‘O escritor João Ubaldo Ribeiro fustiga o presidente Lula com a mesma intensidade com que Luis Fernando Verissimo atormentava Fernando Henrique Cardoso. Nestes dois anos e meio de administração petista, Ubaldo se tornou um dos críticos mais ácidos do governo. ‘Não gosto dessa posição, não gosto de aparecer, mas fazer o quê? É inevitável se indignar com certas coisas’, diz o autor. Seu motivo mais recente de irritação foi a cartilha com termos politicamente corretos elaborada pela Secretaria dos Direitos Humanos. Ubaldo escreveu um e-mail a dezenas de amigos, e isso desencadeou toda a polêmica a respeito do tema. Aos 64 anos, o escritor baiano é um dos maiores best-sellers brasileiros, com 3 milhões de exemplares vendidos ao longo da carreira. Em casa, quando não está escrevendo, Ubaldo se dedica a uma nova paixão: o computador. Ele é capaz de ficar um dia inteiro baixando programas e viajando na internet. Compartilha o hobby com o amigo e também autor Rubem Fonseca: ‘Ele é um expert e dizia que eu nunca seria como ele. Hoje me chama de mestre’. Em seu apartamento no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, João Ubaldo Ribeiro recebeu VEJA para a seguinte entrevista.
Veja – O senhor é um dos maiores críticos do governo. O que há de errado com a administração petista?
Ubaldo – O governo é de uma extraordinária incompetência. Não conseguiu formular nenhum projeto, nenhuma visão nacional. O presidente, na minha opinião, tem de ser respeitado, pela sua condição de incorporar e encarnar o cargo supremo do Executivo brasileiro. E eu jamais faltei com esse respeito. No entanto, o brasileiro é tão subserviente que, quando alguém critica Lula chamando-o, por exemplo, de ignorante – o que não é uma difamação, é uma verdade -, diz-se que o presidente está sendo desrespeitado.
Veja – A ignorância a que o senhor se refere não seria compensada por outras qualidades?
Ubaldo – Lula é autor de uma obra monumental, o Partido dos Trabalhadores. É algo sem precedentes na história brasileira, e talvez na história latino-americana. Governar um país, no entanto, não é a dele. Lula não sabe administrar. Ele não senta para ler, para despachar, para trabalhar. Ele tem um ministério que dificilmente conseguirá reunir num mesmo dia porque é impossível, num time de quarenta integrantes, que pelo menos um não esteja gripado ou com algum impedimento.
Veja – O senhor votou em Lula?
Ubaldo – Sim, na última eleição. Em 1994 e 1998, votei em Fernando Henrique. Eu não considerava Lula preparado. Hoje vejo que tinha razão. Na época da eleição de 2002, deixei-me convencer de que os quadros do PT seriam suficientes para manter a coisa sob controle e que o presidente não se deixaria seduzir de forma tão flagrante pelos atrativos do poder. Observando o comportamento de Lula, nota-se que o prazer dele não é administrar. São os discursos, são as aparições que eu classifiquei, e não me arrependo do adjetivo, de circenses. Vem sendo assim desde o primeiro dia. Ele foi a uma das cidades mais pobres, se não a mais pobre e faminta do Brasil, lá no Piauí. Muitas daquelas pessoas não sabiam exatamente o que significava um presidente da República, que para elas seria algo assim como um dono do mundo. Lá, ele disse ao povo que todos iriam comer no dia seguinte. E eu duvido que estejam comendo hoje.
Veja – Por causa desse tom crítico ao governo, o senhor é acusado de estar a serviço do PSDB. Como reage a isso?
Ubaldo – Eu sou uma pessoa totalmente destituída de rabo preso. Nunca roubei ninguém, não tenho antecedentes criminais, nunca fui dedo-duro, é difícil desencavar em meu passado algo mais grave do que ter enganado uma namorada, e assim mesmo muito eventualmente. Quando eu falo mal do governo, recebo cartas iradas dizendo: ‘Mas o que o PSDB faria neste caso?’. Como se tudo o que eu escrevi contra o PSDB não valesse nada. No Brasil, sempre se acredita que a imprensa vive no bolso de alguém. Eu convivi com Roberto Marinho episodicamente por causa de nossa condição de integrantes da Academia Brasileira de Letras. Por ter comparecido a três ou quatro jantares na casa do dono da Globo, fui acusado de conspirar com ele. Você imagina que Roberto Marinho iria chamar um colunista de jornal para que ambos, juntos, manobrassem os cordões que gerem esta República? As pessoas têm essa convicção porque estão acostumadas ao ambiente de corrupção que reina no Brasil.
