Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Juca Ferreira

‘Causam espanto certos artigos e manifestações sobre a Ancinav. Não pela crítica, que é sempre bem-vinda, mas pela caricatura que tentam impor. A mistificação em torno desse projeto de regulação econômica está assumindo uma conotação bizarra. Um expediente tem sido comparar personagens históricos com o ministro Gilberto Gil ou com o presidente Lula. Entre eles, a última evocação absurda foi a de Goebbels, responsável pela propaganda de Adolph Hitler.

É insano comparar o Ministério da Cultura com um regime que expulsou e matou artistas, queimou livros e obras de arte e produziu verdadeiras aberrações em nome de uma suposta ‘genuína cultura alemã’.

Goebbels apregoava e procedia coerente com a idéia de que uma mentira repetida várias vezes se tornava uma verdade. De certa forma, Goebbels é pai do factóide, uma praga que assola o debate político brasileiro. E podemos encontrar nele o inspirador de quem se nega a ler, considerar e discutir os méritos do projeto, preferindo a rejeição escamoteada em falsos argumentos.

O factóide contra a Ancinav vem sendo este: usar a ‘liberdade de expressão’ para despistar leitores, cidadãos e artistas do centro da questão, que é regulação econômica, não cultural. É preciso ressaltar o fato de que o audiovisual é uma economia, com estrangulamentos, abusos econômicos e assimetrias, como qualquer outro negócio. Após tantos meses de debates e esclarecimentos, há quem insista na tese de que a agência irá versar sobre temas, estilos dos filmes e novelas. É um absurdo, mas mentir deliberadamente se tornou a única maneira de atacar o projeto.

Por trás desta fumaça está a recusa de padrões publicamente negociados e a criação de uma taxa prevista no projeto. O recurso arrecadado serviria de incentivo à produção regional e independente de televisão e para o fortalecimento do nosso cinema.

É bom que artistas e intelectuais fiquem atentos. Esses recentes paladinos da liberdade vêm, agora, pedir seu apoio para defender seus privilégios econômicos. No fundo, não querem regras justas de competição nem nenhuma forma real de democratização do acesso à produção audiovisual.

A comparação entre o III Reich e o governo Lula sugere um raciocínio absolutamente injustificável. Esses ‘democratas’ realizam uma perigosa inversão de argumentos. Falam em nome da democracia, mas, no frigir dos ovos, propagam impotência diante da democracia. Negam a possibilidade de instituições democraticamente construídas e orientadas.

Durante a ocupação nazista, a França conheceu de perto a infame violência da censura. Após a liberação, uma das primeiras ações dos franceses foi justamente a de regular seu audiovisual, proteger a indústria nacional com mecanismos até então inexistentes. O objetivo foi possibilitar a livre expressão dos cineastas. Trata-se de um raciocínio econômico: se, por monopólios comerciais, bons produtos audiovisuais não conseguem acesso às telas de cinemas e televisão, como falar em liberdade de expressão?

Sem a participação decisiva dos Estados Unidos, possivelmente a história da 2.ª Guerra Mundial e da humanidade teria sido outra. Os americanos foram pioneiros ao regular seu audiovisual (desde 1908) e, mais tarde, ao criar sua agência reguladora para democratizar as comunicações, a Federal Communications Commition (desde 1934). Na década de 1950 estabeleceram um porcentual de exibição de conteúdo audiovisual independente na TV americana (pode-se conhecer esta agência reguladora no site www.fcc.gov).

Relatório recente da Unesco aponta que ‘existe um monopólio de facto exercido pelos conglomerados multimediáticos, que controlam uma ampla e crescente parcela do mercado de produtos culturais’ (Study on International Flow of Cultural Goods, 1980-98). A concentração, diz o relatório, é ainda mais incisiva no mercado cinematográfico. Hollywood arrecada mais da metade de suas receitas no mercado externo desde o início deste século. No começo da década de 1980 esse índice era de 30%. E, hoje, 85% dos filmes exibidos em telas mundiais pertencem a apenas uma nacionalidade. Hoje, no Brasil, a produção nacional alcança apenas 15% do espaço de tela, apesar da reconhecida qualidade de nossos filmes.

Além do artista que lutou pela democracia, e pela liberdade absoluta de expressão, dentro e fora das músicas que compôs, o ministro Gilberto Gil atua, desde sua posse, pela democratização do acesso à cultura no País. No caso da Ancinav, o projeto passou por consulta pública e será enviando ao Congresso em forma de projeto de lei.

