Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Laura Mattos

‘Alguém fala de outro assunto? A mais mexicana das novelas brasileiras, a do ‘mensalão’, supera as boas obras da teledramaturgia. Nem Janete Clair faria algo tão dramático quanto os choros da CPI. A mala de dinheiro de Carlão (‘Pecado Capital’) é conto da carochinha diante da cueca com dólares. E o vilão Odorico Paraguaçu (‘O Bem Amado’), de Dias Gomes, seria mocinho no dramalhão de Brasília. Como a realidade anda mais ‘criativa’ do que a ficção, a Folha convidou autores a produzir histórias inspiradas na crise política. Walcyr Carrasco (‘Alma Gêmea’, ‘Xica da Silva’) fala da falcatrua do príncipe Lulu e da duquesa Dirce. Ricardo Linhares (‘Agora É que São Elas’, ‘Porto dos Milagres’), do publicitário que exige milhões para não revelar que o prefeito sabia de tudo. Na trama de Ana Maria Moretzsohn (‘Estrela-Guia’, ‘Sabor da Paixão’), o presidente veste-se de índio e briga com Zé Disseeu. Como é melhor rir do que chorar, divirta-se nesta página.



Walcyr Carrasco

‘‘Sarabandalha’’, copyright Folha de S. Paulo, 31/07/05

(Inspirada em ‘A Roupa Nova do Imperador’, de Hans Christian Andersen)

NOVELA EM UM CAPÍTULO

1 – TOMADA GERAL DO CÉU. EXTERIOR. DIA.

A fada Brasília, toda de verde-amarelo, surge com um livro na mão, entre nuvens. Começa a ler, com voz terna.

Fada – Há muito, muito tempo, houve uma terra encantada onde um príncipe sonhava tornar-se imperador. Príncipes só ficavam alguns anos no trono. Mas o príncipe Lulu, esse era seu nome, queria reinar para todo o sempre. Sua principal conselheira, a duquesa Dirce, quis tornar o sonho realidade.

2 – PALÁCIO. SALA DO TRONO. INTERIOR. DIA.

Príncipe Lulu e Duquesa Dirce.

Lulu – Ó, companheira fiel, ajude-me! Sonho permanecer neste trono para sempre, para fazer o bem a este povo tão necessitado!

Dirce – Ó, príncipe! Se o povo vos enxergar como Imperador, Imperador sereis. Faremos um traje fulgurante. Ao desfilar pelas ruas, vossa eminência será comparada ao Sol. O povo desejará se aquecer à luz de vossos raios!

Príncipe sorri, encantado.

Lulu – Será preciso encontrar mestres de hábil costura.

Dirce – Costura é comigo mesma!

Lulu – Liberarei as verbas necessárias!

Dirce sorri e esfrega as mãos.

Dirce – Majestade, não tenho dúvidas de que outros setores da sociedade haverão de contribuir, mormente os que mantêm negócios com o trono e admiram vossa sapiência!

3 – PALÁCIO. ESCADARIAS. EXTERIOR. DIA.

Petebelo, Pelego, Petebisca, Pepeluf reúnem-se em uma roda, sob a liderança de Petebelo.

Petebelo – A companheira Dirce deseja que costuremos o traje mais resplandecente que já se viu. Capaz de ofuscar os olhos do povo!

Todos sorriem.

Pepeluf – Mas de que tecido será tal traje?

Petebisca – Qual a trama?

Pelego – E o orçamento?

Petebelo – Tive uma idéia. Faremos um traje de ar…

Pepeluf – Como tecer o ar? Eu já tentei abrir uma licitação para vender o ar, mas depois achei mais seguro abrir umas avenidas.

Petebelo – Nada haverá no tear. Mas avisaremos a todos que o tecido é mágico. E que só pode ser visto por quem é honesto e inteligente. Quem não o enxergar é porque é desonesto e quer desestabilizar o trono.

Todos fazem expressão admirada.

Pelego – És um gênio, Petebelo. O povo se curvará ao traje, Ninguém desejará passar por desonesto ou asno total!

4 – PALÁCIO. SALA DE COSTURA. INTERIOR. DIA.

Dirce com Pelego, Petebelo, Petebisca e Pepeluf, ao lado de teares.

Pelego – Aqui está o tecido, companheira Dirce. Gosta?

Dirce – Mas…

Pepeluf – Como sabe, quem não o vê… é porque é desonesto ou de parca inteligência.

Dirce – Mas… é maravilhoso!

