‘Cinco em cada dez televisores estão ligados na Rede Globo. Talvez oito na hora do Jornal Nacional. O brasileiro se identifica com a rede. O presidente Lula contou em julho a uma comitiva de artistas da emissora que seu apelido era ‘pai herói’ quando liderava greves no ABC, alusão a uma novela. Liderados por Tony Ramos, os artistas entregaram-lhe um manifesto de tom nacionalista, com propostas para proteger a produção cultural da invasão de conteúdos importados. Fora aprovado em fevereiro em seminário organizado pela Globo e a Universidade Católica de São Paulo, no Tuca, o teatro da antológica adaptação de ‘Morte e Vida Severina’, de João Cabral de Melo Neto, e que depois abrigaria manifestações pelo fim da ditadura militar.
A Globo trouxe do Recife o mestre Ariano Suassuna, autor de ‘O Auto da Compadecida’, peça dos anos 50 fabulosamente adaptada para o cinema e a tevê pelo enfant terrible da emissora, Guel Arraes. Diante de publicitários, cineastas, artistas, roteiristas e gente do mercado editorial, Suassuna criticou os brasileiros que tentam ser ‘grotescamente norte-americanos’. O bom humor de Suassuna permitia, inclusive, o cochicho na platéia de um novo slogan para a emissora – ‘Globo e PC do B: tudo a ver!’
É inegável que a influência da rede na vida do país se deve em boa parte ao notável talento de seus profissionais, mas é na simbiose com o poder político que se define o papel da Globo na história recente. Ela nasceu em 1965, um ano após o golpe militar. Seu primeiro estúdio foi financiado pelo grupo Time-Life (hoje Time-Warner), quando a Constituição proibia estrangeiros nas empresas de comunicação. O marechal Castelo Branco articulou o desfecho da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o caso. Em 1975, no tempo de Geisel, a Globo divulgou a versão oficial de suicídio para o assassinato do jornalista Vladimir Herzog; em 1984 o comício que disparou a campanha por eleições diretas, no dia 25 de janeiro, em São Paulo, foi noticiado como festa de aniversário da cidade; em 1989, o debate entre os candidatos à Presidência da República foi editado de modo a ralar Lula diante de Collor Melo.
Nos anos 90, sem a Globo Fernando Henrique não convenceria o país de que era possível parar aqui o dinheiro eletrônico que já circulava no mundo para produzir a ‘exuberância irracional’ – nas palavras de Allan Greenspam, presidente do banco central americano – das empresas que compravam suas próprias ações em um fuso-horário para vendê-las em seguida em outro meridiano. A própria Globo quis ser uma player nesse jogo. Construiu uma central de produções hollywoodiana capaz de gerar programação exportável e filmar qualquer paisagem sem sair de Jacarepaguá. Emprestou fichas para apostar na Internet e convenceu-se de que havia multidões ávidas para ver televisão a cabo. Deu-se mal.
A holding do grupo, Globopar, deve R$ 5,8 bilhões (US$ 1,9 bilhão) – ou 60% da dívida de todas as empresas de mídia brasileiras. O buraco só não é cova porque tem o aval da ainda lucrativa televisão aberta.
O que representa, então, o surto de nacionalismo da Globo? Uma autocrítica? Uma clássica reengenharia corporativa? Uma vestimenta de ocasião escolhida no guarda-roupas de sua fábrica de ilusões para sobreviver aos tempos em que o ‘pai herói’ chegou ao poder? Uma novela para acabar em casamento com algum namorado mais rico?’
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‘Balança, mas não cai’, copyright Oficina de Informações, 30/09/04
‘A psicóloga pernambucana Marluce Dias da Silva, assessora da presidência da Globo, foi ao Recife buscar Ariano Suassuna, amigo de seu pai, para convencê-lo a pegar um avião com destino ao seminário no Tuca. Marluce é alter ego de Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo, e foi quem concebeu o evento. O esforço para levar Suassuna tinha sentido. Desde que ‘O Auto da Compadecida’ surgiu nos anos 50, ele já foi definido como ‘um arqueólogo solitário que escava as bases de nossa cultura e tem sido um intransigente defensor da cultura popular em oposição à globalizada produção artística em escala industrial’, como lembra o crítico Luiz Carlos Merten, de O Estado de S. Paulo. No ‘Auto’, o esperto João Grilo (Matheus Nachtergaele na versão da Globo dirigida por Guel Arraes, com roteiro de João Falcão) é uma espécie de anti-Macunaíma, pois tem caráter de sobra para lutar contra tudo e todos, do patriarcado ao diabo, ao lado do loroteiro Chicó (Selton Melo), medroso e divertido. Ambos católicos por convicção e conveniência. Brasileiríssimos.
Tem profundo significado, portanto, a presença do mestre diante de publicitários das maiores agências do país, cineastas como Hector Babenco, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto, além de Guel e Falcão; atores como Antônio Fagundes, Glória Menezes, Marieta Severo, Marco Nanini, Regina Casé, a dramaturga Maria Adelaide Amaral e gente do mercado editorial. Ademais, Guel é filho de Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, cassado pelo golpe de 1964 e que já foi nome proibido de ser citado na emissora. Visto desse ângulo, o seminário no Tuca parecia uma anistia ampla, geral e irrestrita. Um recomeçar.
A emissora exibiu no dia 2 de setembro, no programa ‘Linha Direta Justiça’, um episódio sobre o assassinato de Herzog, dirigido por Milton Abirached. O mesmo diretor já havia reconstituído outro crime da ditadura, o assassinato de Stuart Angel, filho de Zuzu Angel. A abertura da novela ‘Senhora do Destino’, de Aguinaldo Silva, teve como pano de fundo aquele período.
Antes de fundar a TV, Roberto Marinho possuía uma emissora de rádio e um jornal. Hoje, seus três filhos e cinco netos herdaram dezenas de empresas, parte delas administrada pela holding Globopar, tesoureira do grupo. A TV Globo é a galinha dos ovos de ouro. Seu faturamento de R$ 3,6 bilhões responde por cerca de 70% do total do grupo.