Quem inventa ou reproduz o factóide demonstra desconhecimento da legislação que regulamenta o funcionamento das agências brasileiras (ANP, Anatel, Aneel). A Ancinav estará sujeita a essa mesma legislação. O alardeado ‘superpoder’ dos seus diretores é uma blague humorística de mau gosto. Se a levássemos a sério, teríamos de fechar as portas de todas as agências do País. Os críticos omitem que esses diretores estarão subordinados ao Conselho Superior de Cinema e aos demais controles externos.

Os factóides prejudicam o entendimento do assunto pela sociedade brasileira. O tema certamente rende bem como retórica de palanque, daqueles que substituem suas tarefas administrativas pela disputa presidencial de 2006. Parecem raciocinar: ‘Se há grandes interesses econômicos feridos pelo projeto da Ancinav, por que perder essa boa oportunidade de coletar o apoio de poderosos?’ Juca Ferreira é secretário-executivo do Ministério da Cultura’



Ives Gandra Martins e Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli

‘A Ancinav e a Constituição’, copyright Folha de S. Paulo, 3/01/05

‘O anteprojeto de lei que transforma a Agência Nacional do Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) tem causado imensa polêmica desde sua divulgação. A confirmação ou não do envio do anteprojeto pelo presidente da República ao Congresso dar-se-á agora, em 2005. No final de 2004 ficou evidente que não há consenso sobre os temas tratados pelo texto, seus fundamentos, princípios, objeto de regulação e forma de captação de recursos para o fomento da produção audiovisual brasileira junto aos agentes econômicos que utilizam conteúdos audiovisuais.

Infelizmente, para a elaboração do futuro texto não houve trabalho de pesquisa transparente e de consulta a todos os agentes econômicos e às suas entidades representativas, para que se estabelecesse a necessidade e conveniência da proposta. O Ministério da Cultura, que patrocina o anteprojeto, apresentou texto pronto e extenso, com forte conotação intervencionista e certo tom paternalista estatal, objetivando proteção da sociedade brasileira, vítima de potencial risco de má-formação de sua consciência.

Para o ministério, o ‘setor’ precisa de regulação porque ‘os conteúdos audiovisuais conseguem influenciar o que as pessoas pensam sobre si e onde julgam se enquadrar (ou não) no mundo em que vivem’. E mais, considera que o ‘setor audiovisual não é igual aos outros’, é ‘um setor cultural por excelência, cujo ‘produto’ possui uma natureza única e específica e cuja influência é fundamental para aquilo que os cidadãos conhecem, acreditam e sentem’. Por diversas vezes a ‘exposição de motivos’ considera a questão estratégica, merecedora de ‘posicionar o tema no Estado e no governo brasileiros’.

A leitura dessas justificativas, espalhadas em 16 laudas, já era o bastante para preocupar aqueles que defendem a integridade da Constituição federal brasileira e não se olvidam de seus ‘princípios fundamentais’ bem como ‘dos direitos e deveres individuais e coletivos’ e, mais especialmente, das garantias de liberdade de expressão, por qualquer meio, veículo, processo ou forma (latitude máxima). Na Constituição tal garantia é a mais ampla possível (artigo 220).

O documento proposto cuida de várias coisas ao mesmo tempo. Alarga, de início, o texto da medida provisória 2.228-1/2001, criadora da Ancine, pois converte a agência do cinema em agência do audiovisual. Amplia, entre outras, as competências de iniciativa das políticas no ‘setor’ (art. 18, III); regulatórias, por iniciativa própria ou por provocação (art. 18, IV), podendo aplicar sanções; fiscalizar (art. 18, VI); gerir o sistema de informações e monitoramento (art. 18, IX); pronunciar-se sobre as iniciativas legislativas que tratem de matérias de suas atribuições (art. 18, XI); apreciar comportamentos violadores das normas (art.18, XIII); regular a distribuição e oferta de conteúdos audiovisuais (art.18, XIV) nos serviços de comunicação eletrônica de massa; arrecadar e aplicar suas receitas (art. 18, XV); aprovar seu regimento interno (art. 18, XIX); regulamentar a utilização de incentivos fiscais (art. 18, XXV); solicitar informações aos agentes econômicos do audiovisual (art. 18, XXVI).

Nota-se, nitidamente, o caráter plenipotenciário dessa superagência. Toma a iniciativa da regulação, fiscaliza, julga, aplica a sanção e interfere na atividade econômica de agentes privados. Talvez daí decorra tanta indignação. Isso porque se propõe -sem que a sociedade tenha pedido- a intervenção do Estado na circulação de conteúdos audiovisuais, sob a justificativa da proteção dos cidadãos dos efeitos semióticos da linguagem audiovisual e da questão estratégica de guarda dos valores nacionais culturais. Pelo nosso prisma, é falsa a assertiva de que ‘audiovisual’ seja um setor. Audiovisual é uma linguagem, como é a escrita, a fala, a pintura, a música, a representação teatral.