A ajudante de costura Severina interrompe.

Severina – Eu num tô vendo pano ninhum!

Petebelo – Severina, fique em silêncio, por gentileza! Se não interromper nossas tratativas, poderá fazer um vestido inteirinho pra você.

Severina – Oh! Mas não hei de querer só o vestido, não! Quero a bolsa, também!

Dirce – Se ficar boazinha, ganhará a bolsa!(A Petebelo) Quando o traje estará pronto?

Petebelo – Precisamos de mais verbas.

Dirce – Disso cuidará minha secretária Delurdes.

Pepeluf – E sua outra secretária, Silvete?

Dirce – Foi passear em uma carruagem de ouro, que ganhou de um admirador!

Todos sorriem. Delurdes pega algumas malas.

Delurdes – Aqui estão as malas com as verbas! Estão repletas de moedas do Banco Agrorreal!

Os alfaiates se atiram sobre as malas, brigando entre sim.

Pepeluf – Quero duas!

Petebelo – A maior parte é minha, sou eu quem tive a idéia do tecido mágico!

Close em Dirce, que sorri satisfeita.

Dirce – O príncipe se tornará imperador!

5 – PALÁCIO. QUARTO DO PRÍNCIPE. INTERIOR. DIA.

Príncipe Lulu, Dirce e os alfaiates, que abrem uma caixa.

Petebelo – Aqui está o vosso traje, ó príncipe.

Lulu – Hummm?

Dirce – Príncipe Lulu, devo lhe avisar. Quem não enxerga o traje é porque é desonesto ou inepto para o cargo que ocupa.

Lulu – Eu digo e afirmo: é deslumbrante, um traje que todo o povo deste reino deveria poder usar. Lançarei o programa Traje Zero!

Todos aplaudem.

Lulu – Marquem o desfile!

Lulu sorri, encantado.

6 – PALÁCIO. APOSENTOS DE DIRCE. INTERIOR. DIA

Dirce reclina-se sobre almofadões de seda. Delurdes e Silvete fumam charutos.

Dirce – Os alfaiates exigem mais verbas para terminar a costura. Alguns fornecedores querem pagamentos mensais ou desistirão da alta costura!

Delurdes – Faremos empréstimos bancários.

Silvete – Como pagaremos?

Delurdes – Minha melhor amiga, Valeriana, assumirá os empréstimos.

Silvete – A troco de nada?

Dirce – Ora, Silvete, não pagaremos os empréstimos. A própria Valeriana o fará…desde que lhe facilitemos alguns negócios com o reino. Será tudo entre amigas!

Delurdes – Ó, como é linda a amizade!

Delurdes chora de emoção.

7 – PALÁCIO DE VALERIANA. SALÃO PRINCIPAL. INTERIOR. DIA.

Valeriana diante de uma cesta repleta de pães de queijo. A seu lado, seu fiel secretário, Hernando.

Valeriana – Mil dobrões de ouro para Pepeluf, mais cinco mil para Petebelo…

Hernando – Como devo providenciar a entrega das moedas? Em malas, como sempre?

Valeriana – O correio também é muito útil.

Hernando sorri, enquanto Valeriana lhe atira um beijo.

8 – PASSAGEM DE TEMPO.

As páginas do livro são viradas, mostrando que os dias se sucedem.

9 – PALÁCIO. APOSENTOS DO PRÍNCIPE. INTERIOR. DIA.

O príncipe Lulu, completamente pelado, simula vestir ceroulas, calças, manto. os alfaiates o ajudam.

Pepeluf – Como vos cai bem este traje, príncipe.

Petebelo – Resplandeceis como o sol, príncipe.

Príncipe Lulu olha-se no espelho. Nada vê, mas disfarça.

Lulu – Sim, é o mais belo que já vi. Tudo vai bem no melhor dos mundos!

Dirce – Sim, príncipe Lulu. Tudo vai bem no melhor dos mundos!

Entra subitamente o ogro Roferson. É uma figura furiosa.

Roferson – Príncipe Lulu! Tenho uma denúncia a vos fazer. Sua conselheira mor, Dirce, quer lhe tomar o trono. Sonha ser rainha.

Severina – Como? Se o trono há de ser meu?

Roferson – Quieta, Severina! Príncipe, se mantiverdes Dirce, estareis perdido. De fato, esse traje não é o que pensais. Os alfaiates andaram arrancando dinheiro de Vossa Excelência!

Príncipe em choque.