As novelas são um dos pilares do negócio. Custam caro, mas arrecadam muito. Com 200 capítulos a R$ 150 mil cada um, custam cerca de R$ 30 milhões. Mas 30 segundos de anúncio no horário nobre em rede nacional custam R$ 300 mil – ou seja, com 50 minutos uma novela está paga. Para se ter uma idéia, apenas o último capítulo de ‘Celebridade’ teve 28 minutos de comerciais. Além disso, há o merchandising, a inserção de produtos na trama. Só com o da Petrobrás, por exemplo, a novela das sete – ‘Começar de Novo’ – arrecadará R$ 5 milhões. As novelas faturam algo como R$ 2,2 bilhões por ano.
Verbas de governo têm uma atração irresistível pela rede. Curiosamente, se nos fiarmos no que disse à Folha de S. Paulo o ex-diretor da Globo José Bonifácio (Boni) Sobrinho, hoje a TV recebe mais com publicidade federal do que no tempo da ditadura. Naquela época, disse Boni, apenas 7% das verbas federais iam para a Globo. Hoje, são mais de 60%. O governo Lula prometera, no início de 2003, que a verba publicitária para televisão (de R$ 344,2 milhões) seria distribuída na proporão da audiência (share, como se diz). Mas a Globo, com share de 54%, ficou com 61 % da verba, cerca de R$ 210 milhões. O resto foi dividido entre as outras redes e TVs locais. As emissoras públicas receberam juntas R$ 5 milhões, apenas 1,7% do total, embora tivessem 2,3% de share.
De modo que dinheiro – público ou privado – não é problema para a TV Globo. Talvez isso explique porque ela pode dar-se ao luxo de pagar para muita gente boa simplesmente não trabalhar na concorrência. É o que diz o presidente da Record, Dennis Munhoz: ‘A Globo pega cem artistas, utiliza dez. Claro, paga os salários, mas impede que essas pessoas trabalhem em outras emissoras. E a gente só não tem mais conteúdo nacional porque falta autor, roteirista, artista’.
Esse poderio, no entanto, não esconde a realidade. A Globo está quebrada. Conforme o relatório da auditora independente Maria Helena Petterson, da Ernst&Young, publicado em abril, embora a TV tenha faturado R$ 3,6 bilhões em 2003, o faturamento com partes relacionadas a ela na Globopar caiu 42% de 2002 para 2003 (de R$ 164,1 milhões para R$ 95 milhões). Os custos de produção, por sua vez, aumentaram 15,74% no mesmo período e chegaram a R$ 1,7 bilhão: Em 2002, a TV destinou R$ 264 milhões em provisões para empresas interligadas. Em 2003, essas provisões foram de R$ 17,6 milhões. Em 2002, o lucro líquido da Globo foi de R$ 220,2 milhões; caiu 45% em 2003, para R$ 120,8 milhões. O ralo é evidente.
A dívida em nome da Globopar, de R$ 5,8 bilhões, equivale a 60% da dívida total das empresas de mídia brasileiras (estimada em R$ 10 bilhões). Em outubro de 2002, a holding suspendeu o pagamento da dívida e recebeu uma injeção de R$ 282,2 milhões em aportes de acionistas. Em 2003, teve outro aporte de acionistas (de R$ 510,4 milhões) e aumentou substancialmente as receitas de aluguéis cobrados da TV Globo por imóveis e equipamentos utilizados pela emissora, que no papel são de propriedade da Globopar. Em 2003, essas receitas somaram R$ 165,6 milhões – um aumento de 135% sobre os R$ 70,5 milhões pagos pela TV em 2002.
Embora a TV Globo continue lucrativa, ela garante R$ 4,031 bilhões dos R$ 5,8 bilhões da dívida da Globopar. Isso levou a auditora Maria Helena a fazer restrições sobre os resultados da emissora, apesar do lucro do ano passado: ‘A Globopar e suas subsidiárias têm incorrido em perdas operacionais, têm deficiência de capital de giro e não estão em dia com os credores’, afirma. ‘Essas condições geram dúvidas quanto à capacidade da TV Globo de garantir os seus compromissos’, complementa.
No passivo da Globopar não estão incluídas as dívidas da Infoglobo – a holding que controla os jornais do grupo (O Globo, Diário de São Paulo e Extra); nem as dívidas das 17 emissoras de rádio do grupo. O jornal A Tribuna da Imprensa do dia 3 de abril noticiou que estava em fase final de Execução Fiscal o processo 98.0050892-9, iniciado em 29 de maio de 1998, na Justiça Federal do Rio, do INSS contra o jornal O Globo e a família Marinho, por sonegação à Previdência de mais de R$ 50 milhões.’
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‘O fracasso da Globo globalizada’, copyright Reportagem da Oficina de Informações, 30/09/04
‘As Organizações Globo têm a pretensão de ser uma das players do mercado mundial da comunicação. A partir de 1995, por meio da Globopar e com dinheiro do exterior, então relativamente barato e fácil, investiu pesado em TV a cabo (NET Serviços), TV por satélite (Sky, com Rupert Murdoch), em Internet (Globo.com, com a Telecom Itália) e em outros projetos. A abertura do mercado de telecomunicações, com o surgimento de novos serviços e o fim do monopólio estatal da telefonia fixa produziram uma euforia que se prolongou até a privatização da Telebrás, em 1998. O otimismo se estendeu ao mercado da mídia impressa.
A circulação média diária dos jornais cresceu 53,5% entre 1990 e 1995 – de 4,3 milhões de exemplares por dia para 6,6 milhões. E atingiu o pico de 7,9 milhões de exemplares por dia em 2000. As Organizações Globo aproveitaram a ocasião. Em 1998, o grupo lançou, simultaneamente, o jornal Extra, no Rio – para concorrer com O Dia, que havia batido O Globo em circulação aos domingos -, e a revista Época, em São Paulo. O jornal consumiu R$ 30 milhões em investimentos, e a revista, US$ 40 milhões. Em 2001, após investir no diário Valor Econômico, o grupo Globo comprou o Diário Popular (atual Diário de S. Paulo) do ex-governador de São Paulo Crestes Quércia, por preço estimado em R$ 200 milhões. ‘Durante o boom, havia dinheiro sobrando. Todos os investidores estrangeiros queriam aplicar no Brasil, sem questionar os projetos’, disse ao Jornal do Comércio, em maio, o diretor de Planejamento e Controle da Globopar, Jorge Nóbrega.
