Leia abaixo os textos desta quinta-feira selecionados para a seção Entre Aspas.
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Folha de S. Paulo
Quinta-feira, 02 de novembro de 2006
Eliane Cantanhêde
Começou mal
BRASÍLIA – Enquanto Lula faz pose de estadista e fala manso em todas as TVs, pedindo uma trégua à oposição em nome da governabilidade, do bem do país, da tranqüilidade dos brasileiros e não sei mais o quê, o tom no PT é muito diferente.
O ministro da articulação política, Tarso Genro, e o presidente do partido e coordenador da campanha de Lula, Marco Aurélio Garcia, metem a ronca na imprensa, incentivando, indiretamente, uma reação raivosa contra os jornalistas. Você, leitor, não tem idéia dos e-mails que os petistas que não têm nada de ‘paz e amor’ fazem circular pela internet e mandam aos montes para jornalistas, inclusive para nós, colunistas da Folha, agressivos e, não raro, injustos.
Num e-mail, um alucinado me chamou de ‘vaca nazista’ por considerar que, ao registrar e comentar todos os escândalos produzidos no primeiro mandato de Lula, eu seria ‘antilulista’, ‘antidemocrática’, ‘da direita e da elite’.
Há um oceano entre o discurso de Lula e os desses lulistas, como há um oceano entre os fatos e as versões, que não reconhecem o parecer do procurador-geral da República, acusando a existência de ‘uma quadrilha’, nem a compra de partidos e parlamentares, nem compra de dossiê, nem os processos contra os ex-ministros Palocci e Dirceu.
Essas coisas não são e não foram criação de jornalistas, muito menos dos colunistas da Folha. São fatos, estão sendo apurados e divulgados, como em todos os governos pós-ditadura militar. Jornalistas não somos santos.
Mas querer transferir responsabilidades e partir para a ignorância não leva a nada. E atrapalha, muitíssimo, qualquer tentativa de pacificação do clima político, como deseja -e precisa- o próprio Lula. Críticas, sim, até porque nós somos muito críticos e temos de saber ser criticados. Mas não a agressões e palavrões, muitos deles anônimos e duplamente covardes.
Painel do Leitor
‘Lilian Christofoletti noticiou, na edição de ontem, que, ao ser informado sobre hostilidades que teriam sofrido alguns jornalistas em Brasília, sugeri à imprensa uma ‘auto-reflexão’ sobre a forma como noticiou o chamado escândalo do mensalão.
Tentou, assim, estabelecer relação de causa e efeito entre um fato condenável e minha reação, que apontava para outro problema.
Omitiu também minha enérgica condenação a qualquer ato de violência contra jornalistas e minha enfática defesa da liberdade de imprensa. Esse tratamento não me surpreende, no entanto. Em outras circunstâncias, a repórter omitiu elementos fundamentais para o bom entendimento da atualidade nacional.’
Marco Aurélio Garcia, presidente nacional do PT (Brasília, DF)
Nota da Redação – A Folha noticiou em sua edição de 31/10 as declarações que o presidente interino do PT considera ‘enérgicas’ e ‘enfáticas’ sobre a violência contra jornalistas e tentativas de cercear a imprensa. Ao individualizar sua queixa, o auxiliar do presidente Lula apenas ressalta a independência profissional da repórter que pretendeu criticar.
Presidente do PT diz a jornalistas que ‘cuidem das redações’ e recebe críticas
O presidente interino do PT, Marco Aurélio Garcia, pediu anteontem a jornalistas, em entrevista no comitê central da campanha do presidente Lula, em Brasília, que não interfiram no futuro do partido.
‘Cuidem de suas redações que nós cuidamos do PT’, declarou, já no final da entrevista, quando a imprensa ainda fazia perguntas a respeito da reorganização da legenda, prometida por uma resolução da Executiva Nacional.
No dia anterior, Garcia havia pedido que a imprensa fizesse uma ‘auto-reflexão’ sobre a cobertura das eleições. Declarou ainda que a mídia devia ao país a explicação de que o mensalão não teria existido.
O presidente petista condenou a hostilização de jornalistas por militantes petistas em frente ao Palácio do Alvorada, quando aguardavam a presença do presidente Lula, na última segunda.