Dirce – O terrível ogro Roferson deseja tomar o poder, príncipe Lulu. Não creia em suas palavras. Vamos ao desfile.

Príncipe Lulu olha no espelho outra vez.

Lulu – Mas…imagine, apenas por hipótese…que no reino existam pessoas maldosas, desonestas e sem inteligência que não vejam o traje. Dirão que estou pelado.

Os alfaiates olham pela janela, pensando na melhor maneira de fugir. Dirce sorri.

Dirce – Majestade, a solução é fácil. Vamos abrir uma licitação para distribuir óculos escuros!

Petebelo – Diremos que devido ao fulgor do traje, todos devem usar lentes negras!

10 – FABRICA DE ÓCULOS. EXTERIOR. DIA.

Carretas com óculos escuros saem.

11 – FABRICA DE ÓCULOS. LINHA DE PRODUÇÃO. INTERIOR. DIA.

Valeriana e Hernando com óculos de lentes cinzas.

Hernando – As lentes não estão claras demais?

Valeriana – Economizei nas lentes…para ganhar um extra!

Hernando – Mas isso é superfaturamento.

Valeriana – Hernando, está querendo me atraiçoar?

Hernando – Eu a denunciarei, Valeriana. Meu coração pertence ao reino!

Valeriana dá o bote em Hernando, que foge.

12 – PORTÕES DO PALÁCIO. EXTERIOR. DIA.

Hernando chega correndo, aos gritos.

Hernando – Tenho graves denuncias a fazer sobre dona Valeriana.

Dirce sai, furiosa. Close em sua expressão determinada.

Dirce – Guardas, guardas… Amordacem este arruaceiro. Aproveitem para dar um murro no olho do ogro! O desfile vai começar.

13 – RUAS DA CIDADE. EXTERIOR. DIA.

O povo em fileiras pronto para assistir ao desfile. Os figurantes deverão estar vestidos de acordo com as várias camadas sociais do reino. A guarda real do príncipe distribui óculos escuros. Ouve-se o som de trombeta. As portas do palácio se abrem.

14- PRISÃO. INTERIOR. DIA.

Hernando preso. O ogro Roferson vem voando numa vassoura. Com um toque de sua vara de condão abre as portas da prisão.

Roferson – Fuja, Hernando. Vá as ruas e conte o que sabe!

Hernando foge.

15 – RUAS DA CIDADE. EXTERIOR. DIA.

O cortejo real começa a sair do palácio. Hernando vem correndo, mas é pego pelo fiel escudeiro de Valeriana, que o amordaça. Hernando se debate. O príncipe sai, inteiramente pelado. O cortejo, com os alfaiates Petebelo, Pelego, Pepeluf e Petebisca o acompanham. Dirce satisfeita. Silvete segue num jipe dourado, logo atrás. Delurdes vem carregada por eunucos, enquanto fuma um charuto. Todos assistem com óculos escuros. Surpresos, vêem o príncipe sem roupa.

Cidadão 1 – Mas… não vejo roupa alguma.

cidadão 2 – Shhh… não diga nada, ou pensarão que é burro ou desonesto.

Cidadão 1 aplaude. Todos aplaudem. O príncipe Lulu desfila, soberbo. De repente, Heloisinha, uma menina, grita:

Lolô – Vejam! O príncipe está nu!

Todos começam a retirar os óculos. Corte para Hernando, que se livra da mordaça e vem gritando.

Hernando – Sim, sim, ele está nu! As verbas foram desviadas!

Renilton, um cidadão – A culpa não é de Valeriana, que apenas forneceu os óculos. Mas da costureira Dirce!

Corte para a expressão admirada dos cidadãos. Corte para Severina, que grita.

Severina – Silêncio! Vamos terminar o cortejo. Depois votaremos se ele está nu ou vestido!

Denisete, outra menina – A culpa não é dos óculos, mas da falta de roupa!

Corte para o povo que começa a gritar em peso.

Cidadãos – Lolozinha não mente/Ninguém engana a gente/O príncipe Lulu/Ora pois, está nu!

Lulu -Você me paga, Dirce!

Dirce corre assustada, fugindo das bordoadas do príncipe. Pepeluf, Petebelo, Pelego e Petebisca espavoridos, gritam em conjunto:

Os quatro – Fomos honestos. Alguém roubou a roupa nova do príncipe!

Close no ogro Roferson que ri, feliz, apesar do olho roxo. Close em Lolô, que cruza os bracinhos e interpela:

Lolô – Príncipe, vai continuar desfilando pelado?