Veja – Não é um exagero dizer que a corrupção reina no Brasil?
Ubaldo – Nós vivemos num ambiente de lassitude moral que se estende a todas as camadas da sociedade. Esse negócio de dizer que as elites são corruptas mas o povo é honesto é conversa fiada. Nós somos um povo de comportamento desonesto de maneira geral, ou pelo menos um comportamento pouco recomendável. Se você me acompanhar à rua, a gente pode até fazer uma experiência. A população da Zona Sul do Rio de Janeiro é formada em grande parte de gente da terceira idade. Quando um idoso atravessa a rua, os motoristas de ônibus costumam acelerar em ponto morto, fazendo um barulhão. Eles querem dar um susto no velho, eles querem matar o velho. Já vi fazerem isso com crianças, que acabam saindo correndo. Eu mesmo, que tenho 64 anos, já tomei um susto assim. Os brasileiros estão convictos de que, se um pedestre atravessar fora da faixa, o motorista tem o direito de atropelá-lo e matá-lo. Outro exemplo. Eu ouço de várias empregadas domésticas que é comuníssimo aqui no Rio de Janeiro que responsáveis pela merenda escolar retirem substancial quantidade de víveres e alimentos das crianças para levar para casa, distribuir entre parentes e até montar quitandas. Isso é um evidente absurdo.
Veja – O senhor falou em lassitude moral. Isso não ocorreria porque o país não tem instituições fortes, ao contrário de nações européias e dos Estados Unidos?
Ubaldo – Nós somos de um país cuja colonização se deu em moldes muito diferentes dos da colonização dos Estados Unidos, nação à qual somos freqüentemente comparados. Os colonizadores ingleses, ao vir para a América, estavam dando as costas para a Europa. Eles vieram para nunca mais voltar. Sua intenção, ao chegar ao Novo Mundo, era conceber uma nação ou várias pequenas nações nas treze colônias. No Brasil isso não ocorreu. Não porque os portugueses sejam ordinários pela própria natureza, como freqüentemente se diz. A questão é que Portugal nos pegou num momento em que sua prosperidade dependia do fato de o país ser um grande entreposto da Europa, um grande fornecedor de mercadorias. Fizeram, assim, uma colonização predatória. Portugal enriqueceu à custa do açúcar brasileiro, e Lisboa foi reconstruída pelo marquês de Pombal com dinheiro brasileiro. Convinha manter aqui um controle rígido, diferentemente dos americanos, que de costas para a Europa criaram suas próprias leis. Os portugueses, no entanto, não tinham estrutura para isso. Com essa presença forte do governo necessariamente despoliciado pela metrópole, o domínio dos portugueses ocorreu de uma maneira desordenada, desregulada, importando caoticamente a burocracia lusitana, com a corrupção que essa burocracia gera. Construiu-se toda uma visão de mundo centrada na ação estatal. A origem de muitos dos nossos problemas pode ser essa.
Veja – De acordo com Gilberto Freyre, no entanto, os portugueses contribuíram positivamente ao criar uma nação miscigenada.
