.
A reportagem analítica e investigativa deu lugar a descrições de tirar o fôlego de movimentos de tropas e tecnologia militar. Talvez isso não surpreenda, porque deixa a audiência sem a menor idéia do que está acontecendo. Em um dos grupos de telespectadores entrevistados pelos pesquisadores, o número de pessoas que disseram que os territórios ocupados tinham sido ocupados pelos palestinos superou o número das que disseram que tinham sido ocupados por israelenses. Um outro motivo é que, como em todas as profissões, você é recompensado por agradar ao poder.
Enquanto você é recompensado por lisonjear, é punido pela coragem. Os governos americano, britânico e israelense podem dificultar muito a vida das organizações de mídia que lhes causam transtornos. Os palestinos e o povo iraquiano têm menos poder de fazer lobby. As mídias têm pavor de aborrecer o governo de Israel, por medo de serem tachadas de anti-semitas. Governos poderosos podem convocar a imprensa de direita em busca da apoio.
Quando a maioria de nossos jornalistas nos decepciona, não é de surpreender que os poucos com coragem suficiente para desmascarar as mentiras dos poderosos se tornem heróis, mesmo se seu trabalho for bastante grosseiro.
Quando um comediante sujo e desleixado de Michigan é capaz de nos levar mais próximos da verdade do que a BBC, está na hora de analisar seriamente o motivo pelo qual as notícias se tornaram a propaganda dos vitoriosos. (Tradução de Maria de Lourdes Botelho)’
Zuenir Ventura
‘Bush fez por merecer’, copyright O Globo, 24/07/04
‘Se você é a favor de Bush, assim como grande parte dos americanos, não acredito que vá mudar de opinião assistindo a ‘Fahrenheit 9/11’, que vi ontem. Mas se você é contra, como a outra parte, nada melhor para reforçar suas convicções adquiridas. Se você não aprecia o cinema engajado e militante, esse não é o melhor programa, mas se está pouco ligando para isenção e imparcialidade em documentário e quer fazer uma catarse, o filme de Michael Moore é um prato cheio. Sai-se do cinema com a alma lavada.
Mais do que um filme político, ‘Fahrenheit’ é o filme de um político que se deu a ambiciosa missão de ‘tirar Bush da Casa Branca’. Para isso, usa como arma tudo o que possa desqualificar e ridicularizar o inimigo: a caricatura, a sátira, o sarcasmo. Contra um governo que mentiu, que manipulou a opinião pública, que levou o país a uma guerra suja, que causou a morte de populações inocentes, por que não um cinema declaradamente destrutivo? Parece ser a proposta do diretor.
Parte do sucesso do vencedor de Cannes se explica pela complacência da mídia americana em relação à política belicista do governo. Muito do que se vê ali em termos de denúncia e revelação, os americanos poderiam ter visto nos jornais e na TV. As armações de Bush, seus interesses e negócios escusos, a parceria comercial e financeira de sua família com a de Bin Laden, tudo poderia ter sido revelado antes (ele mostra, por exemplo, como saíram dos EUA, com conivência das autoridades, 24 parentes do chefe da al-Qaeda logo após o atentado às torres).
Personagem de si mesmo, agitador, populista e polêmico, Moore joga para o alto regras e convenções técnicas e até éticas, mas se salva pelo talento e pelo humor, que é ácido, sem falar no trabalho de apuração. Seu filme é um panfleto, mas baseado em pesquisa exaustiva; as provas que juntou contra as mentiras e tramóias de Bush são impressionantes, mesmo quando na montagem as manipula para obter o que pretende: mostrar um presidente desonesto, incompetente e, mais ainda, um cínico palhaço do mal.
Como documentário, ‘Fahrenheit’ tem os problemas das obras a serviço da propaganda: simplificação abusiva, manipulação, apelação sentimental. É um ‘agit-prop pós-moderno’, classificou o ‘Wall Street Journal’, lembrando as técnicas leninistas de mobilização e ação. Mas como intervenção política, pode ter um efeito tônico junto aos que ainda estão indecisos em mudar um país refém do medo, apático e anestesiado. Em suma, Bush fez por merecer o documentário.’
Merval Pereira
‘Panfleto dos bons’, copyright O Globo, 24/07/04
‘Fui assistir ontem, em uma sessão especial, ao premiado e polêmico documentário de Michael Moore ‘Fahrenheit 9/11’ e saí do cinema convencido de que dar a Palma de Ouro para ele foi muito mais um gesto político do júri de Cannes do que, como alegou o Quentin Tarantino, uma premiação à sua qualidade artística. O júri fez com o prêmio o que Moore faz com diversas seqüências de seu documentário: distorceu o significado da Palma de Ouro para atingir um objetivo político maior, ou seja, declarar ao mundo que estamos contra Bush e a guerra do Iraque.
‘Fahrenheit’ faz parte de uma trilha que fora aberta pelo próprio Moore com ‘Tiros em Columbine’, que ganhou o Oscar, e tem seguidores importantes, especialmente nessa senda de oposição ao espírito de guerra que comanda a política externa do governo Bush. Um exemplo desse novo documentário é ‘Control Room’, sobre a cobertura da televisão americana da guerra do Iraque em contraponto com a atuação da rede árabe al-Jazeera.
