Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jotabê Medeiros

‘O Comitê da Sociedade Civil do Conselho Superior do Cinema fez esta semana a terceira reunião em Brasília para debater o anteprojeto que transforma a Agência Nacional do Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). O encontro, dividido entre quarta e quinta-feira (dias 6 e 7), em Brasília, deteve-se especialmente na questão da organização das atividades cinematográficas e audiovisuais.

Segundo o secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Senna, uma das conseqüências da última reunião do Conselho Superior de Cinema é que os conselheiros estudam a possibilidade de criar um fundo especial para o desenvolvimento da infra-estrutura técnica do cinema e da televisão.

A proposta de criação do fundo foi da conselheira Edina Fuji, da Quanta, empresa que fornece material para filmagens. Há uma grande defasagem tecnológica no cinema, assim como um sucateamento da TV pública, ponderou Gabriel Priolli – o caso da TV Cultura pode ser um dos exemplos de emissora que poderá ser beneficiada pelo fundo. A votação pela criação do fundo foi unânime, mas os conselheiros ainda não sabem qual será a fonte de receita para ele.

O secretário destacou que a necessidade maior, no entanto, é na área cinematográfica, devido à paralisação da produção entre 1990 e 1995. ‘Quando as atividades foram retomadas, a infra-estrutura disponível no Brasil para os produtores estava bastante defasada, e essa defasagem não foi superada até agora’, disse.

Orlando Senna informou ainda que os conselheiros pretendem fazer uma ‘re-análise’ sobre a abrangência da Ancinav, ou seja, de sua área de atuação. ‘Foi um tema pré-analisado, mas os conselheiros preferiram deixar todo o capítulo das telecomunicações para as próximas reuniões’, informou.

‘Como é uma questão muito ampla, em que vários interesses das distintas áreas da atividade podem estar discordantes, esse ponto teve um tempo maior de discussão.’

O anteprojeto do governo prevê a regulação das atividades audiovisuais de empresas de telecomunicações e radiodifusão. A resistência a esse ponto é base de um dos principais projetos alternativos apresentados ao governo, elaborado por um grupo liderado pelo produtor Luiz Carlos Barreto, o Barretão, do Rio de Janeiro – integram ainda o grupo Aníbal Massaini, Paulo Thiago, Roberto Farias, Zelito Viana e os exibidores Valmir Fernandes e Rodrigo Saturnino Braga, entre outros.

No projeto alternativo de Barretão, toda a possibilidade de regulação de telecomunicações está extirpada do texto. O grupo propõe ainda a exclusão da taxação de ingressos de cinema e de fitas de vídeo, a supressão da cobrança de 4% da publicidade das TVs. Extingue propostas como a regionalização da produção, reduz as multas (a maior passa a ser de R$ 2 milhões, ante R$ 25 milhões do projeto oficial), impede a agência de pedir documentos às empresas e fixa a Condecine para cópias de filmes (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica) em R$ 3 mil, contra a taxação progressiva do governo, que chegava ao teto de R$ 600 mil.

Orlando Senna informou que o projeto alternativo de Barretão ‘é uma das 400 sugestões’ que o governo recebeu no período de debate público aberto entre 11 de agosto e 1.º de outubro. Disse que todas as propostas serão encaminhadas em uma versão compacta ao conselho nos próximos dias.

Nos próximos dias 19, 20 e 21, haverá intensiva rodada de discussões com o grupo de conselheiros civis em Brasília. Em 8 e 9 de novembro, haverá novo debate, e, só então, será feita uma reunião plena do conselho, com os ministros de Estado participando – José Dirceu (chefe da Casa Civil); Márcio Thomaz Bastos (Justiça); Celso Amorim (Relações Exteriores); Antonio Palocci (Fazenda); Gilberto Gil (Cultura); Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior); Eunício Oliveira (Comunicações); Tarso Genro (Educação); Luiz Gushiken (Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República). Em seguida, os dois grupos farão plenárias, para finalizar o anteprojeto.’