Mas a economia movida pelo consumo desenfreado das importações baratas e câmbio subvalorizado finalmente empacou em 1999 com um choque cambial que puxou o tapete das empresas endividadas no exterior. No baque, recorreram aos bancos para rolar a conta em curtíssimos prazos. E os jornais perderam seus créditos para importação de papel e tiveram de comprar à vista.
O fracasso do projeto de Internet entre a Globopar e a Telecom Itália foi espetacular: o capital investido pelos italianos, R$ 24 milhões, já estava valendo apenas R$ 12 milhões em 2001, conforme a revista Carta Capital. A Globopar também acreditou que lucraria bastante com a TV a cabo. Em 1995, a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), estimava que, em 2000, o Brasil teria 15 milhões de assinantes. Mas o número de assinantes está estacionado em 3,5 milhões há quatro anos. A Globosat (TV por satélite) esperava atingir 10 milhões de assinantes em 2000. Empacou em 1,2 milhão. Os ganhos da operadora no primeiro semestre de 2004 foram muito aquém das expectativas e ela registrou prejuízo de R$ 154 milhões. A Net Serviços deve hoje cerca de R$ 1,39 bilhão, ao INSS, ao governo e a credores privados nacionais e estrangeiros.
Pelo seu porte e pelo seu papel político, não interessa a muita gente que a Globo naufrague, como aconteceu no passado com redes e TVs que também foram poderosas e influentes, como a Tupi e a Excelsior. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, disse que salvar a Globo é ‘questão de segurança nacional’. O presidente Lula teria dito a assessores que não é louco de peitar a rede – após sua eleição, chegou a fazer papel de âncora de telejornal. Carlos Lessa, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) quer ajudar a Globo. Disse que ‘uma nação que não tem sua própria mídia não sustenta sua identidade nacional a longo prazo’. Isso poderia explicar, por exemplo, o acordo firmado em dezembro de 2003 em que o BNDES emprestou R$ 307,7 milhões à Net Serviços, com três anos de carência, por meio da sua controladora, a Distel Holding S.A., pertencente à Globopar.
Além desse empréstimo, os grupos Globo e Abril lideraram uma tentativa de acordo com o BNDES para o financiamento de investimentos e amortização de 50% das dívidas do setor de mídia consolidadas até 2002. Os empresários queriam R$ 5 bilhões. A Globopar seria a maior beneficiada. Contra o acordo, que foi chamado de Pró-Mídia, há uma Resolução do Tribunal de Contas da União (TCU) que determina ao BNDES suspender qualquer financiamento para a Globopar por considerar uso temerário de recursos públicos.
De qualquer forma, a contraproposta do BNDES não agradou aos dois conglomerados, que acabaram desistindo da transação. O banco oficial limitou os créditos a 25% das receitas operacionais, exigiu transparência contábil e a transferência de parte das operações para bancos privados, sinalizando, corretamente, que o sistema financeiro altamente lucrativo deveria dar sua cota de participação. Em reação à proposta da Abril e da Globo ao BNDES (e à divulgação da ajuda do banco à NET), a Record e a Rede TV! desligaram-se da Associação Brasileira das
Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), alegando serem contrárias à possibilidade de a Globo receber dinheiro público para pagar dívidas. Com a saída das duas redes, a única rede nacional que a Abert representa agora é a Globo. SBT e Bandeirantes já haviam saído há mais de três anos.
‘Todo mundo sabe que grande parte desse dinheiro [do Pró-Mídia] é para pagar dívida da Globo’, revoltou-se Munhoz, da Record. ‘Como foi criada essa dívida? Qual o motivo dessa dívida crescer de forma astronômica? Foram com atitudes monopolistas. A Globo comprava todos os eventos, pagava duas, dez vezes o valor do mercado, muitas vezes até para não exibir […] para impedir que os outros exibissem. Não é justo que a sociedade pague por uma atitude monopolística’, disse ele.
Para Munhoz, o exemplo mais gritante é a Copa do Mundo de Futebol. Até 1998, todas as redes pagavam reunidas cerca de R$ 30 milhões pela Copa. Isso, dividido por cinco, dava R$ 6 milhões para cada uma. O público via os jogos pela emissora que quisesse, a qual negociava comercialmente o evento e tinha lucro. ‘Mas a Globo procurou a empresa detentora dos direitos de 2002 e 2006 e ofereceu US$ 240 milhões [cerca de R$ 720 milhões]. É lógico que é impossível isso dar lucro. Quem assume esse risco tem que pagar a conta. Você assume o risco de contratar um profissional por dez vezes o que ele vale no mercado, comprar o evento para deixar na prateleira e o outro não usar. É uma competição desleal com as outras emissoras. Eles estão tentando jogar para a opinião pública que a Globo é essencial, que não pode quebrar, que não pode acontecer nada com ela. Por que a Tupi acabou? A Excelsior? A Manchete? Por que o BNDES nunca emprestou dinheiro para a mídia, e, coincidentemente, agora que a Globo está nessa situação difícil, surge essa linha de crédito? São perguntas que o BNDES não responde, que a Globo não responde.’’
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‘A grande arte da Globo’, copyright Oficina de Informações, 30/09/04
‘Seria complicado andar a pé naquela tarde de 11 agosto na central de estúdios da Globo – o Projeto Jacarepaguá (Projac), inaugurado em 1995 depois de um investimento de R$ 600 milhões. É preciso um carrinho de golfe para percorrer essa área de um milhão de metros quadrados na zona oeste do Rio. Sete mil pessoas trabalham ali todos os dias em atividades que demandam uma estação de geração própria de energia capaz de abastecer uma cidade de 75 mil habitantes. Há dez estúdios; uma fábrica de roupas que produz 1.725 peças por mês e um acervo de 58 mil figurinos; uma garagem com centenas de carros de todos os tipos e estados, usados nos programas; um galpão com centenas de containers que guardam pedaços de cenários levados por guinchos para serem montados e desmontados todos os dias nos estúdios.
