‘Diferentemente do que afirma o prof. Marco Antonio Villa em artigo publicado nesta página anteontem (‘A destruição de uma biblioteca’), a Biblioteca Mário de Andrade (BMA) não ‘vive o momento mais grave de sua história’ ou está ‘destruída’.
Desde o início do mandato da prefeita Marta Suplicy, o então secretário municipal de Cultura de São Paulo, Marco Aurélio Garcia, elegeu como uma de suas prioridades a reconstrução da BMA, política que continuamos a seguir. Diferentemente da sarcástica acusação irresponsável do articulista, o Programa Colégio de São Paulo não é jogada de marketing, mas política de inclusão cultural e de cidadania, tendo beneficiado até maio deste ano 29.509 pessoas, sem nenhuma restrição de escolaridade, faixa etária ou nível socioeconômico, em 213 aulas abertas, com reconhecidos docentes, para um público que tem imensa dificuldade de acesso a universidades como aquela em que o autor do artigo leciona.
Mais do que a inclusão cultural, o Programa Colégio de São Paulo faz parte de uma estratégia de longo prazo para reinserir a BMA no circuito cultural da cidade, posto que ela havia perdido juntamente com a deterioração de seus serviços, prédio e acervo. Felizmente já revertemos essa tendência, triplicando o número de usuários da biblioteca nos últimos dois anos.
Paralelamente às ações de reinserção da BMA, construiu-se também um projeto de plena revitalização- iniciada com a reforma da praça Dom José Gaspar, obra da Emurb e que faz parte do Corredor Cultural- e expansão do edifício que, como parte do Projeto Ação Centro, tornará a Mário de Andrade a biblioteca pública brasileira com melhores condições de atendimento e serviços do país.
Na conclusão desse projeto de revitalização em andamento, com financiamento da prefeitura e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a biblioteca conseguirá reunir seus acervos em um conjunto de edifícios de maneira definitiva, e não ‘emergencialmente’, como sugere o sr. Villa.
Não estamos administrando com medidas emergenciais, porque essa foi a política anterior de destruição e desprezo pelo rico acervo bibliográfico e documental da BMA, empurrando com a barriga problemas estruturais que exigiam medidas profundas e corajosas.
Apesar de o sr. Villa se dizer freqüentador da biblioteca, talvez não tenha percebido ações fundamentais de reconstrução já realizadas: reforma total do sistema hidráulico, causador das constantes inundações, ao que está se seguindo a reforma dos banheiros públicos; instalou-se o sistema telefônico e iniciou-se o programa de informatização do acervo e serviços administrativos, estando em fase de implantação o novo software de consultas do acervo que modernizará as atuais fichas de papel em toda a rede de bibliotecas da cidade; digitalização de 20 mil páginas de livros raros, tornando-os acessíveis ao leitor (www.prefeitura.sp.gov.br/mariodeandrade), processo que continua em 2004 e que duplicará esse número, além de recuperar todo o acervo e instalar uma sala multimídia.
Junto com a Secretaria Municipal de Educação, estamos implantando uma sala de apoio para uso de professores e estudantes, visando prestar serviços e formar novos leitores; acaba de ser concluída a nova iluminação da biblioteca, que aumentou a luminosidade, em todo o prédio, em 40% e economizará 30% dos gastos com eletricidade.
A essas ações somamos programas como o Concurso de Crônicas 450 Anos de São Paulo (1.500 inscritos); formação de parcerias com empresas e instituições; 110 mil pessoas em eventos do Programa Colégio de São Paulo e da Extensão Cultural nos últimos dois anos. São ações que respondem com fatos às acusações irresponsáveis desse senhor.
Infelizmente, à irresponsabilidade ele soma-se mentira e má-fé, quando acusa o ex-secretário de querer fechar a BMA, quando diz que o setor de raros foi fechado, quando diz que os pesquisadores não têm local para pesquisar, quando diz que, na gestão atual, ‘não foi comprado um único livro’. Compraram-se, até 2003, pela Secretaria Municipal de Cultura, 170.877 itens documentários para o sistema de bibliotecas públicas -mais do que o dobro da gestão Pitta. No âmbito da Secretaria Municipal de Educação, 3,5 milhões de itens documentários foram adquiridos para as novas bibliotecas dos CEUs, as salas de leitura e a rede pública.