Ubaldo – É verdade, eles deram algumas contribuições positivas, e essa é uma delas. Com a qual, por falar nisso, o governo quer acabar, implantando o sistema de cotas nas universidades. Eu vejo essa idéia com profunda desconfiança e muito desagrado. Em minha opinião, ela representa um esforço para dividir este país, pela primeira vez, em linhas raciais. Tenho amigos diretores e donos de colégios que estão sendo obrigados a classificar os alunos por raça. Que retrocesso é esse? Já me chamaram e me chamam de vez em quando de negro. Eu me recuso a ser chamado de negro. Não porque tenha vergonha. Eu sou filho de uma família portuguesa pelo lado da mãe, neto de um português pelo lado do pai. A mulher do meu avô paterno era uma mulata acaboclada. O que significa que eu tenho sangue negro. Mas eu me recuso a usar o critério americano que diz que é negro todo mundo que tem uma gota de sangue negro. Ou seja, se o sujeito é filho de um zulu com uma sueca, por que a metade zulu tem de prevalecer? E aí vem o governo com essa bobagem de que não se pode usar a palavra ‘mulato’ porque vem de mula. Vou dizer algo politicamente incorreto: Lula é mulato. Se bem me lembro, o cabelo dele era crespo, encarapinhado, no tempo em que era líder metalúrgico. Já hoje, presidente da República, ele tem cabelos sedosos.
Veja – O senhor acha que o sistema de cotas é de difícil implantação?
Ubaldo – Eu acho muito complicado classificar as pessoas por raças no Brasil. Eu não vejo TV, posso estar dizendo alguma bobagem, mas eu me lembro de que a Xuxa só aceitava loirinhas para paquitas. Suponhamos que baixassem no Brasil um decreto específico, dizendo: ‘Xuxa Meneghel é obrigada a reservar 50% das vagas de paquitas para afro-descendentes’. Apareceriam no dia seguinte 20.000 loiras de olhos azuis mostrando o retrato de um vovô negão. Carla Perez, minha conterrânea, é uma loira artificial. Ela é mulata, filha de mulato, sem deixar de ser loira. Essa idéia das cotas embute, no fundo, uma visão equivocada: aquela que enxerga a questão da escravidão como um problema de origem racial.
Veja – E não é?
Ubaldo – Não existe nada mais falso do que isso. Ao longo da história, os escravos sempre foram os vencidos, e não necessariamente os negros. Na maior parte das civilizações, os escravos eram brancos. Os hebreus foram escravos dos egípcios, por exemplo. Não foram os portugueses que escravizaram os africanos. Eles trouxeram nos navios negreiros pessoas que já haviam sido escravizadas em sua nação de origem. Eram negros escravizando negros. As nações da África do início do ciclo das grandes navegações nunca tinham ouvido falar na existência dos brancos. Acreditavam que a humanidade era negra. Achavam-se, assim, tão diferentes dos vizinhos que falavam outra língua, cultuavam outros deuses e comiam outra comida quanto um inglês se acha diferente de um francês, de um alemão ou de um napolitano. A suposta irmandade entre os negros passou a existir quando eles foram unificados na categoria de escravos.
Veja – O senhor sempre se autodefiniu como um autor que escreve por dinheiro. Alguém com essa postura sofre algum tipo de discriminação no Brasil?
Ubaldo – Sem dúvida. Em parte por causa da inveja dos que não conseguem vender livros. Durante a maior parte da história a regra foi a encomenda. Quase toda a arte renascentista foi produzida assim, da Capela Sistina às fontes de Roma. Esse negócio de se sentar e se comunicar magicamente com as musas é conversa de rico que fica falando em arte. O artista de verdade quer ser pago.
Veja – Por que se lê tão pouco no Brasil?
Ubaldo – É um lugar-comum dizer que isso ocorre porque o livro é caro. Sem dúvida essa é uma das razões. Há, no entanto, uma cultura de que o livro é uma coisa chata, difícil. Eu sou adotado em escolas, e devo ser odiado por um número imenso de estudantes brasileiros. Os jovens lêem os livros preocupados em responder a perguntas incompreensíveis em provas. Um grande número de professores transmite aos alunos o ódio que eles mesmos têm dos clássicos. O próprio presidente vende a imagem da leitura como uma coisa difícil, comparável a andar em esteira. Uma das coisas graves que eu acho que Lula faz é se gabar, se vangloriar da própria ignorância, da própria falta de formação.
Veja – O senhor recentemente teve graves problemas de saúde por causa do alcoolismo. Poderia contar o que aconteceu?
