‘A capital paulista, nos idos de 1860, poderia ser definida como uma cidade provinciana. O período do bandeirantismo havia acabado sem deixar opulência, e São Paulo mais lembrava uma aldeia colonial. Cerca de três séculos depois de sua fundação a cidade quase nada se modificara, estendendo-se pouco além dos estreitos limites assinalados pelos rios Tamanduateí e Anhangabaú. Plantava-se chá no viaduto do morro (hoje Rua Barão de Itapetininga) e colhiam-se maços de agrião no atual Parque do Anhangabaú, onde também se caçavam lagartos. A pequena população de aproximadamente 20 mil almas dormia cedo, já que as ruas não eram iluminadas e as regiões residenciais tinham pouco movimento e comércio.
Não havia elegância nos 4.017 prédios, e as casas eram feitas de taipa e branqueadas com tabatinga, o que tornava trabalhosa a sua conservação e acarretava a presença de ‘telheiros’, os grandes profissionais locais. Por sinal, apenas a agitação dos estudantes de direito, ‘a mocidade acadêmica’, é que retirava o local, durante o período de aulas, de sua habitual sonolência.
De resto, ‘a civilização morava longe’. As notícias da Corte, a grande difusora de modas, custavam a chegar e as benesses do progresso caminhavam lentamente. Os transportes eram precários, os teatros desanimados e até mesmo a Casa da Ópera, na praça São Gonçalo, fechara suas portas em reconhecimento à pouca atividade local.
São Paulo também demorou a conhecer uma imprensa própria. O Paulista surgira em 1823 e durara apenas alguns meses. Nos anos 60 somente O Ypiranga e O Correio Paulistano (famoso órgão oficial) sobreviviam e se limitavam a reproduzir anúncios de escravos fugidos, ou a anunciar, vez por outra, notícias da barca que chegava ou partia de Santos.
Mas a cidade estava prestes a mudar, e os efeitos do café, que adentrara o Oeste Paulista, já se faziam sentir. A cultura cafeeira encontrara guarida nos terrenos férteis de terra roxa, e a estrada de ferro começava a se tornar realidade, lançando seus trilhos Serra do Mar abaixo até chegar ao cada vez mais movimentado porto de Santos.
E é nesse ambiente tacanho que surge o Diabo Coxo: um jornal repleto de imagens de Ângelo Agostini, artista formado em Paris que se mudara para São Paulo em 1863, um ano antes da fundação da revista.
A chegada do periódico significou um ‘pandemônio’, um ‘atropelo’, o ‘diabo’ – para ficarmos com os termos da época. Por apenas 500 réis, o preço de um almoço, comprava-se a edição e o acesso direto ao mundo das imagens e das crônicas. Contando com textos do abolicionista Luis Gama e de Sizenando Nabuco de Araújo, irmão de Joaquim Nabuco, além dos desenhos de Agostini, esse pequeno jornal domingueiro – de 18 por 26 cm, com oito páginas e quatro ilustrações, entre caricaturas, anedotas, adivinhas – chegava para fazer barulho.
O Diabo Coxo surgia alardeando seus métodos ‘modernos’ de venda: podia-se assinar o jornal por um período de 12 números anuais, ao preço também camarada de 4$000 réis na capital e de 5$000 réis fora dela. Tratava-se de uma ‘bela promoção’, comparada a duas diárias em um dos poucos hotéis da cidade, e seus idealizadores não se cansavam de destacar as vantagens do negócio.
É certo que o veículo duraria pouco, como era praxe entre os jornais do 19. O primeiro número saiu datado de 2 de outubro de 1864 e encerrou-se em 25 de dezembro do mesmo ano; a segunda série teria início em 23 de julho e duraria até 31 de dezembro de 1865. Mas o jornal cobriria um período importante, tendo a oportunidade de relatar os impasses da desastrada Guerra do Paraguai, as vicissitudes da Corte (que vivia nos trópicos como se estivesse em Paris), e o movimento da cidade que decididamente começava a se animar.
Mais do que isso, São Paulo seria invadida pelas imagens de Agostini, que permitiam reconhecer políticos, o Imperador d. Pedro II em trajes civis ou majestáticos, e figuras da Corte como o conde d’Eu. Afinal, tratava-se de um ambiente que mal e mal conhecia a fotografia: Militão publicara em 1862 seu álbum de imagens, captando com suas lentes diferentes pontos da capital paulistana – quase uma cidade fantasma. Começava-se a ‘ler imagens’ e por aí havia muita novidade.