A Mário de Andrade está voltando a ser uma ‘biblioteca de referência e visitação pública’, com ações concretas, estratégicas, e não demagógicas. O sr. Villa poderia se juntar a muitos cidadãos e entidades que estão empenhados em auxiliar o poder público municipal nessa árdua tarefa de reconstruir o patrimônio cultural da cidade, mediante a ora fundada Associação de Amigos e Patronos da BMA. Mas talvez isso seja demais para as intenções do articulista. José Castilho Marques Neto, 50, professor doutor de filosofia política na Unesp, é diretor geral da Biblioteca Mário de Andrade e presidente da Fundação Editora da Unesp.’
Marco Antonio Villa
‘A destruição de uma biblioteca’, copyright Folha de S. Paulo, 2/06/04
‘No século 7, a célebre biblioteca de Alexandria sucumbiu definitivamente após mais um incêndio. Em São Paulo, a Biblioteca Mário de Andrade não precisou de nenhum conquistador para ser destruída: bastaram os últimos dois prefeitos e a gestão de Marta Suplicy.
Hoje, a Mário de Andrade vive o momento mais grave de sua história. Abandonada pelo poder público municipal, está à mingua, sem funcionários para os serviços essenciais, raros bibliotecários -pois grande parte se aposentou nos últimos anos- e com o prédio em situação precária. A única intervenção do governo municipal foi a realização de uma pequena obra na praça Dom José Gaspar, meramente decorativa -tanto que o monumento em homenagem ao poeta simbolista Cruz e Souza, destruído desde 2002, continua jogado no jardim que cerca a praça.
Porém o prédio que reúne o acervo de mais de 300 mil livros -grande parte doada, apesar de hoje não existir nenhum setor para receber bibliotecas- continuou intocado.
A crise da biblioteca vem desde a gestão Paulo Maluf. Depois de uma grande reforma no final do governo Luiza Erundina, o prédio foi reinaugurado às pressas, no final de 1992, pouco antes da eleição municipal. Para Maluf, nunca uma biblioteca foi prioridade, muito menos a Mário de Andrade. Durante sua administração foram transferidos para lá muitos funcionários da Secretaria da Saúde que não aderiram ao PAS. De uma hora para outra, atendentes, auxiliares de enfermaria, funcionários burocráticos dos hospitais foram transferidos para um ambiente distinto: em vez dos doentes, tinham de cuidar dos livros.
Os serviços da biblioteca continuaram funcionando precariamente e não foi comprado sequer um livro para o acervo. Nos quatro anos seguintes, os problemas foram se agravando: o acervo continuava desatualizado e necessitando de conservação, os equipamentos estavam deteriorados, as vagas dos aposentados não foram preenchidas, o prédio, devido à pressa na entrega da reforma, apresentava graves problemas hidráulicos e elétricos.
Esperava-se que, na administração do PT, tudo fosse mudar. Doce ilusão. Um dos primeiros atos do então secretário da Cultura, Marco Aurélio Garcia, por incrível que pareça, foi a proposta de fechar a biblioteca, o que não ocorreu graças à mobilização dos funcionários, que realizaram um ‘abraço ao prédio’. Acreditava-se que tudo não tivesse passado de um engano do secretário, que desconhecia a riqueza do acervo da biblioteca, por não ser um consulente daquele espaço. Mas, se não havia recursos para manter a biblioteca, havia para fundar o Colégio de São Paulo, à semelhança do Colégio de França, criado por Francisco 1º, tendo como local a própria biblioteca. Puro marketing para imortalizar a prefeita como uma protetora das artes, uma Catarina 2ª tupiniquim, infelizmente sem um Diderot.