A Globo diz que é o maior centro de produção de TV das Américas e um dos maiores do mundo. Mas há quem diga que o Projac foi um erro, extemporâneo, que a estrutura pesada de grandes estúdios é ultrapassada mesmo em Hollywood – onde hoje vigora a associação com produtoras independentes para obras destinadas a mercados segmentados.
Na sala de imprensa, Taís Araújo e Reinaldo Gianechini, protagonistas da novela ‘A Cor do Pecado’, posam para a revista Contigo. Taís foi a primeira protagonista negra de uma novela da emissora. Demorou para isso acontecer, não, se sabe se devido ao racismo dos autores, da direção da empresa ou por influência – para o bem ou para o mal dos grupos de discussão que reúnem cerca de 15 mulheres das classes B e C para julgar as novelas e orientar o texto dos autores.
Os grupos de discussão de novelas foram introduzidos pelos publicitários Walter Clark e José Bonifácio (Boni) Sobrinho, dentro de uma estratégia de captura e apreensão da audiência para otimização dos espaços publicitários cuja raiz fora deixada por Joe Wallach, o administrador financeiro e executivo do grupo americano Time-Life.
Wallach foi quem trouxe a idéia de que TV é um negócio comercial, que depende de propaganda. Boni e Clark completaram o trabalho com a organização de uma grade de programação fixa de modo que os anúncios fossem vendidos em pacotes para veiculação em horários diversos. O mecanismo substituiu o predominante na televisão brasileira até 1965, sem grade fixa, em que o anunciante pagava o programa de seu interesse: as ‘novelas Palmolive’, por exemplo. A grade deu a Boni e a Clark poderes quase absolutos e recursos para criar programas ajustados a cada horário. Aí está a origem do famoso ‘padrão Globo de qualidade’.
João Falcão, um dos mais brilhantes profissionais da atualidade – músico, diretor de teatro, de TV e de cinema, há oito anos no núcleo de Guel Arraes – diz que a Globo cumpre perfeitamente seu papel de emissora comercial: ‘Ela não é uma entidade viva. É um mercado de trabalho. Se você tem competência, se faz as coisas do jeito que a consciência manda, a Globo tem espaço, sim, para vários formatos e vários caminhos para pessoas interessantes’, diz ele no set.
de filmagem de ‘A máquina’, baseado na peça homônima de Adriana Falcão, e produzido em associação com a Globo Filmes. ‘O que seria do cinema se não existisse essa escola de dramaturgia, que é a Globo?’, pergunta. Para ele, ‘o fato da produção ser feita no Brasil já conta muito’.
Daniel Filho também foi essencial na construção disso que Falcão chama de ‘mercado de trabalho’. Ele conta em seu livro ‘O Circo Eletrônico’ que substituiu seriados estrangeiros (como ‘Kojak’) por minisséries e casos especiais feitos em casa. Deu tratamento atual e mais realista aos programas, usando temas de interesse jornalístico ou baseados em fatos verídicos. A seu modo, colocou o povo no vídeo (‘Carga Pesada’, por exemplo), abriu espaço para fenômenos da vanguarda (como o feminismo em ‘Malu Mulher’) e criou o merchandising social com a abordagem de problemas como uso de drogas, violência contra a mulher ou a insatisfação popular com os políticos.
A série ‘Cidade dos Homens’, do núcleo de Guel e com a direção de Fernando Meirelles, segue esse trilho, mas tem compromissos mais complexos. E, de certo modo, uma resposta da Globo aos programas do mundo cão que roubam audiência para as concorrentes (‘Cidade Alerta’, da Record; ‘Brasil Urgente’, da Band; e ‘Repórter Cidadão’, da Rede TV!). Esses programas fazem sucesso na cama
das onde desemprego e desesperança são normas, mas há poucos anunciantes dispostos mostrar seus produtos a esses neocidadãos de baixo ou nenhum consumo. ‘Cidade dos Homens’ tenta capturar a atenção desse público, mas o tem principalmente como background para tramas bem escritas e produções de qualidade artística capazes de disputar o mercado internacional de ponta.
A série ‘Os normais’ é outro exemplo para esse mercado. Virou filme e a Globo já prepara uma parte 2 que seria vendida no exterior como uma espécie de franquia, com os roteiros originais adaptados localmente. ‘É claro que sempre usamos referências das séries americanas’, diz José Alvarenga, diretor da série. ‘Mas os nossos seriados estão dando certo porque têm muito mais malícia, têm uma boa sacanagem. Brincamos com o que não se costuma brincar.’
Na verdade, a grande sacada é combinar as vendas para o exterior com o potencial interno alavancado pela autopromoção da Globo. O diretor-geral da Globo Filmes, Carlos Eduardo Rodrigues, disse ao jornal Valor Econômico que o faturamento dos filmes foi de R$ 100 milhões em 2003. Essas produções devem arrecadar ainda R$ 25 milhões em DVDs e R$15 milhões em vendas para TV Além disso, a Globo também ganha com o que ela mesma gasta em promoção, num ‘drible da vaca’ sobre a Lei do Audiovisual: a rede joga a bola para um lado e sai pelo outro para recuperá-la.
Diz a lei que uma emissora de TV pode ser apenas co-produtora de um filme e deter até 49% das ações do empreendimento, mas por meio da Globo Filmes ela investe até 50% do custo da produção em propaganda. ‘Cazuza’, por exemplo, custou R$ 6 milhões e o mesmo tanto foi investido em publicidade, mas parte disso pagou o merchandising que a própria Globo fez em suas novelas. Guel Arraes, no entanto, pondera: ‘A Globo é uma emissora aberta, comercial. Está desempenhando o seu papel. O cinema brasileiro, hoje, deve muito à evolução da televisão. Não se vê mais com preconceito a tentativa de ir atrás do grande público. Claro que pode haver ao lado disso produções independentes, mais alternativas, filmes autorais, para um público menor, mas é bom ver o cinema nacional crescendo. A televisão também está ligada com esse movimento de defesa da identidade nacional, da cultura popular, da produção de cultura nacional.’