Especialistas em mídia e política e os dois ombudsmans da imprensa impressa brasileira criticaram as declarações. ‘É não compreender o papel da imprensa, que é perguntar. Como homem público, ele deveria ser mais cauteloso’, diz Luiz Gonzaga Motta, coordenador do Nemp (Núcleo de Estudos de Mídia e Política) da UnB.
O ombudsman da Folha e presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Marcelo Beraba, concorda: ‘É um absurdo total. É obrigação da imprensa tentar levantar informações sobre políticas públicas, sobre os rumos da economia e sobre os nomes que estão em jogo na disputa interna, nos bastidores. É um grave equívoco querer que a imprensa esteja alheia a essa discussão’.
Para Plínio Bortolotti, ombudsman do jornal ‘O Povo’, do Ceará, ‘todo cidadão, com cargo público ou não, tem direito de criticar a imprensa’, mas ele declara que Marco Aurélio ‘se equivocou’.
‘A imprensa tem o papel de fiscalizador dos poderes. Não é padre que cuida da igreja, jornalista da redação, e governantes do governo’, afirma ele.
Para Motta, o governo é inábil para lidar com a imprensa. ‘Melhorou em relação ao começo do primeiro mandato, mas precisa oferecer o que os jornalistas precisam para trabalhar, que são fontes, acesso a informações e também entrevistas do presidente’.
Tanto para o professor da UnB como para o ombudsman de ‘O Povo’, a frase de Marco Aurélio contradiz recentes declarações do presidente Lula, que sinalizou mudança na relação com a imprensa. Há convergência também em apontar o acirramento de ânimos entre parte da imprensa, governo e alguns setores da sociedade.
‘A frase é uma reação do PT a um processo de desgaste’, diz Alessandra Aldé, pesquisadora do Doxa (Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública, do Iuperj. ‘Existe uma tendência de uma cobertura negativa para o governo, para o PT, para o presidente Lula, como mostram os levantamentos do Doxa. A imprensa cumpre seu papel de vigilância do poder público, mas há pouco espaço para a agenda positiva’, afirma.
‘É a reação de uma campanha vitoriosa. O que que cria o curto-circuito é a sobreposição de papéis. Marco Aurélio fala muito como coordenador de campanha, mas também agora é governo’, completa ela.
Para Luiz Gonzaga Motta, o ‘excesso de visibilidade’ dado pela grande imprensa aos escândalos do governo ‘em relação a outras agendas também importantes’ contribuiu para gerar ‘ressentimento’ mútuo.
‘A corda está esticada dos dois lados. Os ânimos têm de serenar’, afirma Bortolotti.
Pedro Dias Leite e Eduardo Scolese
Tarso defende jornalistas dois dias após ato de petistas em frente ao Alvorada
O ministro Tarso Genro (Relações Institucionais) saiu em defesa de jornalistas hostilizados por petistas, dois dias antes, no Alvorada, na chegada do presidente Lula a Brasília após a vitória no segundo turno.
‘É profundamente lamentável que alguém tenha qualquer atitude de brutalidade, de hostilidade, de violência contra qualquer jornalista, seja ele de que órgão for. Isso é um resíduo de autoritarismo inaceitável.’
Tarso lembrou que Lula procura uma relação mais cordial com a mídia no segundo mandato. ‘Não tem nenhum acolhimento nem da minha parte nem do governo [a hostilidade à imprensa]. Não contribui, inclusive, para uma posição que o próprio presidente já manifestou, de que quer melhorar sua relação com a imprensa.’
Na segunda-feira, repórteres que cobriam a chegada do presidente à capital foram hostilizados por petistas, na Base Aérea de Brasília e na portaria do Palácio da Alvorada. Houve xingamentos, gritos de guerra, bandeiradas e empurrões por parte dos militantes.
Solidário no caso de segunda-feira, o ministro esquivou-se de emitir juízo em outros dois casos: a declaração do presidente em exercício do PT, Marco Aurélio Garcia, de que a mídia deveria fazer uma ‘auto-reflexão’ sobre seu papel nessas eleições e também a acusação de jornalistas da revista ‘Veja’, de que foram intimidados por delegado da PF quando prestavam depoimento.