Ubaldo – Foi uma luta de oito anos, complicadíssima. Tudo começou com uma depressão, em 1994, quando voltei da Copa do Mundo dos Estados Unidos. Uma depressão sem motivo, mas eu caí de cama, só não quis me suicidar. Tomei todos os remédios possíveis. Eu, que já bebia bastante, tentei curar a depressão com álcool, que é a pior burrice que alguém pode fazer. Porque a depressão vai embora durante três horas, quatro horas, depois volta pior. Você entra numa espiral descendente da qual é difícil sair. Fiquei oito anos nesse inferno, inchado, tremendo. O auge, há quatro ou cinco anos, foi quando tive uma pancreatite que quase me levou à morte. Passei quinze dias na unidade semi-intensiva do hospital. Tive a sorte de ser um dos poucos casos de pancreatite que não deram dor nenhuma. Dizem que as dores associadas a essa doença estão entre as piores que se podem suportar. Hoje, felizmente, estou há três anos sem beber.
Veja – Como o senhor superou o problema?
Ubaldo – Pela via da religião. Eu não me submeto ao ministério de nenhuma crença, embora acredite em Deus, reze todas as noites e me considere cristão. Há algum tempo, por uma série incrível de coincidências que não vou relatar aqui, tornei-me devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Eu dizia que quase morri de pancreatite. Depois que saí do hospital, voltei a meus velhos hábitos de beber. Acordava cedíssimo, por volta das 5 da manhã, ia comprar jornal e passava pelos bares que fecham tarde para comprar uísque. Às 10 da manhã já estava bêbado, e assim passava o dia inteiro. Logo tive o anúncio de que a pancreatite estava voltando: engulhos em seco. Eu acordava e ia direto para o vaso sanitário, para uma sessão de náuseas. Isso piorava a cada dia, e uma segunda pancreatite para mim seria a morte. Até que uma noite, na hora de dormir, eu rezei a Nossa Senhora: ‘Se amanhã eu amanhecer sem náuseas, eu paro de beber’. Acordei e, pela primeira vez em muito tempo, não tive engulhos. Desde então, e isso foi há três anos, não bebi mais nada. Todos os fins de semana vou com meus amigos ao boteco e só tomo guaraná diet. O mais incrível é que não sinto a mínima vontade de beber. Eu poderia dizer que tenho uma imensa força de vontade, mas não seria verdade. Eu não faço esforço nenhum.’
JORNALISMO CULTURAL
‘Fala, Bob!’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 10/05/05
‘Você já leu o ‘Crônicas’, Vol.I do Bob Dylan? Leia correndo. É absolutamente fascinante, por qualquer ângulo que se olhe. Não espere uma autobiografia no sentido literal do termo – não creio que Dylan, em sua natureza perpetuamente mutante, conseguiria suportar a idéia de ver sua trajetória congelada por uma única perspectiva fixa, nem mesmo que fosse a sua própria.
Embora cuidadosamente selecionadas por um editor prudente e cioso da privacidade de seu protagonista – ou seja, o próprio Dylan – estas ‘Crônicas’ são o mais próximo da parte de dentro de um processo de criação e celebridade pop que alguém pode chegar.
São, portanto, de especial interesse as passagens (não muito freqüentes, diga-se a verdade) em que ele se refere à mídia, seus usos e costumes. De interesse porque Dylan é um observador agudo e sagaz, cuja carreira cobre, década por década, a trajetória da mídia de cultura pop, da sua pré história ao seu apogeu e declínio.
E não sou eu quem está usando a palavra ‘declínio’ para definir o estado de coisas dos últimos dez, 15 anos. É Dylan. Aqui está um trecho saboroso duplamente – pelo que ele revela sobre o artista, vulnerável como todo mortal aos ventos de mudança (que, ironicamente, ele mesmo havia cantado), e sobre todos nós.
Estamos no final dos anos 80 – uma data que Dylan não precisa, no fluido sistema anti-cronológico de seu livro – e ele se vê num impasse. ‘Eu tinha que começar por baixo, e ainda nem estava totalmente lá embaixo’, Dylan escreve. Sua fama, ele diz ‘era imensa, podia encher estádios de futebol’ mas na realidade, aos olhos da indústria do show business, ele se equivalia a artistas ‘capazes de encher um clube, e mais nada’. E não tinha mais uma poderosa aliada: a imprensa. Aí é que as coisas ficam apetitosas: ‘Eu não podia mais depender da crítica para contar minha história. De todo modo a maior parte dos jornalistas de música havia se transformado em pouco mais que relações públicas. Eu teria que depender do boca a boca.’
