Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornal do Brasil

CULTURA
Deonísio da Silva

O xibolete do português

‘Jamais se soube de tão severa punição para um modo de falar. Quem pronunciasse a palavra hebraica sibolet, em vez de shibolet, era executado às margens do Rio Jordão.

A história nos é contada em O livro dos juízes. A tribo de Galaad estava em guerra com a de Efraim.

Para identificar os efraimitas fugitivos, seus inimigos pediam que dissessem shibolet, espiga. Esta era a senha.

Ora, os efraiditas pronunciavam uma variação dialetal da mesma palavra, marcada pela diferença do fonema inicial. Pronunciavam sibolet, diz a Bíblia, acrescentando: ‘Não sabendo pronunciar corretamente, agarravam o inimigo e o matavam no vau do Jordão. Nessa ocasião, pereceram quarenta e dois mil efraimitas’.

Cláudio Moreno, doutor em Letras e professor de referência no ensino da língua portuguesa, em cursos superiores de qualidade e em renomados colégios de Porto Alegre (RS), autor da série Guia prático do português correto, tratou da questão em O prazer das palavras, delicioso livrinho de bolso, da L&PM Pocket.

Quais seriam os xiboletes, não de alguns falantes da língua portuguesa, mas de todos? O principal é o ‘ão’. O português é a língua do ‘ão’. Mas há outros, como o complexo sistema de pronomes de tratamento.

No Brasil, há bancos que mandam cartas aos correntistas, tratando-os de Vossa Santidade, (V.S.), em vez de Vossa Senhoria, (V.S.a), por trocarem as formas abreviadas. O signatário já recebeu cartas em que foi tratado de V.A., abreviação de tratamento dispensado a príncipes, arquiduques e duques, segundo nos ensina o gramático Celso Luft.

O professor Luciano Medeiros, da Universidade Estácio de Sá, perguntado sobre qual seria o tratamento correto para o cargo de vice-reitor, se o de reitor é Vossa Magnificência, disse: ‘Não precisa tanto, espetacular está bom!’.

Esses tratamentos, porém, não evidenciam o xibolete mais comum da língua portuguesa, espécie de cédula de identidade de nosso idioma, que é o ‘ão’.

O poeta Mário Quintana, percebendo os atrapalhos de Sua Santidade para pronunciar o ditongo ‘ão’, escreveu ao Papa: ‘Sendo Vossa Santidade um poliglota notável, vejo que não consegue pronunciar o famoso ão da língua portuguesa. E tomo a liberdade de esclarecê-lo sobre esta pronúncia. Considere o ão como dois monossílabos, ã mais o, e tente pronunciá-los cada vez mais rapidamente. Assim obterá o nosso ão. Esperando sua bênção, respeitosamente. Mário Quintana’.

Na guerra entre galaaditas e efraimitas, xibolete serviu de senha. Dizem também que a língua portuguesa foi usada para mensagens de serviços secretos na Segunda Guerra Mundial.

De todo modo, com a iminente vigência do acordo ortográfico, virão à tona xiboletes diversos, tantas são as sutis complexidades das diferenças com a língua portuguesa falada no Brasil, em Portugal, na África, e na Ásia. Camões já vaticinara: ‘Na quarta parte nova os campos ara/ E se mais mundo houvera, lá chegara’. Mas dos cerca de 300 milhões de falantes do português, dois terços deles vivem e falam no Brasil!

Ocorre, porém, que os xiboletes são da fala. Na escrita, a unificação vem em boa hora.’

 

 

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