A história de Guel na Globo ajuda a compreender as transformações ocorridas na emissora para criar e adaptar estéticas e processos de produção às exigências da crescente comercialização dos espaços nessa mídia. Ele não é apenas um grande talento. É um batalhador. Contou o começo de sua carreira em uma entrevista à revista Cinemais, em 1997. Estudante de cinema e antropologia em Paris, Guel sonhava dirigir obras como as de Glauber Rocha e Jean Luc Godard enquanto varria o chão do Comitê do Filme, do mestre do documentário francês, Jean Rouch. Com pouco mais de 21 anos conheceu Godard e foi com ele para Moçambique, país que tinha acabado de tornar-se independente de Portugal e não tinha nem cinema, nem televisão. Godard levava para lá o projeto ‘Nascimento da imagem de uma nação’. Guel voltou ao Brasil em 1980, com a idéia de fazer cinema engajado, mas logo percebeu que teria de comer muita grama e foi trabalhar como segundo assistente de câmera e operador de VT. Na filmagem de ‘Beijo no Asfalto’, de Bruno Barreto, conheceu Tarcísio Meira, que o apresentou ao diretor da Globo Paulo Ubiratan. Na tevê, conheceu Sílvio de Abreu, que vinha da chanchada, e Jorge Fernando, ‘que era ator, vinha de Del Castilho e queria muito chegar na Rede Globo’.
Instigados por Sílvio de Abreu, os três começaram a fazer coisas velhas para o cinema, mas novas na tevê – como revelar a presença da câmera, fazer o ator falar para ela; ou subverter a imagem dos atores jogando uma torta na cara do galã. O esquema deu certo. O trio fez três novelas-chanchada – ‘Guerra dos Sexos’, ‘Verão Tropical’ e ‘O Jogo da Vida’ – e repaginou o estilo da comédia na Globo, que até ali tinha como ponto alto o ‘Chico City’, de Chico Anísio.
Em 1985, na série ‘Armação Ilimitada’, Guel implantou um novo tipo de edição, com velocidade de videoclipe, formato que fazia sucesso na MTV e começava a ter grande influência sobre os jovens. Foi Daniel Filho quem percebeu a importância de desenvolver o formato na Globo. Chamou Antônio Calmon, que ainda não trabalhava na TV, mas havia dirigido no cinema ‘Menino do Rio’; Euclides Marinho; o jornalista Nelson Motta e Patrícia Travassos, do grupo Blitz. Eles descobriram uma fórmula que misturava música, videoclipe e esporte. O ‘Armação’ era uma paródia de seriado americano, sem deixar de ser um verdadeiro seriado brasileiro. O humor do ‘Casseta & Planeta’ é uma paródia da própria Globo. E ‘TV Pirata’ era uma citação da televisão, com 14 autores, coisa totalmente nova na Globo.
As novelas mudaram muito. Agora, elas têm pelo menos cinco blocos em cada capítulo para se encaixarem os intervalos comerciais. Antes, eram três blocos. Com isso, ganharam uma estrutura mais complicada. O autor precisa escrever cinco cenas de suspense para finalizar cada bloco e manter o espectador ligado. Autores como Janete Clair, Dias Gomes e Cassiano Gabus Mendes, escreviam as novelas sozinhos, e Glória Perez e Benedito Ruy Barbosa ainda o fazem, mas, cada vez mais, o processo de escrita é feito em conjunto. Aguinaldo Silva, por exemplo, autor de ‘Senhora do Destino’, tem oito roteiristas para os quais distribui as cenas.
A industrialização da novela ocorreu também na produção: no princípio, um capítulo tinha 20 minutos e externas eram raras. Havia oito a dez cenários, doze a quinze personagens. Hoje, cada capítulo tem 45 minutos, cerca de 30% de externas, o elenco e os cenários são maiores, existem ações complicadas, desastres, festas, barcos em alto mar, helicópteros, viagens ao exterior, navios, cidades cenográficas.
‘A novela é o produto mais tradicional da televisão, tem que atingir o máximo da audiência, agradar o máximo de gente’, diz Guel. ‘O autor trabalha com clichês, precisa escrever rápido; o produtor está preocupado com a hora de trabalho, que é cara, com o elenco, os técnicos. A novela é o Boeing da televisão. Com um Boeing, a mínima pirueta já é uma grande acrobacia. Se um diretor consegue inovar um pouco em uma novela, já pode estar fazendo uma grande coisa.’
Influenciado pelo ‘cinema verdade’, que aprendeu com Jean Rouch, Guel fez outras inovações, como a série de documentários ‘Programa Legal’, com Regina Casé e Luís Fernando Veríssimo. Inovou também ao chamar autores e atores para fazer uma ‘televisão de grupo’. ‘O meu trabalho é um pouco o de administrar esse grupo’, diz ele.
Faz 24 anos que Guel está na TV Tenta transformar encomendas usando propostas suas ou propõe produções que viram típicos programas de televisão. Seu núcleo é uma produtora de alta qualidade dentro da Globo. O projeto ‘Cidade dos Homens’, com Fernando Meirelles, deve evoluir a partir do ano que vem, de modo que os roteiros sejam trabalhados como módulos de um longa-metragem. A produtora de Meirelles, a O2 trabalha para a Globo em contrato de terceirização, uma inovação introduzida por Marluce Dias da Silva.
