Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

José Paulo Lanyi

‘Sempre privilegiei a biografia. A história de qualquer pessoa é a história de todas. Lembra-nos sempre que, como as estrelas, estamos fadados a nascer, a brilhar (cada qual a seu modo) e a morrer, no eterno atrito entre a expansão e a retração. A biografia é sempre um conjunto de experiências. Nunca saio de uma leitura dessas do mesmo jeito que entrei. Podemos ser várias pessoas em uma só vida. Nem sempre melhores, nem sempre piores.

Peguei para ler a biografia do Osmar Santos, escrita pelo seu amigo e ex-sócio Paulo Mattiussi (foto ao lado). Jornalista experiente (ex-Folha, Estadão, JB, Excelsior, TV Globo, Bandeirantes, Record, CNT e por aí vai), Mattiussi conseguiu fugir da apologia fácil e publicou uma obra honesta.

Nela, Osmar é um mito, sim. Mais para os deuses impulsivos do Olimpo que para os santos imaculados e distantes. Em 22 de dezembro de 1994, um motorista bêbado poderia ter destruído ‘a vida de um ídolo, a vida de toda uma família’, como está no livro. Só o conseguiu parcialmente. Pois, muito acima do ídolo, do mito ou da lenda pairava um ser absolutamente titânico em sua dimensão humana.

Osmar Santos, outrora prodígio da fala altissonante, hoje um silencioso pintor impressionista, legou-me a inspiração de seu exemplo – que é o de muitos anônimos heróicos, maiores do que a fama e suas ilusões.

A obra que eu li é elogiável, pois, a partir de um exemplo público, imprime na alma toda aquela dimensão catártica das tragédias gregas. Mostra que o indivíduo, célebre ou obscuro, tem tudo para ser o herói de si mesmo. Desde que se permita vergar-se, diante da ventania, e evitar que se quebre.

Emparedado pelo destino, Osmar Santos arrancou-se de seu sofrimento e legou-nos a reflexão sobre as nossas próprias e várias fraquezas. Muitos deixaram de procurá-lo. ‘O ser humano se relaciona trocando informações. Como se cada informação fosse uma moeda. O Osmar não tem mais essa moeda para trocar’. Ainda hoje, no entanto, o Pai da Matéria é aplaudido e respeitado por onde quer que ande, quase dez anos afastado das transmissões.

O livro de Mattiussi mostra por que Osmar chegou tão longe em suas conquistas. Por trás do talento, havia garra, força e sabedoria. É a história de um homem famoso, como poderia ser a de milhares de pessoas pobres e incógnitas deste País.

Em Ribeirão Preto (SP), o lançamento de ‘Osmar Santos-O Milagre da Vida’ (Editora Sapienza) será nesta quarta-feira (23), às 11h, em uma feira de livros da cidade (o autor não deu mais detalhes). Em São Paulo, será no dia 29/06, às 19h30, no restaurante Nolita (Rua Jerônimo da Veiga, 248- Jardim Europa). O preço nas livrarias varia entre R$31 e R$38.

Trechos:

E, quando o carro passou pela frente do estádio, Osmar deu o primeiro sinal de que, mesmo de volta à vida, tinha consciência do quanto a sua vida tinha mudado. Oscar Ulisses descreve a cena: ‘Ele virou o rosto para o lado como se quisesse encarar o Pacaembu de frente. A mão esquerda se levantou com dificuldade e apontou para a porta do estádio. Ele tentou falar alguma coisa, mas não conseguiu dizer nada. Ficou triste de repente e abaixou a cabeça, e, em silêncio, começou a chorar’.

******

‘Ele não pára. Tem sempre alguma coisa para fazer, alguém para visitar, um filme para assistir. Conhece todas as galerias de arte de São Paulo. Vai para o Guarujá como quem vai à padaria da esquina de casa. Ele consegue se trocar com rapidez e incrível mobilidade dentro do carro. Não se aperta nunca’, conta esse mulato de fala mansa, que começou a trabalhar com Osmar por falta de outra opção de emprego e ganhou calos nas duas mãos de tanto dirigir.

O motorista de Osmar é João Carlos Pereira dos Santos, ‘casado, três filhos, paciente como Jó’.