‘Quanto à ação da PF, não posso manifestar juízo. (…) Na Polícia Federal todas as pessoas têm de ser tratadas da mesma forma, sejam jornalistas, médicos ou advogados. Qualquer tratamento fora do regulamento tem de ser combatido’, disse Tarso, que ressalvou falar apenas ‘em tese’.
Frederico Vasconcelos
Entidades criticam abuso de poder da PF
O presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), jornalista Maurício Azêdo, disse que houve ‘abuso de poder’, ‘coação e coerção’ da Polícia Federal contra repórteres da ‘Veja’ durante depoimento, como testemunhas, sobre reportagem que revelou supostas ilegalidades cometidas por policiais federais. ‘Esse episódio é muito grave’, afirmou Azêdo.
O presidente da ABI ainda criticou o presidente do PT, Marco Aurélio Garcia, também assessor do presidente Lula para assuntos internacionais, ‘que tem manifestado opiniões contrárias ao exercício da liberdade de imprensa e estimulado, inclusive, manifestações de hostilidade, algumas de caráter físico, contra jornalistas’ (leia texto na pág. A8).
A ABI vai encaminhar expediente formal ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ‘pedindo a apuração da denúncia e a contenção da Polícia Federal e desse delegado [Moysés Eduardo Ferreira] nos limites de sua atuações funcionais, sem esses transbordamentos que ameacem o exercício da atividade jornalística’.
A ANJ (Associação Nacional de Jornais) emitiu duas notas à imprensa em que protesta contra tentativas de cerceamento da atuação de jornalistas em São Paulo e no Paraná.
Na primeira, a entidade ‘protesta com veemência contra a intimidação sofrida por repórteres da revista ‘Veja’ durante depoimento prestado à Polícia Federal para investigação interna sobre o caso da tentativa de uso de um dossiê contra o PSDB antes das eleições’.
Assinada pelo vice-presidente Júlio César Mesquita, a nota afirma que os jornalistas foram tratados pelo delegado como suspeitos e não como testemunhas, ‘sofreram constrangimentos e ameaças, numa evidente tentativa de intimidar o livre exercício do jornalismo’. A segunda nota critica o governador do Paraná, Roberto Requião (leia texto nesta página).
Posição da Fenaj
Sobre a agressão de militantes do PT a jornalistas, segunda-feira, em Brasília, o presidente da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), Sérgio Murillo de Andrade, disse que a entidade ‘não pode jamais concordar com qualquer tipo de ameaça ou, pior ainda, violência física contra jornalistas’.
Andrade atribuiu o episódio à ‘tensão pós-eleitoral’ e disse que a Fenaj fará ‘uma avaliação sobre o papel que nós desempenhamos nesse processo eleitoral: há aspectos positivos que devem ser ressaltados, mas há erros que foram cometidos’.
Leia a seguir a íntegra da nota divulgada pela ANJ sobre o caso ‘Veja’.
A Associação Nacional de Jornais protesta com veemência contra a intimidação sofrida por repórteres da revista ‘Veja’ durante depoimento prestado à Polícia Federal para investigação interna sobre o caso da tentativa de uso de um dossiê contra o PSDB antes das eleições.
Estranhamente, os repórteres Júlia Dualibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro foram tratados pelo delegado Moysés Eduardo Ferreira como suspeitos e não como testemunhas. Sofreram constrangimentos e ameaças, numa evidente tentativa de intimidar o livre exercício do jornalismo.
É lamentável que uma instituição como a Polícia Federal se preste ao papel de hostilizar jornalistas e um veículo de comunicação em função do trabalho jornalístico por eles praticado. A liberdade de imprensa é um valor maior da democracia.
A Polícia Federal é uma instituição do Estado, a quem cabe servir a toda a sociedade. A ANJ espera que fatos como esse não se repitam e que a Polícia Federal cumpra suas atribuições nos estritos limites da lei, sem o pretender atemorizar profissionais ou empresa jornalística no exercício do legítimo direito e dever de informar os cidadãos.
Júlio César Mesquita, Vice-Presidente da Associação Nacional de Jornais; Ricardo Pedreira, Associação Nacional de Jornais
Rogério Pagnan
Procuradora diz que PF não intimidou jornalistas; revista ‘Veja’ contesta nota
A procuradora da República Elizabeth Mitiko Kobayashi disse ontem que, pelo seu ‘entendimento pessoal’, os jornalistas da ‘Veja’ não foram intimidados pelo delegado da Polícia Federal Moysés Eduardo Ferreira durante o depoimento, como afirma a revista.