Escondidos em mais de uma centena de artigos, dezenas de parágrafos e centenas de incisos, encontram-se ainda mais dois conjuntos de normas, a saber:

1) O ‘pacote’ tributário baseado na Cide (Contribuições de Intervenção de Domínio Econômico) (art. 60), elevando alíquotas, ampliando hipóteses de imposição, atingindo novos contribuintes (art. 61), com tributação inclusive sobre fabricantes ou importadores de aparelhos de televisão, videocassete, DVD, monitores de computador, aparelhos de telefonia móvel.

2) O embrião de uma lei de comunicação social eletrônica unindo telecomunicações e radiodifusão e interferindo das televisões abertas à televisão por assinatura, telefonia móvel, provedores de internet e integradores de conteúdo.

A Ancinav passará a ser, portanto, a guardiã do art. 221 da Constituição, inclusive estabelecendo condições à exploração de atividades audiovisuais por prestadores de serviços de telecomunicação e suas coligadas, controladas e controladoras (art. 42). Cinco cidadãos, que a dirigirão, transformar-se-ão nos únicos defensores dos valores éticos e sociais da família, sem para tanto terem sido nomeados pela sociedade civil (art. 19).

Como se vê no anteprojeto, a Ancinav é um organismo com vários tentáculos, vale dizer, um imenso e independente aparelho do governo, com fantástico poder de interferência na comunicação social e na liberdade de informação e formação própria dos cidadãos de um Estado democrático de Direito (art. 1º da Constituição federal).

Impõe-se, pois, amplo debate nacional sobre o referido anteprojeto, visto que o tema interessa a todos os brasileiros, e não apenas a um pequeno grupo de burocratas.

Ives Gandra da Silva Martins, 69, advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, é presidente da Academia Paulista de Letras. Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli, advogado, mestre pela PUC-SP, é professor do Curso de Pós-Graduação do Centro de Extensão Universitária.’



José Murilo de Carvalho

‘O novo DIP’, copyright Jornal do Brasil, 29/12/04

‘Circula no Congresso para discussão e aprovação um projeto do governo que cria o CFJ, Conselho Federal do Jornalismo, e está em debate para ser também encaminhada ao Legislativo uma proposta do MinC de criação da Ancinav – Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Como indicam os nomes, o primeiro busca regular a atividade jornalística; a segunda, o cinema e as atividades audiovisuais. Muitos dos dispositivos das duas medidas, sobretudo do projeto, soam familiares a quem está, por dever profissional, atento à história nacional.

Em 27 de dezembro de 1939, durante a ditadura do Estado-Novo, foi criado por decreto-lei (medida provisória da época) o DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda. Era ligado diretamente à Presidência da República e culminava várias tentativas anteriores de organizar a propaganda governamental. O antecessor imediato do DIP fora o Departamento Nacional de Propaganda, de 1938, vinculado ao Ministério da Justiça. No dia 30 de dezembro de 1939, o decreto-lei foi regulamentado, ganhando como diretor Lourival Fontes, admirador de Mussolini e defensor do fascismo. Em 1940, criaram-se nos estados os Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda (DEIPs), vinculados ao DIP. O DEIP de São Paulo foi dirigido por intelectuais de prestígio como Cândido Mota Filho, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia.

O DIP tinha atribuições muito amplas e as foi acrescendo ao longo de sua vigência. Compunha-se de cinco divisões, salientando-se três delas, a de imprensa, a de cinema e teatro, e a de rádio-difusão. Quer dizer, abrangia as áreas cobertas pelo CFJ e pela Ancinav. Divergia das iniciativas anteriores por ser mais centralizador e coercitivo. Sua finalidade era ‘centralizar, coordenar, orientar e superintender’ (o CFJ quer ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’) a propaganda nacional nas atividades ligadas à imprensa, rádio, cinema e literatura. Na lei e na prática isto significava censurar todas essas atividades. A censura podia transformar-se em intervenção. Em 1940, o DIP interveio nos jornais O Estado de São Paulo, A Noite e A Manhã, os dois últimos do Rio de Janeiro. No que se referia aos filmes, todos tinham que ter certificado de aprovação. Seriam vetados os que contivessem material ofensivo ao decoro público, contrário ao governo, e aos interesses nacionais. O DIP controlava ainda a distribuição das verbas de publicidade para os jornais e financiava jornalistas, beneficiando naturalmente os que fossem mais simpáticos ao governo.