Marcelo Rubens Paiva

‘O SuperMinc’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/10/04

‘É uma maritaca, um papagaio, um Fokker 100?! Não. É o SuperMinc, com sua capa brilhante cruzando os céus do Brasil, que saberá organizar a indústria do audiovisual como ninguém, encontrou respostas para todos os problemas, protegerá e incentivará o conteúdo nacional, seja lá qual for, e expulsará os ianques e débeis com suas idéias contaminadas e alheias à nossa cultura, seja lá qual for, idéias que contêm mensagens subliminares para nos dominar e roubar nossas riquezas, seja lá quais forem, monstros que irão nos hipnotizar e praticar uma lavagem cerebral para nos escravizar, seres abomináveis e de uma crueldade desumana, que serão combatidos por nosso herói, o SuperMinC, mais forte do que um trem, mais veloz do que uma bala, que virá para nos salvar, e se fará justiça, viva! A nossa identidade está salva, porque temos o SuperMinc sempre alerta zelando por nós. Três vivas ao nosso herói!

Entram os comerciais, que o anteprojeto do SuperMinc quer taxá-los em 4%.

Por que 4% e não 5% e não 3,75%? Há estudos técnicos preliminares, dados e estatísticas que justifiquem tal número, baseados em análises concretas? Ou 4 foi um número assim, arrancado da cartola, numa reunião em Brasília?

E as emissoras de TV estão reclamando, aqueles burgueses! Serão 4% a menos no faturamento. Como reclamam esses burgueses… Mas o SuperMinc informa. A contribuição será paga pelos anunciantes e não pelas emissoras. Espere! Lei do mercado: os anunciantes, que são mais fortes na cadeia produtiva, não irão aumentar seus produtos 4%, para deixar o prejuízo para a parte fraca da cadeia, as emissoras?

Há gente do MinC que acha que quem é contra o anteprojeto que transforma a Ancine em Ancinav não o leu direito. Acha que produtores, diretores, roteiristas, emissoras de TV, empresários do ramo, empresas há décadas no mercado, atores, departamentos jurídicos, donos de redes de cinemas, de shoppings e distribuidoras estão de mau humor e o criticam por birra, na base ‘não li, não gostei’, acha que um mercado que gera milhares de empregos, 300 milhões de reais por ano, movimenta uma indústria de mais de 100 anos, que mudou o mundo, é desinformado e desinteressado. Mas o que o Minc propõe é tirar recursos da própria atividade, taxando filmes e salas (ingressos), e não trazer dinheiro novo. É como alimentar um leão com o seu próprio rabo.

Informação. O cinema tem um marco regularizador, a MP 2228. Esse mecanismo, que pode ser aprimorado, foi capaz de alavancar a produção nacional, dar chance a cem novos cineastas estrearem seus filmes nos últimos qautro anos e alimentar a tão utópica parceria TV&Cinema (depois da Globo Filmes, vem aí a Band Filmes e a SBT Filmes). Até dezembro deste ano, 47 filmes nacionais vão ser lançados, contra 30 em 2003, ano que representou um crescimento de 20%.

Qual outro setor da economia cresceu tanto assim em um ano?

Lembra-se quando as salas de cinema viravam igrejas evangélicas? O panorama se inverteu. Hoje, são 1.800 salas no Brasil, contra 300 no México.

Destaca-se um crescimento de salas de cinema no interior. Mas com 10% de imposto sobre o preço do ingresso, número redondo proposto pelo MinC, haverá um impacto. Acho que o SuperMinc se enganou e trocou o inimigo.

O MinC informa: seu anteprojeto não é intervencionista ou autoritário. Diz o Artigo 12: ‘Cabe ao Ministério da Cultura aprovar e controlar a execução de projetos de co-produção, produção, distribuição, comercialização, exibição e infra-estrutura realizados com recursos públicos e incentivos fiscais.’ Diz o Artigo 20: Cabe à Ancinav ‘resolver quanto à celebração, alteração ou extinção de seus contratos, bem como quanto à nomeação, exoneração ou demissão de servidores…’ A Ancinav será administrada por um conselho de cinco diretores que, segundo o Artigo 22, poderá fazer reuniões secretas quando o assunto e a decisão ‘puder colocar em risco a segurança do País ou violar segredo protegido ou a intimidade de alguém’.

O problema não é só o que o atual MinC pode fazer, mas o que os futuros MinCs podem fazer, se caírem em mãos erradas. Porque servidores vão, mas leis ficam.’