******

Henrique Guilherme, que trabalhou durante quase onze anos na equipe de esportes da Globo, recorre à ironia para definir não o companheiro de transmissões, mas o Osmar ocupando o cargo de chefia. ‘Quando me perguntam se ele era um bom chefe, eu respondo: se era um bom chefe, não sei… Mas foi o irmão que todo mundo queria ter’. O que Henrique quer dizer é que, na opinião dele, Osmar se preocupou muito mais em garantir a carreira dos irmãos Oscar e Odinei do que com o futuro dos outros profissionais que faziam parte da sua equipe. Há quem discorde (…). Como o locutor Paulo Soares. Ele trabalhou com Osmar na rádio e TV Record (de 1988 a 1991) e na Globo (de 1991 até 1998). ‘Ele lutava, sim, por melhores salários, transporte seguro e hospedagem decente para todos. Fui testemunha desse comportamento em várias oportunidades’.

******

Naquele domingo de 1974, não foi diferente. Osmar perguntou e Milton [Neves] não tinha uma notícia internacional para dar. (…) Milton não se apertou e liberou a criatividade: ‘O destaque, Osmar, é a decisão do título sul-americano de boxe, peso leve, entre o chileno Juan Contreras e o argentino Ortiz Pena’. Osmar fez o que sempre fazia: ‘Quem é o favorito, [Claudio] Carsughi?’. E Carsughi não decepcionou. ‘O Contreras, meu caro Osmar, tem uma esquerda mortal. Mas o Ortiz é mais experiente, tem mais nocautes em seu cartel, por isso é o favorito’. Carsughi nunca admitiu a sua farsa.

Do capítulo ‘Inimigo dos Comentaristas’.

Link SP- O Osmar é uma homem maior do que o seu mito, como se o ‘Edson’ fosse maior do que o Pelé?

Paulo Mattiussi- Concordo, o mito está na lembrança das pessoas e o homem sobrevive com uma outra forma de expressão de arte que é a pintura, superando os limites físicos que vão desde o problema da fala até o lado direito do corpo praticamente paralisado.

LSP- Você se consumiu emocionalmente para escrever?

PM- Totalmente, eu conheço o Osmar desde 74, até hoje a gente foi amigo, eu fui funcionário dele e fomos sócios em várias coisas. Temos uma vida muito ligada. Uma das grandes preocupações que eu tinha, por isso o livro levou mais de dois anos para ser concluído, era radiografar o Osmar mostrando o mito e as falhas como gente, ser humano.

Foi por isso que demorou. Fiz mais de oitenta entrevistas para tentar montar um perfil com as pessoas que participaram da vida dele.

LSP- As fraquezas foram vindo com os depoimentos ou você foi buscá-las?

PM- Fui buscar porque conheci o Osmar perfeitamente. Saí para confirmar algumas histórias que eu já sabia, para não ficar na postura de que sou eu que escrevo.

LSP- Antes do acidente, o Osmar era um homem contraditório? Omisso como chefe e generoso como colega?

PM- Não que fosse omisso como chefe. Existe uma diferença, todo mundo o compara como chefe ao Pedro Luiz. O Pedro Luiz tinha uma vantagem, viveu uma época em que as empresas não eram tão profissionais como hoje. Pedro Luiz tomava conta de tudo, do artístico, das transmissões, da técnica, ele administrava o dinheiro. Com o Osmar, não, as empresas é que administravam. Ele passou pela Joven Pan, uma empresa familiar em que o Tuta comandava com mão de ferro. A Globo se modernizava, foi a primeira a ter recursos humanos. Na Record, quando a gente foi sócio, as pessoas que trabalhavam conosco tiveram aumento todo mês de acordo com a inflação.O Osmar foi pego na modernização das empresas. Como profissional não tem o que falar. O próprio Washington Olivetto diz no livro que a história do rádio existe antes e depois do Osmar.

LSP- O Osmar foi informado de cada detalhe do livro? Já consegue se lembrar desses fatos? Como é que ele lida com isso?

PM- O primeiro cara a escrever um livro foi o Audálio Dantas. O Osmar não se entusiasmou muito com o projeto, o Audálio também não. Dois anos depois eu propus e ele concordou, participou ativamente, contava algumas histórias, tem uma memória privilegiada. O Osmar teve influência no livro, pediu para eu tirar algumas coisas. Ele tem consciência do que está no livro e tem consciência da vida dele.’



CRÍTICA LITERÁRIA
Manuel da Costa Pinto

‘Os lugares da crítica’, copyright Folha de S. Paulo, 26/06/04

‘Existe literatura sem crítica literária? Todo artefato poético encerra uma teoria da literatura? ‘A Leitura e Seus Lugares’, escrito por Júlio Pimentel Pinto, traz à tona novamente essa pergunta, que ficou submersa depois do refluxo das grandes correntes interpretativas do século 20, do ‘boom’ da teoria literária, cujo ponto culminante (e terminal) foram o estruturalismo e o desconstrucionismo.