Contudo a atividade-fim da biblioteca, o atendimento dos consulentes, foi, apesar dos esforços dos funcionários, piorando a cada dia, pela absoluta falta de recursos. Em 2004, a situação chegou a um ponto intolerável. O setor de cabines, reservado aos pesquisadores, que funcionava sofregamente, foi simplesmente fechado. Logo em seguida mais uma péssima notícia: o setor de livros raros, que só abria no período da tarde, também foi fechado. Para quem não conhece, o setor de raros tem um importante acervo e, dependendo da área, é indispensável para inúmeros pesquisadores nacionais e estrangeiros.
Mas a lista de problemas continua: as máquinas leitoras de microfilmes vivem quebradas; quando funcionam não podem tirar cópias, pois falta papel ou falta toner. O acervo até hoje não foi informatizado e nem sequer existem banheiros abertos para o público em quantidade suficiente. Devido à ausência generalizada de funcionários, o horário de todos os setores que ainda funcionam deve ser reduzido, indo na contramão das políticas de bibliotecas em todo o mundo, que cada vez mais ampliam os horários de atendimento: algumas ficam abertas 24 horas. E, pior, nos três anos e meio de gestão do PT não foi comprado nem um mísero livro, o que iguala a triste marca cultural da dupla Maluf-Pitta.
Diante desse quadro, é natural que os pesquisadores tenham abandonando a biblioteca. A solução foi buscar outro local, em São Paulo ou em outro Estado -especialmente a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Todavia é inexplicável o silêncio complacente de todos aqueles que utilizaram os serviços da biblioteca e que agora assistem calados à sua destruição. Uma política emergencial de conservação e ampliação do acervo, de recebimento de doações de livros e revistas, de unificação do acervo -pois parte está em Santo Amaro-, de reposição de funcionários e pleno funcionamento de todos os setores da biblioteca antecede qualquer programa de reforma, por mais importante que seja. E mais: a Mário de Andrade tem de voltar a ser uma biblioteca de referência e de visitação pública. Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de ‘Jango, um Perfil (1945-1964)’ (editora Globo).’
Painel do Leitor, Folha de S. Paulo
‘Mário de Andrade’, in Painel do Leitor, copyright Folha de S. Paulo, 3/06/04
‘‘Pertinente a colocação do professor Marco Antonio Villa (‘A destruição de um biblioteca’, ‘Tendências/Debates’, pág. A3, 2/6) sobre a situação atual da biblioteca Mário de Andrade. A sucessão de (des)governos tem relegado a biblioteca aos ratos. A falta de investimentos em bibliotecas públicas demonstra o espírito terceiro-mundista de nossos administradores. O nobre professor acerta ao referir-se à ausência de um Diderot, mas esquece-se de apresentar a guilhotina à la Robespierre que está sobre a cabeça da pesquisa brasileira.’ Marcelo de Souza Cleto, pesquisador bolsista do CNPq (São Paulo, SP)
‘O artigo de Marco Antonio Villa sobre a biblioteca Mário de Andrade é um misto de desinformação com má-fé. Há um ano e meio, deixei a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Não tenho, assim, possibilidade de avaliar o seu funcionamento atual. Sei que a Mário de Andrade está sob a excelente direção do professor José Castilho, que conduz a sua expansão e a sua modernização –por mim iniciada. Sucessivas reportagens publicadas na imprensa, inclusive nesta Folha, sobre as mudanças em curso naquela biblioteca desnudam as mentiras do professor, cujo viés eleitoreiro não passa despercebido. É totalmente mentirosa e injuriosa a afirmação de que eu quis ‘fechar a biblioteca’ em 2001. Ao contrário, em minha gestão iniciou-se um processo sem precedentes de fortalecimento institucional da Mário de Andrade. O Colégio de São Paulo trouxe para a biblioteca milhares de pessoas que, em um passado desconhecido pelo trêfego articulista, fizeram daquela casa um ponto de encontro da cultura.’ Marco Aurélio Garcia, ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (Brasília, DF)
‘Em artigo publicado ontem, o historiador Marco Antonio Villa considera o programa de inclusão cultural Colégio de São Paulo, que ora coordeno na Mário de Andrade, como ‘puro marketing’. Iniciado há dois anos, esse espaço de reflexão e debate contou até aqui com um público de cerca de 30 mil pessoas em 215 palestras/aulas ministradas e em 34 diferentes eventos -uma média de 140 ouvintes por aula e de 880 por evento. Mas o que mais nos faz falta, justamente, é uma dose grande de ‘puro marketing’ que aumente a nossa capacidade de divulgação e de ação pró-cidadania. Quem sabe o articulista possa nos ajudar nessa necessária e bem-vinda publicidade.’ Francisco Foot Hardman, professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e coordenador do Programa Colégio de São Paulo da biblioteca Mário de Andrade (São Paulo, SP)’
SALÃO DO HUMOR
‘Charge, cartum e caricatura’, copyright Folha de S. Paulo, 2/06/04
‘O carrasco apronta um novo instrumento de tortura. Pendurado pelos braços, o preso se apavora e resolve admitir: ‘O rei estava vestido!’.