Segundo Kobayashi, que acompanhou os esclarecimentos dos jornalistas na sede da PF em São Paulo, houve ‘imperfeições’ nos termos reproduzidos pelo delegado, que foram corrigidos, mas não houve ‘qualquer ato de intimidação’. ‘O que teria provocado imediata reação de minha parte’, disse ela, por meio de uma nota.
Anteontem, a Folha procurou Kobayashi para esclarecer as circunstâncias do depoimento, mas, por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público Federal, ela afirmou não querer falar ‘no calor dos fatos’. A Procuradoria é controladora externa da PF.
A ‘Veja’ acusa o delegado de ter intimidado, pressionado e constrangido os jornalistas. Diz que os repórteres eram testemunhas no inquérito que apura a ação policial, mas tiveram de responder sobre o posicionamento político da revista e supostas filiações partidárias.
Ontem, em resposta à versão divulgada pela Procuradoria, a revista ‘Veja’, que tem Eurípedes Alcântara como diretor de Redação e Mario Sabino como redator-chefe, emitiu nova nota na qual diz que os fatos relatados não foram desmentidos e que apesar de o entendimento da procuradora ser diferente, seus repórteres se sentiram intimidados. Leia as íntegras das notas divulgadas pela revista ‘Veja’ e pela procuradora Elizabeth Mitiko Kobayashi.
Nota da procuradora Elizabeth Mitiko Kobayashi
Como procuradora da República presente aos depoimentos que são alvo de contestação da revista ‘Veja’ e da réplica da Polícia Federal, cumpre esclarecer que:
1) Sobre a nota da revista ‘Veja’, não é correto afirmar que os jornalistas prestaram depoimentos para uma investigação interna da corregedoria da PF. Os jornalistas foram ouvidos como testemunhas em inquérito policial para apurar se houve conduta indevida de policiais no interior da PF em SP. A PF ainda não instaurou procedimento administrativo interno sobre os episódios narrados na revista;
2) No caso específico, as irregularidades verificadas foram prontamente apontadas e sanadas no curso dos depoimentos, da maneira detalhada na nota da revista ‘Veja’;
3) O papel do MPF no caso é certificar que as declarações tomadas no inquérito policial sejam as mais fiéis possíveis aos depoimentos das testemunhas, fazer perguntas de interesse da investigação não realizadas pela PF, bem como buscar outras provas e evidências para esclarecer o caso, determinando e sugerindo a realização de oitivas, perícias, etc, para chegar ao resultado almejado por todos: a verdade.
4) Embora as imperfeições ocorridas durante a redução a termo dos depoimentos tenham sido corrigidas e que no meu entendimento pessoal não tenha havido qualquer ato de intimidação por parte da PF, o que teria provocado imediata reação de minha parte, o MPF está aberto para receber qualquer comunicação formal por parte da revista ‘Veja’.
Nota da revista ‘Veja’
A direção da revista ‘Veja’ tem a declarar que: a) a nota da procuradora não desmente os fatos relatados pela revista. b) o Ministério Público não sanou o principal problema dos depoimentos: os jornalistas não puderam falar com a advogada. c) como diz a procuradora, no seu ‘entendimento pessoal’, não houve intimidação. No entendimento dos repórteres da revista, porém, pela forma como os depoimentos foram conduzidos, eles foram, sim, intimidados.
Mari Tortato
ANJ condena atitude de Requião com imprensa
A ANJ (Associação Nacional de Jornais) condenou ontem, por meio de nota, ‘a forma como o governador do Paraná, Roberto Requião, se referiu a jornalistas e empresas de comunicação em entrevista coletiva’. Para a entidade, Requião ‘foi grosseiro, desrespeitoso e procurou criar um clima de hostilidade contra quem exerce de forma legítima seu direito de informar a opinião pública’.
O presidente da ANJ, Nelson Sirotsky, disse que é lamentável que um governador ‘se porte com tamanha beligerância e desatino’ (leia íntegra abaixo).