Ui, ui, Bob, essa dói. Deixo na mesa, com a recomendação, mais uma vez, de que ‘Crônicas’ seja lido inteiro, até para compreender a outra metade desta equação (aquele em que Dylan fala em se apoiar nos ‘críticos para contar minha história’).
E coloco a seguinte moldura: até a estréia de ‘A Intérprete’, no final de abril, todos os filmes no topo da bilheteria, nos Estados Unidos, haviam sido massacrados pela crítica. Mas, aparentemente, endossados pelo boca a boca.
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LÍNGUA PORTUGUESA
‘Parece, mas não é’, copyright Jornal do Brasil, 16/05/05
‘‘Assim é, se lhe parece’, título de uma peça de Luigi Pirandello, é também bordão para encerrar um conflito verbal que desaba sobre nós, transformando-se no que disse do amor Luís de Camões, depois musicado pela Legião Urbana: ‘é fogo que arde sem se ver;/ é ferida que dói e não se sente;/ é um contentamento descontente;/ é dor que desatina sem doer’.
Pois arde, dói, descontenta e desatina verificar que personalidades de nossa vida cultural, política e econômica tropeçam tanto na língua portuguesa, fazendo tristes confusões de significado com palavras assemelhadas, às vezes homófonas, mas não homógrafas.
Homófona é palavra que tem o mesmo som de outra, entretanto com sentido e grafia diferentes, de que são exemplos censo (dados estatísticos) e senso (juízo, opinião), concelho (divisão de distrito) e conselho (recomendação), incerto (duvidoso) e inserto (incluído), arrear (encilhar o cavalo) e arriar (abaixar). Já ‘sedo’, do verbo sedar, é pronunciado com o ‘e’ aberto, ‘sédo’. E ‘ceda’, imperativo do verbo ceder, é pronunciado com o ‘e’ fechado, como em seda (tecido).
Homógrafa é palavra que tem o mesmo som e a mesma grafia de outra, mas significado diverso, de que são exemplos ‘cedo’ (do verbo ceder) e ‘cedo’ (começo do dia). A pronúncia de vogais abertas e fechadas obedece a certas variações dialetais do português falado no Brasil. E tais diferenças, se causam estranheza mútua, não impedem o entendimento. Gaúchos, paranaenses e catarinenses, de forte presença na vida brasileira, desconcertam os interlocutores de outros Estados, ao pronunciarem ‘Brasil’ com o ‘l’ final sem som de ‘u’ como em ‘Brasíu’, além do carregado ‘r’ forte que falantes de outras regiões tão docemente suavizam.
O Brasil é cosmopolita, mas a maioria de seus políticos é provinciana, sobretudo nos atos de fala e de escrita. São criticados por serem monoglotas (falam e escrevem apenas em português), mas este não é o problema. Grandes estadistas também o são, falam e escrevem apenas na língua de seu país. O problema é o modo como os nossos falam e escrevem em português.
Depois de errar tanto em português, agora erram também em espanhol, como aconteceu com o novo passaporte brasileiro, integrado ao Mercosul (pronunciaremos ‘Mercozul’, já que não dobramos o ‘s’?), em que um esperto, mas não experto, depois de ofender a língua de Camões, vilipendiou também a de Cervantes, cometendo cinco erros de espanhol em três linhas!
É assustador: quem assim escreve, toma decisões que afetam a vida de todos nós!’