Foi com essa charge que Laerte ganhou, em 1974, o prêmio do primeiro Salão de Humor de Piracicaba. O Salão comemora três décadas de existência com uma mostra no Memorial da América Latina e com um livro, editado pela Imprensa Oficial, que reproduz os trabalhos vencedores de cada ano. Entre charges, cartuns, caricaturas (e até histórias em quadrinhos, a partir de 1990), vemos os primeiros passos de artistas hoje consagrados, como Angeli, Chico Caruso e Glauco, entre tantos outros.
Espantei-me também com o número de grandes talentos, vencedores em várias edições do evento, que, para mim pelo menos, eram desconhecidos. Entre os caricaturistas, em especial, há artistas de sobra. Atingem tamanho virtuosismo -veja-se o retrato de Chico Buarque por Dalcio Machado, reproduzido na capa do livro- que até fiquei desconfiado. Talvez não seja uma arte tão difícil quanto parece…
Digo isso por pura inveja. Caricaturas espetaculares me dão a impressão de não terem sido desenhadas por mãos humanas -e tampouco me parecem humanos os olhos de quem as fez. Ao mesmo tempo, a caricatura talvez seja um dos últimos lugares em que a arte acadêmica -o culto à parecença física, a exibição da habilidade técnica, a obediência a determinados ‘macetes’ escolares- ainda floresce.
Uma coisa eu estranhei, ao folhear o livro. Esperava que um retrospecto de 30 anos de charges premiadas viesse a constituir um panorama razoável dos últimos acontecimentos da história do Brasil. Mas não é bem isso o que acontece.
Sem dúvida, acompanhamos o processo de abertura. Em seus primeiros anos, o Salão de Piracicaba também foi um instrumento da redemocratização, e é fácil notar o quanto o humor daquelas charges com militares e prisões se alimentava da simples sensação de alívio que uma piada, mesmo ingênua, pode propiciar em épocas tensas como aquelas.
A partir dos anos 80, os trabalhos premiados se descolam da conjuntura política. Mesmo alguns temas que marcaram o cotidiano das últimas décadas, como a inflação, estão curiosamente ausentes. O movimento das diretas e o impeachment de Collor; figuras como Tancredo, Ulisses, PC Farias; os massacres de Carajás ou do Carandiru; os desmandos de Reagan e de Bush, a queda do Muro de Berlim -todas as coisas, enfim, que a charge diária nos jornais aproveita como tema não parecem ter resistido à triagem desse livro.
Os temas são, em geral, muito abstratos: repressão e censura, nos primeiros anos; mais tarde, a ecologia, a fome e o poder da televisão é que concentram, de longe, a preferência dos premiados. Mesmo assuntos igualmente atemporais, como tecnologia, sexo, religião e guerra, não aparecem com especial freqüência.
Claro, não se trata de uma amostra panorâmica do que foi publicado na imprensa ao longo destes 30 anos; a premiação num concurso anual envolve escolhas e critérios que não são da mesma natureza que a de uma pauta jornalística.
O gênero do cartum é o que mais funciona nessas ocasiões. Ao contrário da charge política, baseada nos fatos imediatos e nas crispações da conjuntura, o cartum ocupa um lugar mais clássico, abstrato, intemporal.