Carlos Eduardo Zanatta e Samuel Possebon

‘‘O projeto é da sociedade’’, copyright Tela Viva, 30/09/04

‘O ministro Gilberto Gil sai em defesa do projeto da Ancinav, diz que continuará tentando viabilizá-lo e que a proposta está colocada para ser discutida

A proposta de criação de uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) veio a público este mês e deve permanecer em discussão pelo menos até o início de outubro. Nesse período, o governo foi chamado de stalinista, autoritário, xenófobo, intervencionista e mais uma lista de adjetivos. O Ministério da Cultura logo se apressou em tirar do texto do projeto qualquer frase que pudesse dar esse entendimento, mas manteve a estrutura e a concepção original: criar um conjunto de regras comuns para cinema, televisão, home-vídeo, e qualquer outra forma de exploração da atividade audiovisual, inclusive pelos serviços de telecomunicações. Na história recente do Brasil, é a primeira vez que abertamente o governo defende essa proposta. Até agora recuou pouco, e em temas superficiais. E, como mostra a entrevista a seguir, concedida a TELA VIVA em pleno 7 de setembro em Brasília, não deve haver recuo maior tão cedo. A proposta vai ao Congresso Nacional, diz o ministro Gilberto Gil, onde se tornará lei.

Gil entende que a convergência de tecnologias e serviços e o desenvolvimento de novas formas de exploração do audiovisual, aliados à importância econômica do setor, são razões suficientes para que haja uma regulação mais ampla e uma agência específica. Entende que o papel de um árbitro é essencial nesse momento, pois há uma ‘demanda social’ por isso. Confira a seguir a entrevista exclusiva com Gilberto Gil.

Tela Viva – O senhor está mais aliviado com a forma com que o projeto da Ancinav está sendo discutido agora?

Gilberto Gil – Não estamos mais aliviados, estamos tranqüilos, continuando nosso trabalho…

O MinC parecia incomodado com o teor das críticas que se centraram em aspectos ditos cerceadores da liberdade…

É isso. Estamos agora menos atarefados com a defesa dos ataques, que na verdade diminuíram, porque a munição dos que nos atacam, com todos aqueles adjetivos, diminui. Agora a discussão está chegando a um leito mais substantivo. As pessoas começaram a ler o projeto e entendê-lo. Ainda esta semana houve uma discussão com o setor de televisão e pelo menos uma das emissoras entendia que uma das medidas taxava a televisão, quando na verdade, estamos taxando a publicidade veiculada na TV. Estamos numa fase em que as pessoas estão lendo o texto, cotejando-o com a compreensão comum sobre estes problemas. Eu tenho dito que a Ancinav não é uma proposta do governo. É uma proposta de governo interpretando uma demanda da sociedade.

A Ancinav não estava prevista no programa do governo Lula?

Não. Mas a idéia da Ancinav já existia quando a Ancine foi criada. Todos os agentes envolvidos na comunicação social no Brasil já vinham discutindo isso: uma agência para regular o setor inteiro, eu me lembro muito bem.

Porque a necessidade de uma agência para o audiovisual? Não poderia ser uma atribuição do MinC?

Porque este é o mecanismo que se adotou. As agências são hoje, no mundo, o modo específico de fazer a intermediação Estado-sociedade.

Mas por que razão o audiovisual merece uma agência e a música, por exemplo, não?

Isso se deve à complexidade da atividade, e do envolvimento de muitos agentes. E também na dimensão econômica do setor, que implicam relações assimétricas. Relações que se tornam ainda mais complexas com a questão da convergência dos meios. Também deve ser considerada a concentração do setor em mãos de poucas empresas. Veja bem, este setor é auto-regulado e depende dos acordos de cavalheiros existentes entre as partes e o governo e entre as partes e a sociedade, o cidadão, o consumidor. Estas relações envolvem, além das dimensões econômicas, uma dimensão de cidadania que precisa ser devidamente equacionada.

O discurso contrário da TV é o de estar prestando um serviço gratuito ao país, e por isso não haveria necessidade de regulação.

Falando como cidadão, e não como ministro ou como alguém que deve entender desta complexidade: em qualquer setor há uma demanda por regulação. As telecomunicações, por exemplo, sempre exigem um marco regulatório mais consolidado, regras estáveis, para garantir os investimentos. Os analistas econômicos estão sempre preconizando o aperfeiçoamento do marco regulatório nos vários setores da atividade econômica. Tudo isso como pressuposto para o desenvolvimento e para os investimentos, e para a estabilidade do crescimento. O audiovisual é um dos setores da economia.