Bem entendido, o livro de Pimentel Pinto não tem a ambição de lançar conceitos revolucionários ou de reivindicar para a teoria literária um papel transformador -já que a própria literatura, nestes tempos pós-utópicos, perdeu qualquer poder de intervenção sobre a realidade.

Sua pretensão é aparentemente mais modesta: ‘A Leitura e Seus Lugares’ reúne alguns ensaios sobre clássicos modernos como Proust, Jorge Luis Borges e Bioy Casares, sobre um autor contemporâneo de romances policiais (o italiano Andrea Camilleri), além de textos sobre o imaginário latino-americano ou a interpretação textual (a noção de ‘obra aberta’, de Umberto Eco, os ‘protocolos de leitura’ propostos por Robert Scholes).

À primeira vista, portanto, o livro parece se limitar (o que já não seria pouco) à reflexão erudita e consistente sobre temas caros a esse historiador e crítico literário que escreveu um importante livro sobre o autor de ‘O Aleph’ (‘Uma Memória do Mundo: Ficção, Memória e História em Jorge Luis Borges’).

E, no entanto, há em ‘A Leitura e Seus Lugares’ uma defesa apaixonada da teoria como desdobramento necessário do ato de ler, já que, para Pimentel Pinto, toda leitura é interpretação, assim como toda ‘escritura’ (no sentido que lhe dava Barthes, ou seja, de reinvenção do ato de escrever) nasce da leitura.

O livro polemiza, desde o primeiro ensaio (‘Crítica e Renovação: O Exemplo e o Espelho de Botticelli’), com um tipo de crítica que, ao cair no ‘culto novolátrico’, se torna uma pálida reprodução daquela ‘tradição de rupturas’ de que falava Octavio Paz a propósito do espírito moderno, transformando o artefato literário num produto de consumo, reposto semanalmente na prateleira da indústria cultural.

Mais do que apontar a rarefação da crítica na academia e nos jornais, porém, Pimentel Pinto mostra como essa indigência se internalizou em teorias (se é que ainda as podemos chamar assim) que pacificam a leitura, coagulando seu sentido.

Ao discutir (e defender) a noção de ‘obra aberta’ de Eco, escreve Pimentel Pinto: ‘O grande mal em questão é o da fixação do que é móvel. Ou seja, quando se patenteia uma dada obra, paralisando-a na visão que algum crítico teve dela, abre-se mão da possibilidade de circulá-la como leitor e de ‘reescrevê-la’ na memória. Fecha-se a obra e ‘objetiva-se’ o que foi subjetividade crítica’.

Obviamente, uma das coisas que o autor tem em mente aqui é o debate sobre o caráter supostamente redutor dos estudos culturais (que aplicam categorias políticas e históricas à literatura), tema que aparece explicitamente no ensaio ‘Lugares e Memórias dos Livros: Bibliotecas Reais e Imaginárias’, em que Pimentel Pinto discute a rejeição dos estudos culturais por Harold Bloom (‘O Cânone Ocidental’).

A imagem da biblioteca como lugar de memória e esquecimento, e da leitura como processo de seleção e perda de conteúdos (ao fixarmos um repertório de livros e autores, estamos ou deveríamos estar conscientes dos inúmeros outros repertórios que deixamos de constituir), percorre ‘A Leitura e Seus Lugares’ como oscilação entre o real e o imaginário que é a marca da modernidade.

‘A história, agora transmutada em historiografia, precisa também ser pensada como experiência de linguagem’, escreve em ‘A História nas Margens’. Ao mesmo tempo, porém, ele evita cuidadosamente o reducionismo de transformar tudo em ‘textualidade’, mostrando o papel incontornável que os processos de colonização e urbanização tiveram sobre as ‘metáforas de pluralidade da identidade latino-americana’ ou sobre os movimentos de vanguarda (‘Rua de Borges e Seus Contemporâneos’). (A Leitura e Seus Lugares, Autor: Júlio Pimentel Pinto, Editora: Estação Liberdade, Quanto: R$ 27 (184 págs.))’



BIBLIOTECA EM DEBATE
José Castilho Marques Neto

‘Em respeito ao leitor e à biblioteca’, copyright Folha de S. Paulo, 24/06/04

‘Volto a este notável espaço da Folha para rebater as críticas de Marco Antonio Villa (‘O futuro de uma biblioteca’, pág. A3, 9/6). Mas, ao contrário do articulista, não farei acusações pessoais, como não o fiz em minha primeira resposta. Como naquele artigo, reafirmo que as acusações desse senhor são irresponsáveis, por veicularem ‘informações’ que não refletem a verdade sobre o estado atual da Biblioteca Mário de Andrade.