De sunga vermelha, um rei está nadando; vemos sua coroa e sua enorme barriga de perfil. Debaixo d’água, com máscara de mergulhador, o bobo da corte desenrola o tapete vermelho sobre o leito do rio. O cartum do belga Luc Descheemaeker venceu o Salão de 2001, como poderia ter vencido o de 1991 ou de 1981. Trata-se, na arte do cartum, de lidar com uma espécie de ironia essencial das coisas, que dispensa o tempo e o lugar.
Menos do que com a política, a graça é feita aqui com a Autoridade. Um antigo cartum de Fortuna mostrava um funcionário de joelhos, com o rosto no chão, diante da mesa de seu chefe. O chefe lhe perguntava: ‘O que o senhor procura?’; e o funcionário respondia: ‘Uma reverência’.
É nas épocas de maior repressão que a política se reveste da forma arcaica, genérica e impessoal do Poder, da Autoridade. Nesses momentos, a linguagem mais abstrata do cartum se politiza, e um Rei, um Padre, um Torturador, um Agente Secreto, um Palhaço passam a valer, em suas afrontas imemoriais, como charge atual e precisa.
São desse tipo os trabalhos selecionados nos primeiros salões de Piracicaba. O que dá margem a efeitos curiosos, aliás: numa época em que a Igreja Católica se aliava majoritariamente às lutas da oposição, padres e bispos ainda surgem como vilões em diversas obras premiadas.
Continuo sentindo falta, portanto, de um livro que contasse a história dos últimos 30 anos numa seleção de charges; as do Salão de Humor só em parte cumprem esse objetivo.
Um último parágrafo. Queria ver como a caricatura entra nesse esquema. Se, comparado à charge, o cartum ruma para a abstração, substituindo o político Fulano pela imagem da Autoridade em si, é como se a caricatura fosse na direção inversa, procurando o hiper-específico, o extremo mais inconfundível de um indivíduo só. Os dentes de um, a orelha de outro conduzem a caricatura a um mundo em que toda abstração seria impossível -e no qual cada indivíduo deixa de ser exemplo de sua espécie para se tornar um bicho sem igual, fruto de uma condição biológica irreproduzível, de tão específica, de tão concreta. Mas o que vai ficando abstrato é este artigo; paro por aqui, antes de perder totalmente a graça.’
HQ / ENTREVISTA
‘De fã a sucessor do mestre dos patos’, copyright O Globo, 6/06/04
‘Ele é considerado por muitos fãs o legítimo sucessor do legendário Carl Barks – criador do universo de personagens que tornou mais rica a vida do Pato Donald, com a criação de Patópolis e de seu mais famoso habitante: o Tio Patinhas. Keno Don Rosa é americano de Kentucky nascido em 1951, cresceu fã das histórias de Barks, é engenheiro e autodidata em quadrinhos. Esta semana, ele esteve no Brasil pela primeira vez, como convidado do 6 Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco e como parte das comemorações dos 70 anos do Pato Donald.
Don Rosa impôs como condição para vir ao Brasil conhecer o Rio. Antes de vir à cidade, a passagem por Recife rendeu-lhe uma intoxicação alimentar. Nada que tirasse seu humor como pode se ver nesta entrevista que ele concedeu ao GLOBO.
– Entorpecido. Foi isso o que eu senti quando finalmente conheci Carl Barks (morto em 2000) – contou. – O que também me deixa entorpecido é ser considerado um sucessor. Nuca tive a intenção de escrever e desenhar os quadrinhos do Donald e do Tio Patinhas como um modo de vida. A única razão pela qual me tornei o mais popular escritor dos quadrinhos do Donald só pode ser porque os leitores percebem que me dedico muito mais ao trabalho do que recebo por ele, incrementando-o com detalhes nos desenhos, piadas e pesquisa. Seria o meu entusiasmo de fã?
Don Rosa iniciou sua relação com o universo Disney escrevendo e desenhando as histórias do Tio Patinhas para uma editora americana no fim dos anos 80.