Era também mais corporativo. A Divisão de Imprensa era assistida por um Conselho Nacional de Imprensa, composto de seis membros, três nomeados pelo presidente da República, três eleitos pela Associação Brasileira de Imprensa e pelas federações de sindicatos de jornalistas e proprietários de jornais, dentro do modelo de corporativismo estatal do regime. O Conselho tinha muitas atribuições, salientando-se a de punir publicação de ‘notícias ou comentários falsos, tendenciosos ou de intuito provocador, induzindo ao desrespeito e descrédito do país, suas instituições, esferas e autoridades representativas do poder público’. Era ainda mais nacionalista e protecionista. Devia incentivar a produção de filmes nacionais, reduzindo impostos e concedendo prêmios, e promover uma arte e uma literatura genuinamente brasileiras. A exibição de filmes estrangeiros de longa metragem devia ser precedida de um curta-metragem nacional. Além disso, todas as salas de cinema eram obrigadas a exibir pelo menos um longa-metragem nacional por ano. O não cumprimento dessa exigência implicava multa de 200 mil réis por cada violação da lei.

Por fim, era mais dirigista. Foi criada uma ‘taxa cinematográfica para a educação popular’, a ser cobrada por metragem de filme, à razão de 400 réis por metro linear e por cópia. Os filmes nacionais pagariam apenas por metragem. Da taxa seriam reservados anualmente 200 contos para distribuição de prêmios entre os produtores nacionais. Deveriam ser premiados anualmente três filmes de longa metragem e dez curtas. Manejando simultaneamente coerção e cooptação, não ficando imunes a esta última intelectuais de prestígio, o DIP controlou a vida cultural do país, servindo eficazmente aos interesses do governo e do regime. A partir do início de 1945, a legitimidade do DIP foi minguando junto com a do regime. A entrevista de José Américo de Almeida ao Correio da Manhã, de janeiro desse ano, pedindo eleições e a redemocratização do país, já não foi censurada. O próprio governo extinguiu o DIP em maio de 1945. Suas atividades eram incompatíveis com a democracia que se inaugurava no país.’



MARANHÃO NA MÍDIA
Policarpo Junior

‘Fantasmas maranhenses’, copyright Veja, 5/01/05

‘Pobre Maranhão. O estado tem o pior índice de desenvolvimento humano do Brasil, a renda per capita mais baixa do país e está na ponta do ranking dos indicadores sociais negativos. Metade da população não tem água encanada ou esgoto e vive abaixo da linha da pobreza. No fim do ano passado, o governador José Reinaldo Tavares, ex-PFL, filiou-se ao PTB em grande estilo. Anunciou seu rompimento com as velhas oligarquias políticas, prometeu modernizar o estado e investir em infra-estrutura. Decidiu também priorizar o interior, principalmente as cidades mais carentes. As mudanças começaram a se materializar com a assinatura de duas dezenas de contratos de emergência com empresas encarregadas de abrir centenas de quilômetros de estradas vicinais. Para evitar os costumeiros desvios de recursos, uma praga que insiste em não abandonar os grotões, os pagamentos eram liberados somente depois que um fiscal ia ao local conferir a conclusão das obras. Tudo transparente. Bem, seria mesmo se tudo não passasse de encenação. O Maranhão acaba de inovar a engenharia da corrupção ao lançar no cenário as estradas virtuais. As obras de emergência foram integralmente pagas. Mas nada foi feito. Elas nunca saíram do papel.

O governo contratou vinte obras fantasmas, ligando quarenta povoados em doze municípios, uma maneira de tragar dinheiro público a conta-gotas. Em Miranda do Norte, distante 130 quilômetros de São Luís, por exemplo, foram construídas duas estradas. O povoado de São João, um dos beneficiados, até já existiu, mas mudou de nome há mais de duas décadas. Hoje, são apenas oito barracos no local. A tal estrada ninguém sabe dizer onde fica. Em agosto de 2003, o governo do Maranhão pagou por uma estrada entre o povoado de Monte Verde e o de Araras. O dinheiro não teria sido suficiente para concluir a obra. O governo estadual, então, desembolsou um aditivo. Um fiscal do estado atestou a conclusão da estrada. Dois dias depois, o governo recontratou a empreiteira para fazer o mesmo trecho. Pagou de novo pela mesma estrada. Essa segunda empreitada teria sido concluída em exatos sete dias. Teria sido uma façanha da engenharia moderna não fosse por um detalhe vital: nem a estrada nem os povoados que elas deveriam ligar existem. No município Governador Eugênio Barros, as obras fantasmas chegaram a ser discutidas na última eleição. A oposição acusou o prefeito Expedito Machado de estar envolvido com desvio de recursos. O prefeito se defendeu acusando. Ele diz que há anos não se faz nenhuma obra estadual na cidade e que os povoados beneficiados com as estradas vicinais do governo realmente não existem. O dinheiro que sumiu é mais que o dobro da arrecadação mensal do município. As fraudes a conta-gotas podem chegar a 20 milhões de reais.