Pasquale Cipro Neto
‘‘Contrariou o pai, e a mãe…’’, copyright O Globo, 15/05/05
‘NA SEMANA PASSADA, TRATAMOS DE alguns dos casos do emprego da vírgula antes da conjunção ‘e’. Nosso pontapé inicial foi dado por um título jornalístico (‘Corinthians perde atletas, jogo e racha fora de campo’). Vimos que uma das maneiras de tornar menos ruim esse título consiste no emprego de um segundo ‘e’ e de uma vírgula (‘Corinthians perde atletas e jogo, e racha fora de campo’). A ocorrência da vírgula antes da conjunção ‘e’ ganhou exemplos de peso, como os de Olavo Bilac (‘Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua’) e Vinicius de Moraes (‘…e com tal zelo, e sempre, e tanto…’). Vimos que nesses exemplos ocorre a figura do ‘polissíndeto’, palavra grega que, como revela sua ‘tradução’ (‘vários’ + ‘ligado’, ‘unido’), nomeia a repetição da conjunção (‘e’, nos casos vistos).
Vimos também que a repetição da conjunção ‘e’ causa a sensação de que a oração iniciada por esse conectivo encerrará o período, o que não ocorre. Com isso, prolonga-se a expectativa do fim e, conseqüentemente, obtém-se ênfase para cada uma das orações que a conjunção ‘e’ introduz.
Vejamos agora outros casos em que pode ocorrer vírgula antes do ‘e’. Vamos pensar neste exemplo: ‘Depois que descarregou toda a mudança, ele ainda conseguiu arrastar os móveis, e o corpo nem deu sinais de cansaço’. O que faz aí a conjunção ‘e’? Liga os termos ‘os móveis’ e ‘o corpo’? Não, esse ‘e’ não liga termos; liga duas orações (‘ele ainda conseguiu arrastar os móveis, e o corpo nem deu sinais de cansaço’). Note, por favor, que essas orações não têm o mesmo sujeito. O sujeito da primeira oração é ‘ele’; o da segunda é ‘o corpo’. As gramáticas costumam dizer que é necessária a vírgula antes do ‘e’ quando essa conjunção liga orações de sujeitos diferentes. O motivo é simples: clareza, leitura reta, captação imediata da mensagem.
Se não houvesse vírgula antes da conjunção ‘e’ (‘Ele ainda conseguiu arrastar os móveis e o corpo nem deu sinais de cansaço’), a primeira leitura do texto talvez fosse feita como se ele tivesse arrastado os móveis e o corpo. Quando chegasse ao que vem depois de ‘o corpo’ (‘nem deu sinais de cansaço’), o leitor perceberia que a estrutura sintática é outra, mas já seria tarde. Restaria ao leitor a opção de recomeçar a leitura da frase.
Em outras palavras, a vírgula antes da conjunção ‘e’ impede que, num primeiro momento, o leitor entenda que ‘os móveis’ e ‘o corpo’ funcionam como complementos de ‘arrastar’, isto é, impede que o leitor passe ‘batido’ pelo fato de que a conjunção ‘e’ não encerra uma seqüência de termos, mas une orações que têm sujeitos diferentes. Veja outro exemplo: ‘Ele contrariou o pai, e a mãe lhe deu razão’. Percebeu o papel da vírgula?
Vejamos agora o que ocorre quando a conjunção ‘e’ liga orações que têm o mesmo sujeito. Teoricamente, a vírgula é dispensável, desnecessária, o que não significa que seu uso seja proibido ou absurdo, sobretudo quando se quer enfatizar a oração introduzida pela conjunção ‘e’. Esse emprego da vírgula antes do ‘e’ é mais comum em textos literários, filosóficos etc. Em textos jornalísticos, por exemplo, seu emprego não costuma ocorrer. Não existe ênfase que justifique uma vírgula antes do ‘e’ numa frase como ‘Os bandidos invadiram o prédio e prenderam diversos moradores no salão de jogos’.
Por fim, convém lembrar que antes de ‘etc.’ a vírgula é optativa. Os que se apóiam na etimologia não empregam a vírgula, visto que ‘etc.’ é a abreviatura da expressão latina ‘et cetera’, que significa ‘e as demais coisas’. Agem assim o ‘Dicionário Houaiss’ e alguns jornais, por exemplo. Quem não leva em conta a origem considera o ‘etc.’ um elemento a mais da enumeração e, por isso, emprega a vírgula. Agem assim o ‘Dicionário Aurélio’ e o ‘Vocabulário Ortográfico’ (no texto do ‘Formulário Ortográfico’, transcrito na obra). A escolha é sua, caro leitor.
Até domingo. Um forte abraço.’