Assim como ‘Fahrenheit’, ‘Control Room’ é um documentário que tem o seu lado, e ele é contra a cobertura da imprensa americana e, por contraposição, mostra a al-Jazeera como uma televisão quase independente, o que ela nunca foi.
O problema é que o poderio dos Estados Unidos é tão imenso, e a prepotência dos atuais donos do poder americano tão sem parâmetros, que é possível gostar dos dois documentários mesmo sabendo que são, em especial ‘Fahrenheit’, panfletários e enviesados.
No caso de ‘Control Room’, que será apresentado pela primeira vez no Brasil no Festival do Rio em setembro, a cobertura da imprensa americana, sobretudo a da televisão, foi tão distorcidamente patriótica, que o tom fanático dos jornalistas árabes soa como uma autodefesa. Há quem identifique na mais recente crise de credibilidade da imprensa americana, provocada pelo excesso de patriotismo das coberturas, a pressão por lucros, que estaria prejudicando a liberdade de expressão nos EUA.
Principalmente na TV com o chamado ‘efeito Fox’ – televisão do magnata Rupert Murdoch, que assumiu um noticiário claramente favorável ao governo Bush. O noticiário ideologicamente carregado nas tintas da Fox teria influenciado outras redes. Ironicamente, a rede árabe al-Jazeera pode ser comparada à Fox americana, cada qual defendendo ardorosamente seu lado da notícia.
A verdade é que os meios de comunicação aceitaram pressões da Casa Branca, muito por causa do clima patriótico causado pelos ataques de 11 de setembro. O fato é que o noticiário ficou nitidamente mais oficialista, as fontes passaram a ser citadas pelo ‘The New York Times’, por exemplo, de forma anônima muito mais amplamente do que antes.
A tal ponto que o ‘The New York Times’ já veio a público duas vezes no último mês para pedir desculpas pelo seu noticiário sobre a guerra do Iraque. A diretora Jehane Noujaim conta em ‘Control Room’ a história de quem faz a notícia, e tenta mostrar as diferentes versões dadas pela mídia americana e pela al-Jazeera.
Assim como em ‘Farenheit’, há imagens chocantes de vítimas civis da guerra, raramente vistas na televisão ocidental. Uma das figuras centrais do filme, e que acabou se tornando uma estrela internacional quando ‘Control Room’ foi aplaudido de pé no Festival de Sundance, é Hassam Ibrahim, um jornalista sudanês radical criado na Arábia Saudita, onde conheceu Osama bin Laden.
Sua imparcialidade diante dos americanos é notória, mas, afinal, ninguém espera que o jornalismo árabe seja independente segundo os padrões ocidentais. Ainda mais com um país da região sendo atacado. Michael Moore também não segue à risca os cânones ocidentais que mandam que o jornalismo, e sobretudo o documentário jornalístico, seja imparcial.
A direita americana, depois de tentar impedir a exibição do filme com um boicote econômico por parte da distribuidora da Disney – o que ajudou muito o filme a tornar-se um sucesso estrondoso de bilheteria e uma mina de ouro, num desses paradoxos do capitalismo americano — arrolou uma série de inverdades e distorções no filme para acusá-lo de ser um panfleto político.
Mas é isso mesmo que ele é, e Moore não nega que sua intenção, ao lançá-lo no dia 4 de julho, Dia da Independência dos Estados Unidos, era sobretudo política. Ele não se furta a afirmar que seu interesse é derrotar Bush nas próximas eleições. Nesse afã, faz montagens, omite dados, produz imagens e frases de efeito que fazem a platéia gargalhar, mas atropela a ética em diversos momentos, em uns mais radicalmente do que em outros.
Ele ridiculariza a coalizão formada para atacar o Iraque, citando com uma narração jocosa países como Palau, Costa Rica e Marrocos. Mas se ‘esquece’ de citar a Inglaterra, a Itália e a Espanha. Uma das cenas mais divertidas do filme é a sequência em que ele mostra o secretário-adjunto de Defesa, Paul Wolfowitz, preparando-se para gravar um pronunciamento na televisão.
Como uma mecha de cabelo teimava em cair-lhe pela testa, apesar de várias penteadas, Wolfowitz simplesmente molha com cuspe o pente para acertar o cabelo rebelde. Não conseguindo, parte para uma atitude radical: cospe na mão e passa a mão no cabelo, entre sorrisos. Wolfowitz, como se sabe, é talvez o principal artífice da nova maneira de encarar o exercício do poder que os neoconservadores republicanos impuseram à maior nação do mundo com a eleição de Bush.
A nova ordem acredita que os interesses de toda a humanidade são objetivos secundários, sendo o objetivo prioritário o interesse nacional americano. A conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, outra ridicularizada no filme, acha que a perseguição, por parte dos Estados Unidos, de seu interesse nacional vai criar condições para promover a liberdade, os mercados e a paz mundial. (Continua amanhã)’