O governador José Reinaldo não soube responder à pergunta sobre onde foi parar o dinheiro das obras. Ouvido por VEJA, ele passou a responsabilidade da resposta ao secretário de Infra-Estrutura, João Dominici, seu cunhado. Dominici também não tinha explicação plausível. Diante do vácuo de explicações, o governador inquiriu diretamente o empreiteiro Lourival Parente, seu amigo particular, colaborador de campanha e dono das duas empresas que receberam todo o dinheiro das vinte estradas fantasmas. Depois da conversa, o governador disse a VEJA: ‘Ele (Lourival Parente) me falou que se responsabilizava por tudo de errado e garantiu que vai fazer as estradas’. O governador informou também que mandou instaurar uma sindicância. José Reinaldo talvez devesse ter chamado a polícia. A empresa de Lourival Parente foi contratada sem licitação para reformar o Palácio dos Leões, a sede do governo maranhense. ‘A reforma do palácio foi concluída no governo passado’, garante o ex-gerente de infra-estrutura Ricardo Peres. Procurado por VEJA, o empreiteiro disse que nada tinha a comentar sobre o assunto.

Para mostrar que não está brincando quando diz que pretende modernizar o estado, o governador do Maranhão anunciou que vai investigar não só o caso das estradas fantasmas de seu governo, mas todas as obras realizadas no estado nos últimos dez anos. José Reinaldo deve saber o que pode encontrar. Afinal, nos últimos dez anos ele foi vice-governador e governador interino do estado, chegando a assumir pessoalmente a gerência de Infra-Estrutura, o órgão responsável por todas as obras. Vai poder contar com a ajuda dos próprios empreiteiros. ‘Eu já vi muita coisa em minha vida, mas isso…’, diz José de Ribamar Belo, presidente do sindicato dos empreiteiros, que garante ter há quase um ano alertado o governador sobre a fraude das estradas fantasmas. No mesmo encontro em que deu sua contribuição à moralidade pública, Belo entregou ao governador uma lista de empresas que, segundo ele, efetivamente executaram obras, mas que não receberam o pagamento. Surge nesse ponto da fantasmagoria maranhense um novo monstro, primo-irmão das estradas irreais com contrato real. Trata-se das obras reais com contratos fantasmas. O governo do Maranhão informa que as empresas da lista de Belo, se fizeram obras, foi por sua própria iniciativa. Não existem contratos entre elas e o governo.

José Reinaldo atribui as denúncias de fraude à sua cruzada de transformação, que, afirma, está minando o poder do clã liderado pelo ex-presidente José Sarney e sua filha, a senadora Roseana, aliada até pouco tempo atrás. Desde que assumiu o governo, Tavares travou um duelo de força com Roseana, a quem acusa de tentar boicotar sua administração. ‘Cinqüenta por cento do gasto em publicidade no estado era dirigido aos veículos de comunicação da família. Eu mandei cortar’, diz o governador. José Reinaldo também acusa os membros da família Sarney de tentar continuar gerindo as finanças e as obras do estado mesmo depois de deixar o poder. ‘Demiti o Ricardo Murad por causa de irregularidades’, comenta. Murad é cunhado de Roseana. ‘Pedi demissão para me candidatar a prefeito. O governador ficou irritado porque, antes de sair, adverti que havia um esquema para desviar recursos através de obras fantasmas’, diz Murad. Segundo Murad, os empresários ficavam com 20% do valor liberado e o restante era encaminhado a pessoas ligadas ao governo. ‘Os empresários me disseram que o dinheiro desviado foi entregue à primeira-dama’, acusa Murad. Alexandra Tavares, a primeira-dama, é secretária de Solidariedade Humana e membro do conselho de planejamento e gestão do estado. Ela não quis falar, mas o governador mandou dizer que as acusações contra a esposa se encaixam perfeitamente nos costumes dos antigos ocupantes do poder. Prova de que a política, às vezes, apenas muda o sobrenome, mas tudo continua igual, incluindo os fantasmas de sempre. Pobre Maranhão.’