Na segunda-feira, em entrevista no Palácio Iguaçu, Requião acusou a imprensa de ”fazer campanha’ para eleger seu adversário, o senador Osmar Dias (PDT) e constrangeu jornalistas que lhe faziam perguntas com críticas aos veículos para os quais trabalham.
Também ontem o Sindijor-PR (Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná) pediu parecer e espera posição de advogados sobre a legalidade de o site oficial do governo do Paraná divulgar uma carta que ataca a direção do Sindijor-PR e reafirma a declaração de Requião de que a imprensa, notadamente a regional, atuou em favor de seu adversário nestas eleições.
A carta considera descabida a repercussão da entrevista no Palácio Iguaçu. A carta acusa o sindicato de não defender a liberdade de imprensa, mas ”a liberdade das empresas de manifestarem suas opiniões, tendências, e preferências’. O texto foi escrito pelo jornalista Benedito Pires, assessor especial do governador reeleito.
A Folha apurou que, apesar de aliado de Requião, o governador interino, Hermas Brandão (PSDB), não foi consultado nem comunicado da nota em nome do governo pelo qual responde. Pires não falou com a Folha ontem. Via redação da Comunicação Social, ele disse que Requião sabia da carta e aprovou o texto.
A nota divulgada pela ANJ
‘A Associação Nacional de Jornais lamenta e condena a forma como o governador do Paraná, Roberto Requião, se referiu a jornalistas e empresas de comunicação em entrevista coletiva após sua reeleição. O governador foi grosseiro, desrespeitoso e procurou criar um clima de hostilidade contra quem exerce de forma legítima seu direito de informar a opinião pública.
É lamentável que um governador de Estado, a quem cabe a responsabilidade de administrar os interesses de toda a coletividade, se porte com tamanha beligerância e desatino. Como homem público, deveria zelar pelo livre exercício do jornalismo, pressuposto básico da democracia.
A sociedade e seu direito de ser informada constituem valor permanente, que o governador Roberto Requião parece desconsiderar. Convicta de que os meios de comunicação do Paraná e do Brasil não se constrangerão diante da truculência do governador, a ANJ reafirma que a liberdade de imprensa é um pressuposto da sociedade democrática. Por isso precisa ser respeitada e defendida por todos.
Nelson P. Sirotsky, Presidente da Associação Nacional de Jornais’
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O Estado de S. Paulo
Quinta-feira, 02 de novembro de 2006
Demétrio Magnoli
A milícia do poderoso ministro
O presidente ao qual serve o ministro Tarso Genro admira a ditadura cubana, que pune a crítica com a prisão. Tilden Santiago, o embaixador em Havana designado pelo governo de Genro, ecoou as justificativas oficiais para o fuzilamento sumário de dissidentes. O partido de Genro abriga no seu site artigos que clamam pelo ‘controle social da mídia’. O governo Lula patrocinou um ensaio desse controle por meio do projeto do Conselho Federal de Jornalismo. Desde aquele fracasso, um derrame de publicidade estatal engorda as receitas das revistas que renunciaram ao jornalismo para se dedicarem a incensar o governo.
Um sonho dourado é criminalizar a opinião divergente. O ministro Genro iniciou processo contra este articulista alegando enxergar crimes contra a sua honra numa coluna que assinei na Folha de S.Paulo em abril de 2005. O texto aborda a classificação racial dos estudantes imposta pelo MEC às escolas brasileiras quando Genro chefiava o ministério. É uma crítica política e de idéias, dirigida a um ato de autoridade pública (confira em http://www.clubemundo.com.br/).
Todos têm direito de recorrer à Justiça. Mas o que singulariza esse processo, além da sua patente futilidade jurídica, é o fato de que o poderoso ministro se serve do cargo para encarregar a Advocacia Geral da União da defesa de um interesse político particular. O expediente é uma aula inteira sobre uma certa concepção do Estado e da sociedade. O ministro não aposta um tostão do próprio bolso na empreitada, cuja finalidade se circunscreve à intimidação. Eu, você, nós pagamos os custos da arrogância de Genro.