Mas a TV alega que vem funcionando muito bem sem marco regulatório.

Com auto-regulamentação… é o argumento deles. Eles dizem assim: não precisa ter cota de tela porque nós da televisão temos uma regra para atender o cinema nacional, ou o modo de tratar o cinema estrangeiro. Tudo bem, eu até compreendo. Mas eu pergunto: a auto-regulação é suficiente e está dando conta? Está atendendo à emergência dos independentes, dos setores que estão surgindo agora na economia? Está atendendo ao surgimento de um alinhamento das grandes empresas, que são em cada vez menor número e assumindo o comando do setor inteiro, alinhando telefonia, cinema, televisão, sistema editorial? Um setor com tamanha dimensão pode ficar sujeito à auto-regulação, a um jogo onde não haja árbitro? Em qualquer jogo, as partes acabam entendendo que é melhor ter um árbitro, uma instância que estabeleça as regras comuns, pactuadas, entendidas por todos como necessárias e suficientes. É isso que está sendo proposto: um árbitro para garantir a observação dessas regras no tempo e no espaço e garanta, mais ainda, a possibilidade de modificação dessas regras quando isso for demandado.

O MinC está trabalhando em cima de regras aos conteúdos. Qual é a possibilidade de casar isso com a regulamentação dos meios também?

Isso vai depender exatamente do sucesso dos primeiros estágios do empreendimento. Estamos transformando uma agência que foi feita para o cinema para que ela possa abranger o audiovisual. Depois disso é que se estabelece o patamar para uma lei geral. É preciso aprontar e entregar os instrumentos à sociedade para que ela possa avançar nessa consolidação.

Durante o bombardeio inicial, tentou-se colocar o projeto como sendo de sua equipe, deixando o ministro de fora. De quem é este projeto, afinal: da sua equipe, seu, ou do governo como um todo?

Este projeto é da sociedade. Quando começamos a fazer, os cineastas foram consultados, os produtores foram consultados, as televisões foram consultadas, eu pessoalmente me reuni com empresários da televisão e da telefonia. Está sendo construído a diversas mãos. Mas há setores que fazem um pouco de jogo de cena. Cada setor quer a regulação para o outro e não a regulação para si próprio.

Por exemplo, no documento ‘Conteúdo Brasil’, entregue pela Globo e mais uma lista de signatários ao presidente Lula. Lá havia a proposta de regulação para as telecomunicações.

Pois é. É o que eu digo: ninguém inventou isso. Não há voluntarismo do governo. Para usar uma expressão que é muito conhecida do povo brasileiro, ninguém está ‘cagando regra’. Isso não é uma diarréia regulatória do governo. É a demanda do setor.

E como se explica esta reação inicial? A mídia não está pronta para discutir a própria mídia?

É um pouco isso. Eles não estão acostumados a serem discutidos, a ter seus ‘modus operandi’ trazido a público, ao confronto, ao cotejo com os ‘modus operandi’ dos outros, dos setores contíguos, faceados. Eles têm cada vez mais obrigações de relacionamento. É fruto da complexidade. São todas dificuldades nascidas da complexidade. A complexidade é o nome do jogo. Complexidade quer dizer complicação.

E se agrava com a convergência de meios…

É o que eu digo, e não precisa ser expert nisso não. O ministro não é expert nessa área, mas é interprete do jogo das especializações. Como membro do governo, o ministro tem que colocar em perspectiva a interpretação deste conjunto de interesses, com seus conflitos e com suas necessidades de pactuação. Há necessidade de criar um pacto nessa área e o governo entende isso. Qual é o pacto? É o setor que vai pactuar. De que é feito este pacto? A primeira minuta é uma tentativa de interpretação, ‘o governo entendeu assim, desta forma, a necessidade e a demanda é essa. É isso mesmo?’ Então coloca-se para a sociedade para que ela se manifeste. Este pacto será submetido ao Conselho Superior de Cinema, ao Congresso Nacional, onde haverá o debate, e daí ela vai se tornar uma lei. É assim que eu vejo o papel do governo.

O senhor entende que existe concentração na mídia brasileira?

A concentração da mídia é mundial. Não é específico do Brasil. É aquilo que o Benjamin Barber entende como ‘infotenimento’. Está tudo fundido: a informática e todos os meios digitais. As telecomunicações e todos os setores que a formam, e o entretenimento, a informação.