– Tenho minha própria interpretação do personagem. Quando me dei conta de que iria fazer as histórias do Tio Patinhas, percebi que não poderia me divertir ou tolerar falar de um personagem que fosse apenas ganancioso – disse. – Assim, fiz dele um aventureiro, orgulhoso, que amava a adrenalina, a conquista, o empreendimento. O dinheiro faz parte de sua coleção de troféus porque ele não gasta o que ganha. Uma pessoa gananciosa quer o dinheiro para ter poder ou comprar coisas. Ele gosta somente de nadar no dinheiro, porque tem orgulho dele. Tentei formá-lo com esse espírito americano de as pessoas conquistarem as coisas com suas próprias mãos.
Ele também procurou explorar o complexo relacionamento entre Patinhas e seu sobrinho Donald.
– Patinhas é solitário. Por isso, ele briga tanto com Donald. Ele é rico mas é um prisioneiro porque tem que se preocupar com os Irmãos Metralhas e não pode relaxar como o sobrinho e nem ter uma família como a dele. Tento mostrar essa inveja que o Patinhas tem do Donald.
Foi com Patinhas que ele ganhou o prêmio Eisner, o mais importante do mundo dos quadrinhos, com a série ‘The life and times of Scrooge McDuck’, em 1995 (publicado aqui pela editora Abril como ‘A saga do Tio Patinhas’).
– Foi um trabalho que durou dois anos e meio para ser feito. Fiz uma linha do tempo de todos os eventos que Carl Barks mencionou de que o Tio Patinhas tinha participado. Foram 12 capítulos – disse, lembrando que a história do personagem começou no fim do século XIX, quando ele encontrou sua primeira moedinha.
Tanta excitação ao falar de Patinhas, Donald e companhia não escondem o fascínio que ele tem pelo universo ‘patológico’ criado por Barks:
– Mickey é o símbolo da Disney mas o Donald sempre foi mais popular que ele. Donald é mais interessante, tem personalidade e não é tão bonito e perfeito quanto o Mickey.
Atualmente, Don Rosa está produzindo uma história que reúne Donald a dois amigos: o mexicano Panchito e o brasileiríssimo Zé Carioca, inspirado no clássico desenho animado ‘Alô, amigos!’ (‘The three caballeros’), de 1944.
– Meu uso preferido do Donald pela Disney foi neste filme. Sempre quis fazer quadrinhos reunindo Donald com dois amigos do mesmo nível porque, na maior parte do tempo, os outros personagens estão sempre implicando com ele. Nesta aventura, Donald é o herói.
Quanto ao Zé Carioca, Don Rosa quer explorá-lo bastante, principalmente porque as aventuras irão se passar no Brasil.
– Gosto do personagem. Foi interessante fazer uma pesquisa sobre a cidade sem nunca ter estado aqui – disse ele, que vai levar de três a quatro meses para terminar a história.
Rosa veio ao Rio para pesquisar cenários para novas histórias
E, visitando o país, ele aproveitou para conhecer as possíveis locações para as aventuras dos três amigos.
– No Rio, conheci o Cristo Redentor e também fui ver o Pão de Açúcar, um dos lugares onde o trio vai ter suas aventuras. Quero situar a ação no Rio, mas mandá-los procurar tesouros em outros lugares. No entanto, quero evitar falar da Amazônia, porque tudo o que os americanos conhecem do Brasil são a Amazônia e o Rio. Além disso, a floresta amazônica é muito difícil de desenhar.
Nas aventuras, ele pretende dar uma nova roupagem ao papagaio.
– Em minhas pesquisas, vi que ele é considerado um adorável vagabundo e trapaceiro – disse. – Mas não poderia usá-lo dessa forma, então minha opção foi usar as bases do filme de 1944. Como o filme é uma comédia musical, decidi que o Zé Carioca será uma espécie de artista de boate.
Ele lamenta que os quadrinhos da Disney tenham perdido a força entre os leitores.
– Hoje, nos Estados Unidos, crianças compram gibis com violência e nem consideram comprar os quadrinhos Disney, além de consumirem muita TV. Os quadrinhos não são mais uma mídia de massa como antes.’