Agostini, artista que crescera entre a arte italiana e a finesse francesa, criava, com Diabo Coxo, seu primeiro jornal ilustrado e de caricaturas. A ele se seguiriam o Cabrião, o Arlequim, A Vida Fluminense, a novela As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de Uma Viagem à Corte, os desenhos de O Mosquito e finalmente, em 1876, A Revista Ilustrada, com certeza o periódico mais estável e influente do Segundo Reinado. Como se vê, Agostini fez da sátira e da caricatura uma arma de combate, e tratou, através das imagens, dos temas mais eloqüentes do período: a abolição, a Guerra do Paraguai, a campanha republicana. Depois de seis anos de exílio em Paris, Agostini editaria ainda o Don Quixote (1895-1902), publicação que carregava no seu título a alegoria a esse cavaleiro das utopias.
Foram 46 anos de trabalho e mais de 6 mil páginas de arte que fizeram de Agostini um ‘repórter do lápis’; como gostava de ser chamado. Mas o Agostini de Diabo Coxo estava apenas engatinhando. Mesmo assim estão presentes as características que fariam do artista um dos grandes intérpretes do Império brasileiro: o traço forte, o realismo dos retratos, a crítica à situação social, a ironia contra tudo e todos. Numa época em que faltavam imagens o desenho de Agostini era, a um só tempo, documento e criação; fato e ficção. Nada como rir de sua caracterização ‘das comodidades de uma estrada de rodagem’ quando os passageiros são quase lançados em um abismo. É difícil não gargalhar dos desenhos da Estação da Luz, onde ‘só apostavam com luz, havendo pouca luz’; das ironias acerca dos espetáculos do Teatro São José; dos festejos de recepção presidencial da Rua Direita (quando não há ninguém nas ruas); ou do paralelo entre asnos e políticos: tema recorrente em nosso autor. Agostini se faz também de repórter ao retratar o desastre de 6 de setembro, quando um trem descarrilou no vale da várzea. Era a modernidade que mostrava sua face difícil e revelava como em São Paulo conviviam várias temporalidades: o tempo rápido da estrada de ferro, o tempo breve do burro de carga; a modernidade que acelera e ao mesmo tempo mata com seus desastres.
Mas o pincel polêmico de Agostini conviveria, em o Diabo Coxo, com a pena tensa de Luis Gama, que não se cansará de provocar a sociedade local. Logo no primeiro número o cronista já dava mostras do estilo que imprimiria no jornal: ‘Como principiar se todos os princípios já foram tomados por esses tantos cronistas conservadores que por aí aparecem à tona dos jornais… Depois da notícia que começamos a dar o que resta tratar? Eleições? Política? E o que é política? Não sei leitores – asseguro-lhes, porém, que frades, médicos, soldados, negociantes, engenheiros… enfim todos nós só desejamos ser políticos…’
A edição fac-similar de Diabo Coxo (216 págs., R$ 65) é assim um empreendimento que merece atenção. De um lado, a edição revela a atualidade desse tipo de crônica e a paternidade de Agostini no exercício da charge política. Por outro lado, em um país em que se maltrata a memória e que documentos parecem ser sinônimo de poeira, uma publicação como essa permite a um público maior reconhecer como as imagens e notícias têm história; ou melhor, carregam muitas histórias. Essa publicação, que representa um esforço conjunto do IHGSP, do Ciee e da Edusp, significa um passo fundamental para que se recupere a prática, rara entre nós, de lidar com a memória. Não a memória que é símbolo de oficialismo e exaltação, mas aquela que implica, no limite, um certo incômodo e um constrangedor auto-reconhecimento.
Basta citar mais uma vez Luis Gama, e lembrar como a ‘mera semelhança’ pode ser, às vezes, muito mais do que uma ‘mera semelhança’: ‘Não foi só por ser mais alto/Que ele rei julgar-se quis/Foi pela forma tremenda/Do seu tremendo nariz/Mas o melhor de seu sestro,/É mesmo para pasmar;/Quanto mais néscio se mostra,/Por mais douto quer passar.’
Lilia Moritz Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e autora de uma série de livros, entre eles As Barbas do Imperador – D. Pedro II, Um Monarca nos Trópicos (Companhia das Letras, 1998)’
PIF-PAF
DE VOLTALuiz Fernando Vianna
‘Números históricos de ‘Pif Paf’ voltam a circular’, copyright Folha de S. Paulo, 31/03/05
‘Quatro décadas já se passaram, mas aqueles quatro meses de 1964 continuam sendo lembrados pelo que influíram no jornalismo, no humor e na inteligência do Brasil. Os históricos oito números da revista ‘Pif Paf’, criada e liderada por Millôr Fernandes, estão deixando de ser preciosidade de sebos e voltando às ruas.