Convergência se confunde com concentração em alguns momentos. Esta concentração deve ser motivo de preocupação para o governo?

Se não nos preocuparmos, não há porque ser governo. O Estado é isso. É a instância arbitral das relações na sociedade, em todos os sentidos. Daí a administração da justiça, da educação, da saúde, do meio ambiente, da cultura, do comércio. Por que existe um árbitro no comércio e na indústria?

As críticas ao projeto da Ancinav talvez venham do fato de que a comunicação nunca foi objeto de regulação no Brasil, então?

É isso.

Mas também porque é complicado falar em regular coisas que envolvem a liberdade de expressão…

Mas não se trata de regular a liberdade de expressão. É regular os meios através dos quais circula o resultado desta liberdade. Até para garantir que todos tenham esta liberdade. Eu não quero entender mais do que ninguém sobre isso, eu entendo que tem aí um governo, e o papel deste governo é arbitral.

Que tipo de ‘compromisso’ o senhor imagina que a televisão poderá firmar em relação à produção independente, à produção regional, como está no projeto da Ancinav?

Eles dizem: ‘deixa que a gente se entende, o governo não precisa determinar a regra, deixa que nós estabelecemos esta regra’. E nós dizemos: então, digam publicamente qual é o resultado do entendimento para que isso se torne uma regra e fique claro publicamente. Em outros casos, o governo está entendendo que já pode superar estas regras. O Estado tem, por definição, a espada na mão. O Estado tem poder coercitivo. É o ‘monopólio da força’, como se diz nos estudos políticos. Os pactos que são feitos com a espada na mesa tendem a ter mais condições de serem respeitados e cumpridos. É por isso que o Estado está entrando, para garantir a cada parte que todos possam ir em frente. Mas o pacto é democrático.Um dos temores que se tem é que, de posse de instrumentos poderosos, possa haver algum desvio por parte do Estado. Se é um Estado democrático, não há o que temer. Por que ter medo da democracia e ficar insistindo na utopia do fundamentalismo do mercado? A história mostra que os ‘pactos sem espada’ não são suficientes. É para isso que estamos aqui. Se a gente está interpretando mal a história, que nos provem que estamos interpretando mal. A gente está vendo em todo o mundo um movimento de restaurar o papel do Estado depois da onda de fundamentalismo de mercado dos últimos anos. A dificuldade é que não pode ser uma coisa só. Se fosse só o Estado centralizador, tudo bem. Se fosse só o mercado, estaria lá o mercado. Cada um com sua bagunça ou com sua ordem. Mas as duas coisas têm que conviver, e aí se torna complexo. Como é que se faz para equilibrar dois pratos de uma balança? São duas lógicas, dois interesses. Isso tudo é muito complicado.

Interessante é observar que tudo surgiu a partir do cinema… Por que o cinema é o objeto central desta discussão?

O cinema é a imagem social. Foi o cinema que começou isso. A televisão é um cinema, de certa forma. A própria produção cinematográfica continua sendo o elemento fundador da imagem e da circulação da imagem. A imagem no telefone celular continuará sendo cinema em sua origem. As novas tecnologias não renunciam o passado. O cinema vai vir com o audiovisual sempre.

Ainda que hoje a televisão tenha um alcance muito maior que o cinema?

Sim, mas o que é novela? A novela é cinema, o princípio é o mesmo. Mas os grandes filmes continuam a ter seu lugar. Há a televisão, avassaladora, as redes internacionais, nacionais e locais importantíssimas, e tem os grandes filmes, que varrem o mundo.

No Brasil pelo menos, o cinema sempre sobreviveu com os mecanismos de subsídios, enquanto a televisão não…

Não é correto, pois a televisão tem os componentes da concessão e do uso do espectro, que também é um patrimônio público.

Por que o governo simplesmente não dá dinheiro para a indústria audiovisual em vez de tirar recursos da indústria para colocar nela própria? E os incentivos, devem ser mantidos?

O governo não dá dinheiro porque não tem. Sobre os mecanismos de renúncia, são exigência do próprio setor. O setor pede para que não se toque nos incentivos porque eles têm sido positivos.

Mesmo com toda a concentração dos incentivos fiscais em determinadas regiões e com a forte influência das equipes de marketing das empresas sobre o destino deste incentivo?