A Globo queria que ‘Cidade dos Homens’ fosse semanal ou tivesse, pelo menos, treze episódios por ano com um formato de aceitação internacional, pois pretendia vendê-la para a Fox. Mas a OZ considerou a relação custo/benefício muito inferior à das produções que faz para a publicidade e preferiu fechar apenas cinco episódios anuais. Segundo Guel, o programa não é caro para os padrões da Globo. Mas quem tem os direitos sobre a obra é Meirelles e a Globo não poderia produzir a série sozinha. Mesmo com o número de episódios reduzidos, ‘Cidade dos Homens’ já foi vendida para 15 países.
O núcleo de Guel é um nicho de excelência na Globo que tem o direito de existir porque é dela. Tal como no futebol, a emissora joga pesado para abafar talentos que não estão na sua folha de pagamentos. O caso de Meirelles é interessante. Ele é um tipo de gênio do audiovisual. No fim dos anos 80, com 20 anos, criou a produtora Olhar Eletrônico e inventou a TV Mix, que tinha um repórter esquisito, Ernesto Varella (vivido por Marcelo Tas), que
chegou a perguntar a Paulo Maluf se ele era ladrão. A TV Mix durou três anos. Foi barrada pelo todo poderoso Boni, que passou 20 anos torpedeando experiências novas que surgiam fora e dentro da Globo.
A TV Mix tinha um conceito de TV-rádio, 24 horas no ar, sem novelas, com programação alternativa, reportagens nas ruas e serviços. Tinha boa audiência e era lucrativa. Mas usava a antena da TV Gazeta, em São Paulo, que não tinha sinal para emitir para muito além dos limites da cidade. Boni fez, então, um acordo com a Gazeta: Propôs comprar uma antena para ela, em troca do veto à TV Mix. Hoje o sinal da Globo em São Paulo sai dessa antena no prédio da Gazeta na avenida Paulista.
Em um boteco popular na zona oeste de São Paulo, não muito longe da produtora O2, REPORTAGEM ouviu os roteiristas Leandro Saraiva e Newton Cannito, que escrevem os próximos cinco episódios de ‘Cidade dos Homens’. Eles venceram um concurso de roteiros organizado pela Oz na Internet e foram convidados para redigir os episódios, com um contrato por meio da empresa de Cannito, a Educine. Estão satisfeitos com os R$ 16 mil que receberam (R$ 8 mil cada) pelos cinco roteiros. ‘Espero que o povo goste, pois assim – quem sabe? – teremos mais uma boquinha’, diz Leandro.
Para eles, o modelo de associação com produtoras independentes, desenvolvido por Guel é o que salva a Globo, diversifica o conteúdo e democratiza a emissora. ‘Nos EUA a TV funciona assim’, diz Leandro. ‘Milhares de produtoras pequenas tentam vender seus projetos para as redes.’ Um dos melhores contos de ‘Comédias da Vida Privada’, do núcleo de Guel, começou como um roteiro do gaúcho Jorge Furtado para um longa-metragem, ‘Anchietanos’, filmado de forma independente com sua produtora Casa de Cinema e vendido para a Globo, lembra Leandro.
Mas o trabalho de Guel é a cereja no bolo no contexto mais amplo da rede. Guel, pode – e deve – usar seu talento e sua relação com a emissora para manter o que ele rotulou de ‘cinema popular brasileiro’, inspirado na música popular brasileira, que associou sua qualidade à indústria. Leandro e Newton não afastam a possibilidade de a Globo ter interesse comercial na associação com independentes, pois, como em toda terceirização, os trabalhadores nessa condição custam menos do que os contratados com carteira assinada. Mas dizem que, pelo menos no núcleo de Guel, os produtores independentes têm vez.
‘No Brasil, quando falamos de produções independentes, que vão vender novelas, minisséries, telefilmes, não estamos falando de empresas pequenas, de Leandros Saraivas ou Newtons Canittos. Estamos falando de estruturas grandes com a Casablanca [que produziu a fracassada novela `Metamorphose’, da Record], ou a 0 2, que é a maior produtora de audiovisual da América Latina. O negócio principal dessas produtoras é a publicidade e programas para vender para fora. Por enquanto, só existem essas duas capazes de fazer isso de forma independente da Globo’.
Leandro acha que a Globo precisa investir ainda mais no mercado internacional para sair da crise: ‘A novela é uma economia que funciona, um modelo certo. Mas a Globo erra no mercado internacional’, diz ele. A O2 faz produção de ponta, mas a Globo não sabe fazer produção de ponta. Prefere vender novela ‘por metro’ (por hora, ele quer dizer) em vez de investirem obras isoladas filmadas em película, que é o que dá dinheiro lá fora.’
De fato, o saldo da exportação de novelas, vendidas ‘por metro’ é modesto: a Globo vende 115 horas diárias de programação para 51 países ao preço de US$ 29 milhões. Com as séries, minisséries e telefilmes – formatos que podem ser vendidos como obras isoladas – a Globo pode ganhar muito mais do que isso, diz Leandro. A direção da emissora trabalha nesse sentido e anunciou no final de agosto um projeto de co-produção com independentes de 12 telefilmes por ano, a partir de 2005. Cada filme terá entre 70 e 75 minutos, formato comum nas tevês americanas e européias. O custo é mais modesto do que o de um produto de cinema, em torno de R$ 400 mil, e as perspectivas de exportação são boas.’
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‘Nacionalista, pero no mucho’, copyright Oficina de Informações, 30/09/04
‘O debate em torno do projeto do Ministério da Cultura (MinC) de criação da Agência Nacional do Cinema e Audiovisual (Ancinav), para suceder a atual Agência Nacional do Cinema (Ancine) oferece pistas para se compreender o recente manifesto nacionalista da Globo. A proposta do MinC começou a ser desenhada em junho de 2003 e só foi divulgada amplamente em agosto deste ano. Nesse período, foi apresentada a emissoras de tevê, cineastas, distribuidores, exibidores e representantes de outras áreas do setor. Houve consulta a juristas, um estudo de mercado e uma avaliação das legislações de outros países, como França, Coréia, Argentina e Austrália.