Injúria é ofender a dignidade, como quando Lula qualifica seus ‘meninos’ de ‘aloprados’. Difamação é imputar fato ofensivo à reputação e calúnia é imputar falsamente fato definido como crime. Comparar Geraldo Alckmin a Augusto Pinochet, símbolo do terror de Estado, como fez Genro (sim, ele mesmo!), além de uma injúria, equivale a saracotear perto da fronteira da difamação e da calúnia. O ministro, bacharel em Direito, não pode alegar ignorância do sentido dessas figuras jurídicas quando mobiliza, contra a opinião divergente, o que enxerga como uma milícia privada de advogados.
Os críticos dos projetos de leis raciais somos descritos como ideólogos da ‘elite branca’, uma difamação, por representantes de ONGs que colaboram com a Secretaria da Igualdade Racial. Porém nunca qualificamos os defensores desses projetos como racistas, não por cordialidade ou temor, mas porque compreendemos que a divergência reflete visões inconciliáveis sobre o contrato social, não um ‘conflito de raças’. Nós dizemos que a restauração do conceito anacrônico de raça para a produção de identidades raciais oficiais colide com o princípio da cidadania, desmancha o sonho de igualdade e, inadvertidamente, irriga a árvore de onde pendem os frutos venenosos do ódio racial. Eis o sentido da ‘pedagogia racial’ introduzida nas escolas pelo ministro que processa.
O texto que se tornou alvo da fúria subsidiada de Genro é apenas um pretexto. O deputado petista Paulo Delgado criticou seu partido por ‘cuspir na rotativa em que comemos’, lembrando que sem a liberdade de imprensa o PT nunca alcançaria o poder. Ele lamentou o curso seguido hoje pelo partido, que sistematicamente apresenta a imprensa como porta-voz das ‘elites’ em confronto com a ‘vontade do povo’ (isto é, a do próprio PT). Seria preciso acrescentar que, sob o lulismo, o partido de Genro tece os fios de uma doutrina hostil à liberdade de expressão. A pedagogia do ‘controle social da mídia’, elaborada pelo núcleo dirigente e pelos intelectuais a serviço da causa, se difunde na parcela da opinião pública que ouve o partido, minando os valores em torno dos quais a Nação se uniu para superar a ditadura militar. Esse é o fenômeno relevante, do qual o processo do ministro não passa de expressão casual.
Sob o governo Lula, montou-se uma ‘quadrilha’ (atenção, Genro: isto é uma citação) para comprar a consciência de parlamentares e subverter o equilíbrio de Poderes. No Ministério da Fazenda, organizou-se um crime de Estado, com a finalidade de chantagear um cidadão sem posses, que se apresentava como testemunha numa CPI. O comando de campanha do presidente se articulou com criminosos na fabricação do dossiê destinado a lançar lama sobre um candidato oposicionista. A hostilidade à imprensa não é um traço superficial desse governo, mas uma necessidade estratégica.
É a ela que Genro prestava serviço quando, há um ano, como presidente do PT, elaborou a resolução do partido que, a pretexto de reconhecer os ‘desvios em nosso meio’, abria fogo na direção dos veículos que reportavam a delinqüência no Estado e na máquina governamental. Aquele documento bradava contra o ‘festival denuncista’, a ‘postura fascista’ dos meios de comunicação e o ‘golpismo midiático’. Quem escreve isso fecharia jornais, se pudesse.
Genro tem história. Ele reclamou o impeachment de FHC, com base em vagas suspeitas. Admitiu seu ‘erro’ anos depois, oportunamente, quando o depoimento de Duda Mendonça ofereceu motivos sólidos para um pedido de impeachment contra Lula, sugestão à qual ele se opôs com indignação. Na ocasião, auge do escândalo do ‘mensalão’, Genro reconheceu a importância do trabalho da imprensa, afirmou que não era capaz de encontrar nenhum motivo para que alguém votasse no PT e prometeu engajar-se na ‘refundação’ do partido. Passado o furacão, elaborou a resolução do PT que condenava a imprensa, alinhou-se à direção não ‘refundada’ do partido e encontrou todas as razões que agora esgrime pela continuidade do sistema de poder vigente.
