Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Limbo, lugar religioso e literário


Jornal do Brasil, 4/05


Deonísio da Silva


Limbo: um lugar religioso e literário


Depois de ter canonizado 483 pessoas e beatificado outras 1340, João Paulo II também foi beatificado no último domingo, dia primeiro de maio. E, coisa rara na Igreja, beatificado por seu sucessor!


Mas esta foi apenas uma das tantas modificações que ele determinou ou deflagrou. Outra, muito interessante, é o fim do Limbo, sobre o qual pouco lemos na mídia brasileira, mas que é tema muito ligado à biografia do papa agora beatificado.


O Limbo nasceu de inevitáveis adaptações da tradução da bíblia do hebraico para o grego, dali para o latim e por fim a centenas de línguas entre as quais a portuguesa. Tudo começou quando o hebraico Sheol foi vertido para o grego como Hades. Daí passou ao latim Infernum, que deu Inferno em português.


Esse estranho lugar surgiu na Idade Média como etapa intermediária, mas diferenciada do Purgatório. Dante situou o Limbo no primeiro círculo do Inferno, informando que ali estavam os pagãos virtuosos, como os filósofos da Antiguidade, os profetas do Antigo Testamento e todos os justos que tinham morrido antes da morte de Jesus.


A Igreja soube aproveitar o imaginário popular, fixou e diferenciou vínculos oriundos de antigas religiões animistas. E passou a defender na doutrina que Jesus, depois de morto, desceu aos infernos para salvar com a sua ressurreição todas aquelas almas.


Esta doutrina veio parar numa oração clássica, o Credo, também chamado Símbolo dos Apóstolos, que o papa Bento VIII inseriu na missa, no ano 1020. Ali se diz que ‘Jesus desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus e está sentado à direita de Deus Pai Onipotente, de onde há de vir julgar os vivos e os mortos’.


No final do mesmo credo, a forma verbal latina credo (eu creio) muda para expecto (eu espero): ‘expecto ressurrectionem mortuorum et vitam venturi saeculi’ (espero a ressurreição dos mortos e a vida dos séculos vindouros). Já a expressão ‘venturi saeculi’ foi adaptada no português para ‘a vida eterna’. Mas originalmente não integrava o objeto direto das formas verbais ‘credo’ (creio) e ‘confiteor’ (confesso). Tinha sido posta lá no finzinho da oração, bem distante desses dois verbos.


O Limbo continua em estudos sob Bento XVI, que ajudara, como teólogo poderoso, a punir com o recurso ‘silêncio obsequioso’ (isto é, por favor fique quieto um tempo) o brasileiro Leonardo Boff, querendo com isso jogá-lo num limbo aqui no Brasil e no mundo. Não conseguiu calar o seu ex-aluno, cujo livro prefaciou na edição alemã!


De modo que a mídia tem uma boa pauta nessa beatificação de João Paulo II. Pode aprofundar o exame das questões que levam a Igreja, como de resto todas as instituições, a vigiar e a punir, a premiar e a dignificar. Os títulos têm também essas funções. Uns são chamados de santos, outros de hereges.


Mas também para eles há o caminho do meio, afinal in medio virtus. E a revisão do Limbo faz parte desta estratégia, que vai rever a vinculação de escritos de autores referenciais da doutrina.


O Purgatório é outro castigo que se tornou leve, como o limbo, que Santo Agostinho definiu com o mesmo rigor do Inferno. Mas outro santo contou que sua irmã, muito vaidosa, sobretudo com os cabelos, foi condenada a passar alguns dias no próprio túmulo, depois de morta, para acompanhar o apodrecimento do próprio corpo. E que para ela tinha sido prescrito passar trinta dias de Purgatório no local onde tinha sido enterrada.


Tal como o cristianismo, também as concepções afro-brasileiras aproveitaram antigas heranças das religiões animistas, que dizem que as almas vagam dias e dias no local onde viveram antes de partir desta para a outra vida. As assombrações integram esse mito.


Os estudos biográficos sobre João Paulo II esquecem seus escritos eminentemente espirituais, privilegiando suas concepções leigas de poder, tomando-o apenas como um executivo poderoso, mas ele já foi identificado como um dos principais autores da encíclica Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), de Paulo VI, muito parecida no estilo com a Veritatis Splendor (O esplendor da verdade), da autoria do próprio João Paulo II.


Ter mexido no Limbo é um detalhe interessante para avaliarmos sua personalidade tão fascinante.