Só então o príncipe toma consciência que está pelado.

Lulu -Estou nu!

Petebelo – Príncipe, vossa senhoria deve erguer o queixo e continuar o desfile. A História decidirá se estava nu ou vestido!

Lulu ergue o queixo. Delurdes aproveita a confusão e distribui algumas cédulas a ajudantes de alfaiataria, que as escondem nas cuecas.

Delurdes – É a verba que restou! Rápido, sumam com ela!

O príncipe continua desfilando garbosamente, como se vestisse o traje ofuscante, embora esteja com o traseiro de fora.

16 – CÉU AZUL. NUVENS. EXTERIOR. DIA.

Fada em lágrimas.

Fada – O livro era uma peça importante para a CPI do traje real! Foi roubado! O fim da história, não sei! Mas agora tenho que acabar…vou a uma festa, comer pizza!’



Ricardo Linhares

‘‘Farinha do Mesmo Saco’ (ou ‘Novela do Mensalão’)’, copyright Folha de S. Paulo, 31/07/05

‘Época: atual

Local: uma pequena cidade perdida no interior do Brasil

Personagens:

Prefeito

Publicitário

Assessor do prefeito

Mulher do publicitário

CENA 1.

GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA.

O prefeito, com enfado, repassa a agenda com seu assessor.

Prefeito – Você acha mesmo que eu devo ir à inauguração de um mictório público?…

Assessor – Eu sei que é uma cerimônia cacete, sem trocadilhos… mas o senhor tem que ir. Afinal, é uma obra pública, e o senhor precisa mostrar as grandes realizações do seu governo!…

O publicitário entra, interrompendo-os acintosamente, com uma microcâmera na mão.

Publicitário – Você aí, se manda que eu vim falar com o prefeito. Sozinho!

Vai, se escafede, rua!…

Prefeito – Bebeu? Isso é jeito de entrar no meu gabinete?

Assessor – (sai apressado) Eu vou chamar a segurança!

Assim que ele sai, o publicitário tranca a porta. Depois, liga a microcâmera na parte frontal de uma TV que há ali. Ele bota a fita na microcâmera.

Prefeito – Mas o que é que significa esse furdunço?

O publicitário liga a TV e aciona a câmera para rodar a fita.

Publicitário – Abra bem os olhos. Isso é nitroglicerina pura!

Na TV, aparece a imagem do prefeito sendo informado do esquema do ‘mensalão’.

Publicitário – Já pensou se essa imagem aparece em rede nacional? Seria um desastre pra sua reputação!…

Prefeito – Pode parar, cabra safado, que eu já entendi: o senhor veio me chantagear, seu verme!… O que o senhor quer em troca dessa fita? Fala, sem vergonha!

Publicitário – Simples: eu quero R$ 200 milhões! O senhor decide: ou paga… ou então será o escândalo total!

Prefeito – Espera aí, nós ainda podemos tentar negociar…

Publicitário – Deixe de nhenhenhém!… Não tente ganhar tempo me enrolando porque eu não sou barbante!

Prefeito – É um pesadelo… O senhor não é um homem, é um rato, um traidor! Calabar! Judas Iscariotes! …

Publicitário – (boceja) Quando cansar de me xingar, avisa.

Prefeito – Mas não pode ser assim, à queima-roupa! Eu preciso de um tempo pra pensar!

Publicitário – Eu dou um tempo, mas é pra o senhor dizer sim! Hoje, às 17 h, quero a bufunfa na minha mão!

CORTA PARA CENA 2.

GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA. ALGUM TEMPO DEPOIS.

O assessor já reagindo revoltado diante do prefeito.

Assessor – Golpe baixo, o mais sórdido de todos os golpes!… Aquilo é uma naja, uma serpente, uma víbora! O que mais me dói é a ousadia de afrontar o senhor! Fazer uma chantagem dessas logo com o pai do povo?

Prefeito – Desta vez estou mesmo encalacrado…

Assessor – Reaja, prefeito! Não faça essa cara de velório…

Prefeito – Pois é assim que eu me sinto: como se estivesse a um passo do meu próprio enterro…

Assessor – Mas o senhor não é homem de ceder à chantagem! (pausa) Ou é?…

Prefeito – Não, mas não sei o que fazer. Estou à beira do abismo… Agora é que são elas!…

Assessor – (se toca) O senhor viu bem a fita? Tem certeza de que não era uma montagem? Uma falsificação?