A falsidade das afirmações de que a biblioteca está ‘destruída’ ou ‘à míngua’ foi demonstrada por matéria jornalística desta Folha, publicada em 7/6, na pág. E4 (‘Reforma deve resgatar Mário de Andrade’), que afirma que ‘não é correta a idéia de que a BMA está em colapso. O repórter da Folha a visitou na sexta à tarde, anonimamente. Havia 34 pessoas na sala de leitura. Xerox e leitoras de microfilmes funcionavam sem problemas. Os banheiros estavam limpos, e funcionavam só dois dos quatro computadores conectados à internet (…) A seção dos 47 mil livros e obras raras permanece aberta’.

Fazendo ouvidos moucos à minha resposta e à matéria, o articulista volta a atacar, com novas afirmações inacuradas, pondo sob suspeição os números apresentados de aumento da freqüência e insinuando que a direção da biblioteca foi omissa em relação ao furto de livros do Museu Nacional. Além de as estatísticas estarem à disposição, foram identificados como do acervo da BMA três volumes da revista ‘Moto Revue’ que não pertenciam ao setor de raros e que estavam desaparecidos desde os idos de 1980. Contraditoriamente, o articulista cobra menos rigor à entrada no setor de obras raras e critica o ‘acesso restringido’! Ora, além de ser norma básica internacional para a correta qualificação de pesquisadores, a triagem serve também para cumprir regras de proteção.

Dois parâmetros de ação estratégica, que denotam a política adotada nos últimos anos, contrastam com as propostas elementares apresentadas pelo autor do artigo.

Em primeiro lugar, o estado caótico em que estava a biblioteca demandou decisões que nos colocavam, enquanto administradores públicos, numa encruzilhada entre uma ação demagógica e de curto prazo (como comprar alguns livros e pintar o edifício) e outra, de interesse público, correta tecnicamente, mas sem grandes efeitos mediáticos. Escolhemos a segunda via e o projeto de recuperação previu ações emergenciais (como a instalação de telefonia), ações de médio prazo (como reforma hidráulica, informatização, digitalização) e de longo prazo, materializada no projeto Ação Centro/Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), envolvendo reforma e ampliação predial e investimento em acervos e serviços.

As ações de curto e médio prazo ou já estão concluídas ou se encontram em fase de conclusão neste 2004. O projeto BID, só formalizado neste mês, estará todo equacionado para que a diretoria da BMA o execute na próxima gestão municipal. Detalhes dessas ações seriam repetitivos, pois os expus na resposta anterior, mas é importante que o leitor saiba que há um projeto sério em andamento, no qual o caos acumulado ainda convive com as melhorias já realizadas.

Em segundo, somente na mal-intencionada visão do articulista se poderia supor o programa Colégio de São Paulo como ‘atividade-fim da BMA’. Trata-se de programa especial, nos moldes de uma universidade aberta, que contribui para recuperar antiga tradição, tornando seu auditório um lugar dinâmico de transmissão e discussão de saberes. Uma enquete sumária com os milhares de beneficiários diretos mostraria a quem quisesse ver a enorme função social do programa e sua eficácia na revitalização da Mário de Andrade como um dos eixos desse centro paulistano renascido.

A BMA não pode ser concebida restritamente como templo para iniciados. Somente como espaço público vital na metrópole é que sua preciosa coleção bibliográfica voltará a ser devidamente reconhecida pelos cidadãos.

O ataque violento do articulista à intelectualidade brasileira guarda laivos de preconceito autoritário, esse sim comum em ditaduras à direita e à esquerda. O amplo espectro ideológico, temático, acadêmico dos mais de 200 intelectuais que já proferiram aulas no Colégio de São Paulo -Delfim Netto, Antonio Negri, Rubens Ricupero, Marilena Chaui- demonstra o facciosismo, que se destila no destempero verbal de seu texto, acusando-me de acúmulo de empregos. Como servidor público, é meu dever informar que estou legalmente afastado da docência na Unesp e exerço o cargo de diretor geral da BMA e da Editora Unesp sem acúmulo de vencimentos. Pouparei o leitor da resposta ao ataque pueril de que sou um Vishinski e outras barbaridades iguais.

A atual gestão da BMA não forjou base política nem benesses, mas tem ampliado a inclusão cultural e os benefícios da vida inteligente para milhares de cidadãos, de moradores em situação de rua a doutores, de camelôs a estudantes universitários, de adolescentes à terceira idade. São esses os verdadeiros donos da Mário de Andrade! José Castilho Marques Neto, 50, professor doutor de filosofia política na Unesp, é diretor geral da Biblioteca Mário de Andrade e presidente da Fundação Editora da Unesp.’