Há distorções, nada é perfeito, mas vamos manter o sistema de incentivos até o momento em que o cinema possa se sustentar sozinho e estes possam desaparecer. Muita gente argumenta que nós deveríamos transformar a renúncia fiscal em fundo. É uma questão de opção.

Os fundos sempre correm o risco de ir parar na Fazenda, sofrerem contingenciamentos…

Pode-se criar fundos blindados em lei.

Quase todos são, e não resolve nada, cai na mão do Ministério da Fazenda.

O ideal é um sistema misto, onde se tem um pouco de cada coisa. São os que melhor atendem à complexidade do problema e é o que temos hoje. É só aperfeiçoar e não perder a visão do momento, porque há momentos é que é preciso fortalecer os fundos e outros momentos em que se deve fortalecer a renúncia fiscal. O importante é não perder o dinamismo.

O modelo que veio com a Ancine parece que tem dado resultados positivos, pelos números divulgados. Por que o MinC resolveu ‘aumentar o termostato’ com a Ancinav, aumentando as taxações?

Será que vai esquentar demais mesmo? Ou já temos condições de receber uma temperatura um pouco mais alta?

O ministério avalia que o mercado está pronto para receber esta ‘temperatura mais alta’?

A gente interpreta que há esta demanda. A gente interpreta que isto é uma voz que vem de lá. O mercado está funcionando bem, mas precisa de ajustes. Por exemplo, os independentes todos que estão chegando por aí e que não têm espaço para produzir.

Vocês colocaram um personagem novo na história: as empresas de telecomunicações…

Nós não. São eles que estão se colocando. Eu participei de um encontro dessa indústria na Bahia e coloquei como é que o setor de telecomunicações deve ser articulado aos outros setores.

Vocês vêem as empresas de telecomunicações da mesma forma que vêem a TV ou os distribuidores de cinema, então?

É. Com a diferença que eles vão chegar no mercado com a individualização, com a capacidade de customização. Agora, por exemplo, está posta para os compositores a questão do ringtone, que é uma coisa que não existia há um ano. E agora vão usar os originais dos autores (truetones). Agora mesmo, a minha gravadora sugeriu que eu cedesse os direitos para que eles comercializassem as minhas músicas para celular.

O que acontece com o seu trabalho e o dos artistas em geral com a cultura digital?

Vou fazer uma banda e dar o nome de Banda Larga. ‘Gilberto Gil e sua Banda Larga’, só para ilustrar todo este universo que estas possibilidades digitais oferecem.

Só que essas possibilidades que surgem precisam ter uma viabilização econômica.

Na verdade isso foi o resultado pela demanda de recursos tecnológicos. A indústria foi criando a demanda por outros produtos. É a ideologia de ‘horizontalização’ absoluta de acesso, e por outro lado há a ideologia do lucro. Há um conflito básico entre estas duas coisas. Essa universalização não caminha na mesma velocidade do modelo de negócios. E aí aparecem as soluções de força do tipo ‘manda prender as velhinhas americanas que baixam Doris Day da Internet’, ou os garotos do CineFalcatrua no Espírito Santo, que foram lacrados. São ações meramente coercitivas que não vão resolver.

O senhor, como músico, viveu a realidade de ter seu produto copiado na Internet. Agora, como agente público, tem que encontrar uma forma de lidar com a realidade digital. Como conciliar as coisas?

A conciliação tem que ser proposta. Não importa saber se é possível. Se é possível, isso não se sabe. O possível é o que se tenta, é o que se torna. Não dá para usar o argumento da impossibilidade para não fazer. Dizer que isso é complexo demais e que é impossível atuar, pra mim não vale. Temos que equilibrar os lados da balança. E são muitos lados, não só dois. Daí a necessidade da arbitragem, e não o arbítrio. A arbitragem é o arbítrio compartilhado, pactuado, consensuado. Este é o papel do governo.

Em ‘Tempo Rei’, o senhor diz : ‘não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando’. Qual é a sua expectativa em relação ao projeto da Ancinav?

É isso mesmo. É o Tempo Rei que vai resolver. Nós somos os agentes do tempo.’