Prefeito – (dá esbregue) E você acha que eu não ia reconhecer a mim mesmo?

Claro que não era montagem! (tem idéia) Espere aí… uma montagem? Uma falsificação?… (sorri) Já sei o que fazer!

CORTA PARA CENA 3.

GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA. HORAS MAIS TARDE.

O prefeito recebendo o publicitário.

Prefeito – Se me permite a pergunta… trouxe a tal fita incriminadora, com aquelas minhas imagens?

O publicitário saca a fita de vídeo do bolso e mostra.

Publicitário – (voz debochada) Eu tenho, você não tem…

Prefeito – Tenho, sim… uma coisinha especial pro senhor.

Ele tira do bolso uma fita cassete de áudio, e muda de postura, atacando.

Prefeito – Nesta fita tem uma gravação que eu fiz do senhor, que pode fazer a sua reputação dar um tombo maior que o meu tombo. Esta é a minha resposta à sua chantagem: elas por elas! Uma fita pela outra! E tem que ser agora! É pegar ou largar!

O publicitário quase leva um tombo, surpreso com a novidade.

Publicitário – (tenta jogar) O senhor está blefando comigo!

Prefeito – O senhor vai ter que esperar pelo dia de São Nunca pra me dar uma rasteira! Aqui tem todas as suas maracutaias, tudo que o senhor roubou…

gravado com a sua própria voz!

Publicitário – Nunca falei nada disso, nem pra mim mesmo!

Prefeito – Falou sim, naquele dia que tomou uns gorós lá na granja e ficou se vangloriando. Falou das propinas, comissões, empréstimos, tráfico de influência, e até da lavagem de dinheiro nos bancos da Suíça, inclusive citando o nome do seu doleiro… lembra?

Publicitário – (se apavora, lembrando de tudo) O senhor não fez isso! Gravou minha voz à traição?

Prefeito – Gravei! Porque podia ser útil… como é agora! Eu divulgo as suas maracutaias e lhe desmoralizo! A menos que o senhor tope fazer um troca-troca!…

Publicitário – Epa! Que papo é esse de troca-troca?…

Prefeito – No bom sentido! Trocando uma fita pela outra… O senhor é um babaqüara, um mané, um otário! Se meteu de pato a ganso e se deu muito mal!

Publicitário – (se desespera) Não! Eu não vou agüentar essa derrota! Armei tudo direito, joguei todas as minhas fichas pra quebrar a banca… seria o clímax da minha carreira de golpista! Como vou abrir mão disso tudo agora?

Com que cara eu vou chegar lá em casa?…

Prefeito – (debochado) Troca-troca?

Publicitário – (suspira, concorda) Troca-troca.

Eles trocam as fitas, rapidamente.

CORTA PARA CENA 4.

RUA. CARRO DO PUBLICITÁRIO. EXTERIOR. DIA.

Dentro do carro, a mulher do publicitário espera, em palpos de aranha. O publicitário entra, fecha a porta e coloca a fita cassete no som do carro.

Publicitário – Ele disse que tinha uma arma poderosíssima contra mim! Eu tive que recuar e fazer um troca-troca! Senão eu tava fubecado!…

Mulher – (aflita) Mas o que tem nessa fita? Vamos ouvir!…

Publicitário – Minhas maracutaias, com minha própria voz!…

Enquanto falam, o publicitário aciona o aparelho de som.

Prefeito – (OFF, repetindo) ‘Otário… Otário… Otário…’

Mulher – Não tem nenhuma maracutaia gravada aí, nem a sua voz… só tem a voz do prefeito! E tá repetindo…

Prefeito – (OFF, repetindo)’Otário… Otário… Otário…’

Mulher – Você caiu num blefe, feito um… um otário, sim!

CORTA RÁPIDO PARA:

CENA 5.

GABINETE DO PREFEITO. INTERIOR. DIA.

O assessor com o prefeito, que coloca fogo na fita de vídeo, num cinzeiro:

Assessor – O senhor bolou um contragolpe de gênio!…

Prefeito- (rindo) Quando você falou em falsificação, pensei em montar uma fita pra incriminar o cabra, mas fiz melhor ainda: a fita não tinha nada!

