‘Aguinaldo Silva deve ter sentido o tamanho da responsabilidade quando soube que a novela antecessora da sua despediu-se do vídeo com 64 pontos de média no ibope (Grande São Paulo) e, mais, que 86% dos televisores ligados estavam sintonizados em Celebridade.
A trajetória do calvário e redenção de Maria Clara Diniz foi um fenômeno do começo ao fim. Mas Senhora do Destino começou até melhor, com 52 pontos de média, ou seja, 2 a mais do que o capítulo de estréia de Celebridade, e 7 a mais que O Clone, outro grande sucesso, que terminou com 60 de média. Nos dias seguintes, a audiência da nova novela das 8 caiu um pouquinho (49), mas, mesmo assim, continuou fantástica, com 72% dos aparelhos ligados.
É possível detectar as causas da adesão do público. Os primeiros capítulos foram fortes o suficiente para fisgar o telespectador para a noite seguinte.
O drama da retirante maltratada pela cidade grande – que tem o bebê roubado, perde os quatro filhos maiores na confusão das manifestações de rua contra a ditadura militar e é presa por engano -, o ardil da prostituta (que rouba a criança) para agarrar marido e deixar a dura vida fácil, o confronto da poderosa dona de jornal com os militares e seu conseqüente exílio, o amor do motorista por ela, são entrechos que atiçam a curiosidade do telespectador.
O sotaque pernambucano de Carolina Dieckmann, a protagonista Maria do Carmo na juventude, pode não ser lá muito convincente, mas ela sustentou surpreendentemente bem a personagem. O mesmo ocorreu com as crianças que interpretaram os filhos dela. Marília Gabriela, como Josefa, a dona do jornal, também esteve convincente. Adriana Esteves tem se mostrado uma ótima atriz, mas, no papel da insana prostituta seqüestradora, ela se superou.
Mas o grande ganho para a TV foi ter buscado no teatro e no cinema o ator Luiz Carlos Vasconcelos, que interpreta Sebastião, o irmão de Maria do Carmo e motorista de Josefa.
O mérito não é só da história de Aguinaldo Silva – que parece ter colocado sua militância nordestina no tom certo, abandonando o ‘folclorês’ que vinha marcando suas tramas desde Roque Santeiro – e do bom elenco. É também do diretor Wolf Maya, que deu muita agilidade aos capítulos iniciais, trabalhou bem os atores e, acima de tudo, conseguiu situar bem até o telespectador mais desinformado sobre a história recente do País. Werner Schünemann, no papel do comandante linha-dura, conseguiu pincelar a insanidade daqueles dias em que militares torturavam jovens em nome do combate à ameaça do comunismo. A passagem de Maria do Carmo de Carolina Dieckmann para Suzana Vieira foi bem plausível, apesar de as duas atrizes terem tipos e traços muito diferentes.
Como novela é novela, claro que há ressalvas. Ao contrário da vida real da esquerda em 1968, os manifestantes da novela encomendaram suas faixas no mesmo fornecedor. Mostrar agentes da repressão ignorando um estupro no meio da rua foi uma forçada de barra no maniqueísmo. E, como escreveu Cristina Padiglione no Caderno 2 do Estado, só na Globo sem-terra tem cara de Patrícia Pillar, e retirante, de Carolina Dieckmann.
E claro também que, passada a apresentação da história e do perfil de cada personagem, o ritmo desacelera. A busca ‘obcecada’ de Maria do Carmo pela filha, pelo jeito, vai se arrastar por uma centena de capítulos, mas isso não representa um problema se a trama for bem urdida. Coisa que o senhor da história, Aguinaldo Silva, parece que fará direito, pelo que se viu até aqui.’
Esther Hamburger
‘Falta irreverência a ‘Senhora do Destino’’, copyright Folha de S. Paulo, 30/06/04
‘Como é de praxe, a primeira fase de ‘Senhora do Destino’, a nova novela das oito da Globo, situa didaticamente os personagens na geografia e na história do Brasil. A novela apresenta qualidade técnica primorosa, mas não tem a irreverência que marcou o gênero nos seus melhores anos -ironicamente os anos de ditadura e censura.
É 1968. Estamos no Rio às margens do rio São Francisco. Mais precisamente, é 13 de dezembro, dia do AI-5, ato que marcou o endurecimento do regime militar em meio a manifestações de rua.
O tom documental engana. Os dois cenários aparecem com sinal invertido ao que tinham na época. Cenas de violência nas ruas da cinza metrópole carioca se alternam a tomadas de um Nordeste glamouroso. A fotografia cinematográfica garante uma luz dourada em lindas paisagens bucólicas.
No ano em que ‘Senhora do Destino’ começa, estava no ar ‘Beto Rockfeller’, novela de Bráulio Pedroso, dirigida por Lima Duarte e produzida por Cassiano Gabus Mendes na então TV Tupi.
‘Beto’ é precursora de ‘Senhora’, pois inaugurou as novelas gravadas em locação, com personagens que falam linguagem coloquial, tratam de temas da moda, sem dispensar alguma ironia. Ele é herói sem caráter. Ela é politicamente correta.