Fernando Lauterjung e Samuel Possebon

‘Contra-projeto da Ancinav chega ao MinC preservando a TV’, copyright Tela Viva, 6/10/04

‘O Ministério da Cultura recebeu centenas (mais de 400) de contribuições ao projeto que pretende criar a Ancinav, cuja consulta pública vai até o início de novembro. Uma, entretanto, tem um caráter especial. Trata-se de um contra-projeto apresentado na segunda, dia 4, e que é assinado por nomes importantes da cadeia audiovisual nacional e, mais importante ainda, teve ativa e significativa participação da Globo em sua elaboração. É esse também o projeto alternativo pedido pelo ministro Gilberto Gil ao cineasta Luiz Carlos Barreto como contribuição ao debate.

O projeto apresentado pretende, na verdade, substituir o texto proposto pelo Ministério da Cultura, já que é um texto completo, com 103 artigos e anexos.

Em essência, a proposta enxuga enormemente as atribuições da futura Ancinav, tira qualquer tipo de controle de concentração sobre a televisão, elimina a taxação das salas de cinema, locação de filmes, contratação de publicidade para TV, não inclui a necessidade de formalização de um pacto para que a produção audiovisual independente tenha espaço na televisão, torna a Ancinav um órgão fiscalizador, sem poder de regular a exploração do mercado audiovisual. As palavras da proposta levada ao MinC são medidas cuidadosamente. Expressões como combater, fortalecer, zelar ou controlar são usadas raramente. Já as palavras fomentar e estimular aparecem com freqüência.

Entre algumas das mudanças importantes deste anteprojeto proposto em relação ao projeto do Ministério da Cultura estão:

1) Ancinav será apenas um órgão fiscalizador, e mesmo assim com poder de punição bem menor (a maior multa passa a ser de R$ 2 milhões, contra R$ 25 milhões propostos pelo MinC);

2) As ações regulatórias da Ancinav só podem ficar restritas à fiscalização, não à exploração da atividade;

3) Sumiram os artigos que falavam em combate à concentração ou abuso de poder econômico na exploração da atividade audiovisual ou em zelo aos princípios constitucionais da Comunicação Social. Ou seja, não será a Ancinav a zelar pelo cumprimento das obrigações da Constituição;

4) A Ancinav não pode mais pedir documentos às empresas;

5) Todo o Título II da proposta do Ministério da Cultura, que regulava a exploração da atividade audiovisual por empresas de telecomunicações e radiodifusão foi retirado;

6) É proposta a exclusão da Condecine sobre venda de ingressos de cinema e sobre locação de home-vídeos;

7) Também não há mais a proposta de cobrar 4% da verba publicitária para TV a título de Condecine. Mas, pela proposta entregue, anunciantes que investirem em publicidade de obras audiovisuais independentes podem ter abatimento de até 4% do valor no Imposto de Renda;

8) As mudanças nas regras referentes aos direitos autorais para exibição pública afetariam só o setor de cinema, onde haveria um limite do percentual de receita a ser cobrado pela entidade arrecadadora (na proposta do MinC essa mudança pega também a televisão);

9) Não há mais a progressão nos valores da Condecine por total de cópias. Os longas pagariam, pela proposta entregue, sempre R$ 3 mil, independente do total de cópias;

10) Não há referência à questão da regionalização da produção nem obrigações de cotas de produção independente (ainda que livremente pactuadas) na TV.

Trata-se de uma proposta que atende plenamente aos interesses das emissoras de TV, já que tira delas qualquer possibilidade de controle. Não é, portanto, algo que vá muito além do que faz a Ancine hoje.

A proposta também atende aos exibidores e distribuidores, os principais afetados pela pesada taxação das cópias proposta pelo Ministério da Cultura.

Participaram da discussão do projeto pessoas físicas que têm relações com entidades setoriais. São signatários do documento, que não pretende ser a última nem a única contribuição desse grupo, Aníbal Massaini, Diler Trindade, Bruno Wainer, Jorge Peregrino, Carlos Eduardo Rodrigues, Leonardo Monteiro de Barros, Cesar Pereira da Silva, Luiz Carlos Barreto, Luiz Severiano Ribeiro, Marco Aurélio Marcondes, Paulo Thiago, Roberto Farias, Valmir Fernandes, Wilson Feitosa, Wilson Borges, Zelito Viana e Rodrigo Saturnino Braga.

A expectativa é que o Ministério da Cultura trabalhe essa proposta como mais uma das recebidas, ainda que haja nomes de peso e a participação da Globo no documento.’