É curto o prazo de validade das convicções do poderoso ministro. Eu o convido a persistir no processo, mas, em nome da ética pública, por meio da constituição de advogado particular. [Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP; e-mail: magnoli@ajato.com.br]
Editorial
Nova ameaça à imprensa
Certamente os petistas que, na segunda feira, se colocaram como ‘leões-de-chácara’ para fazer a triagem – na base do insulto e da agressão física – dos repórteres que pretendiam entrevistar o recém-reeleito presidente Lula, quando este voltava para o Palácio da Alvorada, não passavam de um bando de boçais, daqueles que sempre envolvem altas autoridades sob o pretexto de ‘protegê-las’ e muitas vezes externam a truculência ínsita ao próprio temperamento, independentemente de qualquer comando a que tivessem obedecido, neste sentido. É claro que muitos destes poderiam julgar estarem ali defendendo suas sinecuras de ‘aspones’, visto que, fora da administração aparelhada, talvez tivessem muita dificuldade em manter o padrão do próprio emprego. De qualquer forma, o episódio poderia ser relegado à conta de boçais isolados que, ao tentarem intimidar a imprensa, o máximo que conseguem é ser ridículos.
A tentativa de intimidar os três jornalistas da revista Veja, no momento em que prestavam depoimento à Polícia Federal (PF), pareceu um claro ‘recado’ enviado àquele veículo de comunicação – e, por tabela, a todos os demais – quanto à possibilidade de testemunhas poderem ser transformadas em ‘suspeitos’, dependendo da contundência crítica das matérias publicadas e da disposição, dos jornalistas, de revelar ou não as fontes de suas informações. O desrespeito à liberdade de informar e opinar – conquista consignada em uma das constituições mais anticensórias do mundo, como a nossa, justamente por termos passado pela férrea censura da ditadura militar – ficou mais do que patente, já pelas ameaças usadas pelo interrogador (quando mandou ‘recado’ aos editores da revista), pelo tolhimento da participação da advogada dos jornalistas e até pela absurda (e ilegal) recusa em dar aos depoentes cópia do que haviam oficialmente alegado.
De qualquer forma, a vexatória atitude da PF, contra os repórteres Julia Duailibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro, por mais que comprometa a instituição policial federal, pode ser atribuída a uma também isolada boçalidade – no caso, a do delegado Moysés Eduardo Pereira. Agora, o que justifica o temor de uma ameaça à liberdade de imprensa, por parte de um governo recém-reeleito (que prometeu, aliás, melhorar seu relacionamento com os veículos de comunicação), é o pronunciamento disparatado e fascistóide de quem exerce a função de presidente do Partido dos Trabalhadores e assessor especial do presidente da República – tendo sido o coordenador final de sua campanha eleitoral.
Com efeito, Marco Aurélio Garcia – que vai se tornando a figura mais sinistra do staff presidencial -, depois de uma suave condenação à violência praticada pelos boçais da porta do Alvorada, aproveitou para concitar os jornalistas a fazer uma ‘auto-reflexão’ sobre ‘o papel que tiveram nesta campanha eleitoral’, pretendendo, em última instância, que os profissionais e veículos de comunicação se retratem, peçam desculpas pelas críticas que fizeram ao governo e seus ‘erros’. O atual chefe dos petistas deseja que a imprensa passe a considerar o mensalão uma pura invenção – como se o insuspeito procurador-geral da República (nomeado pelo presidente Lula) não tivesse feito constar em seu relatório, expressamente, que uma sofisticada quadrilha, integrada por membros da cúpula do governo e do PT, agia em plano federal com o objetivo de ‘garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores mediante a compra de suporte político de outros partidos’. Quem foi que ‘inventou’ isso, então?
O pior é que esse tipo de manifestação inequivocamente censória e antidemocrática não pode ser vista como caso isolado, pois há o precedente da tentativa de criação do Conselho Federal de Jornalismo do projeto da Fenaj, aprovado por Lula, há o projeto do PT de ‘democratizar os meios de comunicação’, assim como há, mais recentemente, as declarações do sempre raivoso oligarca de Sobral, Ciro Gomes, sobre a necessidade do governo de ‘incentivar’ a criação de uma ‘imprensa plural’. É claro que a imprensa é (até orgulhosamente) responsável por ter vindo à tona toda essa lama, sobre a qual Marco Aurélio Garcia queria que ela silenciasse. Mas só por má-fé poder-se-ia, no caso em pauta, confundir a origem com o canal de extravasão (da sujeira).