Era só blefe! Ele se borrou todo, sabendo que tinha culpa no cartório, e perdeu a parada sem ter prova nenhuma contra ele! É um otário mesmo! E eu sou muito esperto…

CORTA PARA:

Fim da ‘Novela do Mensalão’ (ou ‘Farinha do Mesmo Saco’)’



Ana Maria Moretzsohn

‘‘Mussarela com Bananas’’, copyright Folha de S. Paulo, 31/07/05

‘A novela mais popular do país

CENA 1.

BRASÍLIA. PALÁCIO DA ALVORADA. INTERIOR. AMANHECER.

O presidente, vestido de índio, anda cabisbaixo pelos corredores. Ouve vozes em uma sala e entra. Vê, em uma mesa, Zé Disseeu, vestido de caipira, e Zé Geruíno, de terno e capa preta. Brincando por ali estão duas crianças:

Silvinho Perinha e Debulho Sou Ares.

Presidente – Meu povo, o que está acontecendo aqui? Eu não falei pra vocês que era pra gente moralizar a política? Que o PT tinha que ser um exemplo pra sociedade? O que vocês fizeram?

Zé Disseeu – Bom, eu vou me justificar citando uma frase do roqueiro Raul Seixas, que sei que vosmicê gosta -’se tu quer entrar num buraco de rato, de rato você tem que transar…’

Presidente – Não entendi, companheiro.

Zé Geruíno – Eu explico, meu presidente, o que o Zé tá querendo dizer é que, como nós nunca conseguimos ganhar deles, tivemos que nos juntar a eles.

Entramos no esquema pra poder existir.

O presidente pega as duas crianças que estavam correndo por ali e pergunta.

Presidente – E vocês dois sabiam disso?

Silvinho – Não. De Nada… De nadazinho nunca…

Debulho –

(chora) Uhhhhh, aaaaahhhhh, buuuuuuu

Os dois fogem e escondem-se debaixo da mesa. O presidente senta, desanimado.

Presidente -E agora, companheiros? Se disser que sabia, pra ficar com vocês, a oposição me acusa de conivente e corrupto. Se disser que não sabia, me acusam de burro e inocente. ACUSAM-ME DE INOCENTE! Essa é a cultura do nosso país.O honesto é um imbecil, malandro é quem tá nas mamatas. Isso é o que precisamos mudar!

Nesse momento, entra um faxineiro com uma mala na mão.

Faxineiro – Desculpa, com a vossa licença… Eu tava aqui trabalhando e ouvi a conversa de vocês. Meu presidente, por que vocês não fazem uma eleição em que as pessoas possam se eleger sem partido? Será que não tá todo mundo vendo que são os partidos que afastam os cidadãos de bem da política?

O presidente encara o faxineiro, admirado.

Presidente – Às vezes, das bocas mais simples saem as verdades mais profundas. (p) E essa mala aí, de quem é?

Faxineiro – Não sei… Achei no banheiro… Tá cheia de dólares e eu vim devolver…

Todos na sala, menos o presidente, assobiam, disfarçam, olham para o outro lado.

CORTA PARA:

CENA 2.

BRASÍLIA. CONGRESSO NACIONAL. AMBIENTE. INTERIOR. DIA.

A nova geração de políticos celebra, em meio a pilhas e pilhas de documentos e papéis, que eles jogam para o alto.

Bahiano Neto – Nós conseguimos, nós conseguimos!

Eldorado Rapaz – Também, com toda a mídia do nosso lado! Caraça, mané!

Rod Des Maia – Papai vai ficar orgulhoso de mim! Agora ou é o impeachment ou a reformulação do nosso sistema eleitoral.

Um menininho entra correndo na sala.

Menininho – Gente, gente, vambora, eles descobriram tudo! Eles vão copiar o sistema de financiamento de campanha americano, vai todo mundo poder se eleger sem partido. Melhor a gente fugir!

Bahiano Neto – Sai fora, menininho!

Bahiano Neto – chuta o traseiro do Menininho, que voa longe.

Abre-se a porta e entra o presidente, acompanhado de juízes e do Ministério Público.

Presidente – Ha… Ha…. Descobrimos toda a armação da direita para boicotar o meu governo. Agora todo mundo vai ter que se explicar no Supremo!

Juízes e promotores vão levando os três. Antes de retirar-se, o Presidente é detido por alguém. É um de seus ministros que dedilha um violão, enquanto fala.

‘Ministril’ – Presidente, meu bom, agora que tudo voltou ao normal, vamos retomar aquele assunto de cultura? E a Ancinav, sai ou não sai? Até eu, que sou baiano, já estou cansado de tanto esperar, oxente!

CORTA PARA: FIM’