A trajetória de Josefa, senhora da alta sociedade, que homenageia a proprietária do ‘Correio da Manhã’, jornal carioca de oposição, é de honrosa derrota histórica. Merecem foto, com direito a legenda, personagens com quem contracena: o general Costa e Silva, o governador Carlos Lacerda e o jornalista Paulo Francis, todos mortos.
Já a trajetória da pobre Maria do Carmo, mulher do povo, de fibra, já sabemos, será de honrosa vitória, como foi a do presidente Lula e a do próprio autor da novela.
Do realismo, a novela resvala para o ‘reality show’ ao apresentar Marília Gabriela no papel de Josefa. Interessante que ninguém tenha pensado em escalar uma lavadeira nordestina para o papel da jovem mãe de cinco filhos, papel que Carolina Dieckman desempenha com leveza.
Viramos uma página de nossa história. O que em anos passados soava provocativo hoje aparece como morno. A começar pelo uso surrado do documentário. Aguardamos a desenvoltura de Suzana Vieira na segunda fase. Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP’
Sheila Schvarzman
‘Mas, afinal, para que serve a história?’, copyright Folha de S. Paulo, 3/07/04
‘Em geral, na vida dos povos, países ou indivíduos, a história se liga, explica ou permite compreender o presente. Ao contrário disso, nos primeiros capítulos de ‘Senhora do Destino’ a história parece, num primeiro olhar, um chamariz mercadológico. Ou será que, seduzidos pelo carisma das imagens, não nos demos conta de que a história encenada foi enterrada ao cabo de meros dois dias junto com a gloriosa d. Josefa-Niomar Muniz Sodré e o seu saudoso ‘Correio da Manhã’?
Depois de dois dias de intenso festival de reconstituições históricas, partilhando das agruras dos idos de 68, mesclados à festa no Itamarati com as colunáveis do Ibrahim Sued e personagens do governo militar, nada disso encontra continuidade ou reverberação no presente da trama. Ao contrário, somos levados a entender que a história é uma coisa, a vida real é outra, e uma não interfere na outra. A história é coisa do passado, e o passado não conversa, em absoluto, com o presente.
O arbítrio de 68, as aparições do presidente Costa e Silva, Paulo Francis ou o fechamento do ‘Correio’ foram tirados do esquecimento. Mas o que fez a ficção com isso? Nada. São aparições ilustrativas. Talvez tenham uma virtude pedagógica. Mas qual? São, antes de mais nada, signos da luta pela liberdade, que o ‘Correio’ naquele momento encarnava.
O fato é que, na novela, a principal decorrência do fechamento do regime que se instalara em 1964 é que Maria do Carmo perde sua filha. Ou seja, a história é só um cenário interessante, cujos acontecimentos, no mais, servem para atrapalhar a vida dos protagonistas. A história é um espetáculo, um desafio à reconstituição, mas, afinal, para o que ela serve?
Capítulos iniciais costumam trazer extravagâncias: altos investimentos, gravações no exterior em lugares exóticos ou carismáticos. Desta feita, o espetáculo foi transferido para o passado. Um momento doloroso, traumático. Então por que hoje tirar do grande acervo de caracterizações a história do ‘Correio’, por tantos anos enterrada numa emissora que começou sua ascensão, justamente, nesse mesmo momento e ainda hoje é vista como beneficiária do regime que se solidificava?
Após o mergulho na mitologia das elites paulistas -com ‘Um Só Coração’ do modernismo ao Quarto Centenário, ilustrando com respeitosa reverência uma história entronizada-, a Globo arrisca com ‘Senhora do Destino’ um novo passeio histórico.
Os personagens esquecidos de 1968 animam-se, o cenário é montado. E é assim que valem: como fundo espetacular para uma ação futura, em que nem sequer servirão como explicação, prenúncio ou causa. Com isso, podem conviver em Sebastião, o motorista, a cumplicidade com Josefa-Niomar, digna representante da elite liberal, e o compadrio com o populista Tenório Cavalcanti, último dos personagens históricos reanimados pela ficção.
A questão que fica, então, é saber por que foi esse o momento histórico escolhido para sair do esquecimento, dentre tantos outros. E por que centrar a ação na história de um jornal que é fechado por sustentar idéias que contrariavam um regime que se impunha e do qual a televisão, e sobretudo a Globo, foi aliada?
Certamente porque é em episódios assim que a história é reescrita. Reescrita para apagar as diferenças, fazer esquecer os antigos engajamentos, de forma a que hoje, indistintamente, todos os que não se identificam com aqueles medonhos policiais e militares sejam assimilados ao dito ‘campo democrático’. Indistintamente. Promovendo a conciliação que apaga a história, suas especificidades e diferenças, a novela procura entronizar a Globo não só como senhora do destino (que já é), mas como senhora da história. Sheila Schvarzman é doutora em história pela Unicamp, historiadora do Condephaat e autora de ‘Humberto Mauro e as Imagens do Brasil’ (Edunesp, 2004)’