A coleção fac-similar ‘Pif Paf Quarenta Anos Depois’ será lançada amanhã, às 19h, no Centro Cultural Correios, no Rio, onde está em cartaz a mostra ‘Millôr -Enfim uma Exposição sem Estilo’. A partir de segunda-feira, a caixa com as oito edições chegará às livrarias. Da tiragem de 3.000 exemplares patrocinada pela Petrobras, 2.000 serão vendidos.
‘No topo da árvore genealógica do atual humor brasileiro está o ‘Pif Paf’, diz Eliana Caruso, organizadora da coleção, chamando a revista de ‘o’ ‘Pif Paf’, como se dizia na época. Foi por sugestão de seu cunhado, o cartunista Paulo Caruso, irmão de seu marido Chico Caruso, que Eliana concebeu o projeto da reedição, lançada agora dentro da programação do 16º Salão Carioca de Humor.
Os exemplares usados para fazer a edição foram cedidos pelo próprio Millôr Fernandes, 80. Como sempre disse e repete no texto que acompanha a coleção, Millôr foi ‘pressionado’ a criar o ‘Pif Paf’ por amigos revoltados com o que ‘O Cruzeiro’ fizera com ele.
Depois de 25 anos trabalhando na revista e titular das 12 páginas do suplemento ‘Pif Paf’, Millôr motivou um editorial em que a revista pedia desculpas aos leitores por causa de ‘A Verdadeira História do Paraíso’, a sua versão de Adão e Eva.
Millôr, então, se associou a Ziraldo e aos então pouco ou nada conhecidos Claudius, Fortuna e Jaguar para criar a revista. Eugênio Hirsch cuidou da qualidade gráfica e, dentre os colaboradores, estavam Rubem Braga, Sérgio Porto e Antônio Maria.
Quinzenal, o ‘Pif Paf’ teve seu primeiro número publicado em maio e o último em agosto, quando Millôr, numa irônica ‘Advertência!’, dizia que, se o governo não tomasse providências, ‘dentro em breve estaremos caindo numa democracia’. O incipiente regime militar fechou a revista.
‘Foi bom porque saímos de maneira honrosa’, diz Jaguar.’
Marcelo Carneiro
‘Pequena abusada’, copyright Veja, 5/04/05
‘Em agosto de 1964, cinco meses após o início do regime militar e com apenas oito números, um editorial de Pif Paf alertava: ‘Se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda a sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia’. Foi o suficiente para que tivessem fim o primeiro tablóide do jornalismo carioca e a curta carreira do humorista Millôr Fernandes como dono de revista. Pif Paf teve existência breve e pequena tiragem – apenas 20.000 exemplares -, mas influenciou todos os jornais da imprensa alternativa que viriam em seguida, inclusive o mais bem-sucedido deles, O Pasquim. Pelas quatro décadas seguintes, seus raros exemplares tornaram-se peça de colecionador. Agora, poderão ser vistos em conjunto em Pif Paf (Argumento; 80 reais), uma caixa que traz as oito edições e textos de apresentação de alguns dos colaboradores da revista, entre eles os cartunistas Ziraldo e Claudius e o próprio Millôr, hoje colaborador de VEJA.
Ao contrário de boa parte do que se produziu na imprensa alternativa nos anos 60 e 70, Pif Paf não cheira a mofo. Suas capas.(como as duas reproduzidas nesta página) aliavam humor cáustico e projeto gráfico moderno, criação do austríaco Eugênio Hirsch, ‘um maluco fora de série que detestava a Áustria’, na definição do próprio Millôr. A publicação nasceu da demissão do humorista das páginas de O Cruzeiro, principal revista da época, na qual trabalhou por 25 anos e da qual saiu por ter escrito uma irreverente Verdadeira História do Paraíso, atraindo a ira de conservadores católicos. Desempregado, mas contando com a ajuda de amigos e de um empréstimo bancário, Millôr foi à luta e transformou em revista sua coluna em O Cruzeiro, que também tinha o nome de Pif Paf.
O ar mambembe – ‘Muita gente reclamou do papel de nosso primeiro número. Não estamos vendendo papel, estamos vendendo idéias’, dizia um dos editoriais – não impediu que o tablóide incomodasse o regime militar. Em suas páginas, nem o general Castello Branco, recém-empossado presidente de um regime linha-dura, escapou de virar piada. Um documento oficial da área de inteligência do Exército classificou a revista como primeiro exemplo de imprensa alternativa e seu dono como ‘esquerdista’ – rótulo que causa urticária a Millôr. ‘Nunca fiz nada por ideologia, até hoje não sei o que quer dizer esquerdista e tenho horror a ser herói’, diz o humorista. Isso não impediu que Millôr fosse chamado várias vezes para depor sobre Pif Paf e, pressionado também por uma dívida crescente, abandonasse o projeto. Foram apenas quatro meses e oito números. Mas divertiram – e irritaram – o bastante para entrar na história.’