O MinC queria uma nova agência para regular e incentivar a produção e a difusão de conteúdos audiovisuais alternativos e nacionais. Propunha cotas mínimas de programação regional e produção independente, impondo taxa de 4% sobre a propaganda na tevê; taxa de R$ 600 mil para filmes com mais de 200 cópias (a taxa hoje é de R$ 3 mil independentemente do número de cópias); de 10% do ingresso do cinema e de 9% sobre a venda de fitas de vídeo e DVDs. Estimava-se com isso uma arrecadação de cerca de R$ 400 milhões por ano, a ser destinada ao Fundo de Fiscalização do Cinema e do Audiovisual (Fiscinav) e ao Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual (Funcinav). Desse modo, o desenvolvimento dessas atividades seria financiado pelo próprio setor.
Pouco depois da proposta do MinC ter sido apresentada aos representantes da Globo, dias antes do seminário no Tuca, a então diretora-geral da emissora, Marluce Dias da Silva, reuniu-se no Projac por mais de dez horas com duas dezenas de cineastas, entre eles Luiz Carlos e Lucy Barreto, Cacá Diegues, Sandra Werneck, Walter Lima Júnior, Alain Fresnot, Paula Lavigne, Diler Trindade, Hugo Carvana e Gustavo Datil. Marluce tentou convencê-los da importância de evitar que o governo obrigasse as tevês a exibirem cotas mínimas de programação regional e produção independente e cobrasse a taxa de 4% sobre os anúncios.
O cineasta Roberto Farias, que tem um núcleo de criação na Globo, auxiliava Marluce na reunião. Farias é membro do Conselho Superior de Cinema e pai de Maurício Farias, diretor da série ‘A Grande Família’. Comentou-se que a direção da rede defende seu nome para a presidência da futura Ancinav. Ele deixou entrever sua plataforma: no momento em que Marluce defendia leis de incentivo para que as tevês produzam ‘conteúdo nacional’, ele disse considerar justo que a tevê receba incentivos do governo inclusive para fazer novelas. Marluce disse que investimentos como a parceria entre a produtora 0 2 e o núcleo de Guel Arraes são feitos pela Globo por ‘idealismo e amor ao Brasil’.
Para reforçar o argumento, disse que a emissora fatura em um ano o que uma empresa de telefonia celular fatura em três meses; que a Globo é 40 vezes menor do que a Time-Warner e que se as empresas estrangeiras passassem a produzir, sem regras rígidas, conteúdo para mídia digital – TV no celular, na Internet – a sobrevivência da Globo estaria ameaçada. O jornalista Luís Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicações, reforçaria as palavras de Marluce: ‘A Globo é a única emissora que investe quase que totalmente em conteúdo nacional. Nossa matéria-prima são as diversas formas de cultura brasileira. A produção brasileira própria da Globo ocupa 98% da grade de programação. Não existe nada parecido com isso no Brasil.’ Segundo ele, a Globo é contrária a cotas obrigatórias de programação independente e regional porque isso ‘choca-se com o princípio constitucional da liberdade de criação e programação’. E afirma que uma contrapartida da emissora é o seu apoio ao cinema nacional, ‘sem grande retorno financeiro’.
O fato é que a gritaria foi geral quando o ministro Gilberto Gil deixou às claras a proposta da Ancinav. Nas semanas seguintes à apresentação da primeira versão do projeto, em 5 de agosto, desabaram críticas no noticiário da TV Globo, nos jornais do grupo e na Internet. O cineasta Cacá Diegues foi o campeão no bombardeio. Em artigo n’ O Globo, disse que o projeto era autoritário e centralizador. Baixada a poeira, o presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio de Janeiro, Paulo Thiago, propôs reabrir o diálogo com o governo e apontou como ponto positivo do projeto a reformulação dos fundos de capacitação de cinema, que estavam parados. Outras entidades também apoiaram o projeto do MinC, com poucas ressalvas. Entre elas, a Associação de Produtores e Realizadores de Filmes de Longa Metragem de Brasília (Aprocine), o Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), a Associação Brasileira de Documentaristas e CurtasMetragistas, além dos cineastas Eduardo Escorel e Sílvio DaRin. No Festival de Gramado foi lida uma carta de apoio ao projeto. A Associação Paulista de Cineastas (Apaci) e a Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão (ABPI-TV) se mostraram a favor.
O pernambucano Cláudio de Assis, um produtor típico do bom cinema brasileiro atual, diretor de ‘Amarelo Manga’, é direto: ‘Tem que taxar as grandes produções, sim, porque isso é uma forma de se fomentar o oinema nacional. Mas tem gente que está sentindo seus calos porque quer mudar as regras. Estão se perguntando: ‘Cadê o meu lucro?’. O audiovisual no país é uma questão estratégica, não podemos deixar as decisões nas mãos das empresas estrangeiras, as majors’, diz ele.
Paulo Halm, diretor de ‘Guerra dos Canudos’, afirmou que o anteprojeto do MinC é o projeto original da Ancine aprovado no Congresso Brasileiro de Cinema, em 1998, em Porto Alegre, o qual, então, fora apoiado por Cacá Diegues: ‘Surgiu como uma reação do setor à inércia do MinC e da Secretaria do Audiovisual no governo de Fernando Henrique’.
O 3° Congresso, em 2000, formulou uma pauta com 76 deliberações (Cacá Diegues estava lá), levada a FHC por Gustavo Dahl. A pauta seria incorporada ao Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema (Gedic), ligado à Presidência e incumbido de formular a política pública para o setor. Além de membros do governo, participaram do Gedic, o produtor Luiz Carlos Barreto, o exibidor Luiz Severiano Ribeiro Neto, o representante dos distribuidores Rodrigo Saturnino Braga, o diretor da Globo Evandro Guimarães, mais Gustavo Dahl e Cacá Diegues, este como representante dos diretores de cinema.
Paulo Halm diz que o projeto do Gedic redigido por Cacá era bastante avançado, mas foi castrado na parte que referiase à televisão e acabou votado como a Lei 2228-1, que criou a Ancine em 2001. Halm pergunta: ‘O que teria mudado conceitualmente, já que a redação não foi alterada, cujo relator era o Cacá Diegues, para o anteprojeto de lei proposto agora pelo MinC?’ Para ele a resposta é simples. ‘Na verdade, ó que Cacá defende como modelo bem sucedido está se configurando como o cartel mais poderoso, concentracionista e restritivo já visto na história do cinema brasileiro: A união entre a Globo Filmes e as majors, as grandes distribuidoras estrangeiras. União não só restrita à exibição, mas que se estende à produção.’
Em entrevista à Folha de S. Paulo Gilberto Gil negou que o projeto fosse radical por citar a necessidade de combater o monopólio ou o oligopólio no setor de comunicações. ‘No capitalismo moderno, tenho a impressão de que oligopólios e monopólios são naturalmente combatidos. A livre competitividade e a equalização das oportunidades para o mundo produtivo são coisas desejáveis’. Perguntado se a Globo era opositora no projeto, o ministro rebateu: ‘A Globo quer ser monopolista e oligopolista? Se quer, isso é com eles, não comigo. O MinC trabalha com o pressuposto de que ninguém deve ser monopolista e oligopolista’.
O cineasta gaúcho Giba Assis Brasil, que trabalha com Furtado, foi na mosca: ‘Diante dos que falam mal do projeto sem ter lido, eu me reservo o direito de falar bem, do mesmo modo’. Um dos fatores que pode ajudar a explicar o desacordo da Globo com a proposta de criação da Ancinav, segundo um dos assessores do ministro Gilberto Gil, é a renegociação da dívida da Globopar, que envolve a venda da NET para a empresa de telecomunicações mexicana Telmex, dona da Embratel. Os credores internacionais podem não querer aceitar o negócio se houver a taxação proposta pelo projeto. A Telmex dividiria o controle da Net com a Globopar pagando por isso algo entre R$ 750 milhões a R$ 1,1 bilhão.
Carlos Slim Helú, dono da Telmex é apontado pela revista Forbes como o homem mais rico da América Latina. No México, é dono do grupo Carso (indústria e varejo), da Condumex (infra-estrutura), da Nacobre (cobre, alumínio e plástico), da Porcelanite (cerâmica), da Cigatam (cigarros), da Frisco (setores ferroviário, químico e de mineração), da Sanboms (varejo), da El Globo (alimentos), da Mixup (música) e da Sears (varejo). Em fevereiro, comprou a AT&T Latin America no Brasil, na Argentina, no Peru, no Chile e na Colômbia. Em julho, assumiu 51,7% das ações com direito a voto da Embratel, por R$ 1,2 bilhão. E também controla a Claro, operadora de telefonia celular.
Na última reunião de membros do Conselho Superior de Cinema (CSC), em 30 de agosto, o MinC entregou uma nova versão do anteprojeto de lei que cria a Ancinav. O CSC é composto por ministros do governo e por 12 especialistas da indústria cinematográfica e videofonográfica nacional. A reunião decidiu excluir artigos que causavam polêmica em razão do suposto caráter intervencionista na produção audiovisual brasileira e cunho nacionalista. O artigo mais criticado a versão original (o 43) ganhou nova redação. Onde se dizia que compete à Ancinav ‘dispor especialmente sobre a responsabilidade editorial das atividades de seleção e direção da programação’ das empresas de TV, agora está escrito que ‘à Ancinav compete o cumprimento do disposto no parágrafo 2° do artigo 222 da Constituição Federal’. O artigo 222 é o que estabelece que a propriedade de empresas jornalísticas e de TV deve ser de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ‘aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual’.
As alterações foram solicitadas por Gilberto Gil. Ele pediu à sua equipe que retirasse da proposta qualquer termo que pudesse ser interpretado como intromissão do governo no conteúdo cultural. ‘Foram feitas modificações semânticas, para evitar dúvidas de interpretação, e de conteúdo, que deixam claro queobjeto da Ancinav é a regulação da atividade’, explica o secretário de Audiovisual, Orlando Senna. No novo texto, o MinC retirou o trecho do artigo 4° que falava em incentivar os exploradores de atividades audiovisuais a ‘respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família’ e que vinha sendo interpretado como ‘dirigismo’.
No capítulo referente ao Funcinav, foi acrescentado que ‘os recursos do Fundo serão destinados prioritariamente na expansão do parque exibidor nacional, no fomento de distribuidoras brasileiras, no fomento de carteiras de produção de empresas brasileiras, na ampliação da capacidade de produção independente de obras’. O novo texto reforça o propósito de ‘transformação’ da Ancine em Ancinav e não na eliminação da primeira. Palavras como ‘controlar’ sumiram do anteprojeto. No artigo 10°, inciso V, ficou assim: Cabe ao MinC aprovar e acompanhar (antes era controlar) a execução de projetos de co-produção, produção, distribuição, comercialização, exibição e infra-estrutura realizados com recursos públicos e incentivos fiscais.
O governo também retirou do antigo artigo 20° a possibilidade de intervir para resolver administrativamente conflitos de interesses entre exploradores de atividades cinematográficas e audiovisuais. Ao mesmo tempo propõe-se a não ‘atuar relativamente às atividades cinematográficas e audiovisuais, no controle e prevenção de infrações à ordem econômica, propondo a instauração de processo administrativo pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica’.
Mas a maior mudança, que pode ajudar a Globo a aceitar o projeto, embora a taxação de todos os elos da indústria audiovisual continue como no projeto original, foi a supressão total do artigo 8°, o qual estabelecia, em seu parágrafo único, que ‘o Poder Público, levando em conta os interesses do País no contexto de suas relações com os demais países, poderá estabelecer, mediante lei, limites à participação estrangeira no capital de exploradora de atividades audiovisuais’.
A dívida da Globopar, que ainda depende em grande parte do governo para ser resolvida, poderia, assim, ter o respaldo da Telmex. A mexicana não esconde que quer o controle de 100% do capital da Net. É hora das coisas ficarem claras: para a Globo, ser nacionalista não vai além do marketing; para o governo ser nacionalista é o quê? Para que lado se inclinará o governo Lula?’