Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Livro revela trajetória
da família Mesquita


Leia abaixo os textos de segunda-feira selecionados para a seção Entre Aspas.


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O Estado de S. Paulo


Segunda-feira, 26 de junho de 2006


CARTAS DO EXÍLIO
Antonio Gonçalves Filho


A luta de um democrata


‘Diz um antigo provérbio etíope que a vergonha só pode existir onde há honra. Em muitas das cartas escritas durante o exílio do jornalista Júlio de Mesquita Filho (1892-1969) nos anos 30 e 40 do século passado, a insistente defesa desse conceito aristotélico também é feita com endereço certo: ambas as palavras, vergonha e honra, faltavam no dicionário do caudilho gaúcho Getúlio Vargas, responsável pelos dois exílios do diretor de O Estado de S. Paulo, vítima ainda da violência de ver seu jornal ocupado pela polícia e expropriado em 1940, a mando do ditador. O livro Cartas do Exílio, que a editora Albatroz, de seu neto Ruy Mesquita Filho, em co-edição com a Terceiro Nome, lança agora (chega hoje às livrarias, por R$ 48), reúne a correspondência trocada pelo então diretor do Estado e sua mulher Marina, que o acompanhou nesses dois exílios (só voltando algumas vezes para visitar seus filhos), além de correligionários, filhos, e também artigos que publicou em jornais e revistas da época no Brasil, Europa e Argentina, e documentos sobre a ocupação e venda do jornal (ele não vendeu) para a ditadura Vargas. Mais que cartas, são valiosos documentos históricos sobre a luta de um democrata para conseguir apoio externo e derrubar a ditadura Vargas.


O neto e editor Ruy Mesquita Filho tinha apenas 19 anos quando o avô morreu, mas lembra como a influência do jornalista foi marcante em sua formação. Aos 24, de passagem pela Europa, ele receberia a notícia da morte da avó Marina, em Salzburgo, que deixou essas cartas a seu cuidado, com a promessa de que seria enterrada com os originais, o que foi feito em fevereiro de 1975. Passados mais de 30 anos, cópias dessas cartas são publicadas na íntegra, revelando um homem preocupado com o destino político e os rumos do País. Ele testemunhou a ascensão do nazi-fascismo e a derrocada dos valores humanistas que tanto prezava, também em países europeus, prevendo que os valores morais construídos pela humanidade durante séculos seriam atirados ao lixo por ditadores como Hitler, Mussolini e Vargas.


No segundo dia de janeiro, em 1939, ele escreveu uma crônica a respeito, prevendo que a guerra viria ‘com a fatalidade de um aresto do destino’. O jornalista conclui a crônica com uma frase pessimista, de um homem desapontado, mas não derrotado. Enviada de Paris, durante o segundo exílio de Júlio de Mesquita Filho, a crônica profetiza a queda de Hitler mesmo antes de a guerra começar: ‘Toda vez que um indivíduo tentou rebelar-se contra a sociedade, esta reagiu e impôs a sua vontade’, observa. E diz ainda: ‘É o que nos ensina a História, tanto através da epopéia napoleônica como da lamentável aventura de 1914.’ Deveria ser a frase de cabeceira de muitos líderes que mesmo hoje não a conhecem.


Mais que a simples troca de correspondência entre um exilado e sua esposa Marina, mulher de inteligência aguda, irônica e de personalidade crítica, Cartas do Exílio permite vários níveis de leitura. Pode, por exemplo, ser lido como um estudo sociológico sobre vários países por onde o jornalista passou – e foram vários nas duas vezes em que esteve exilado, em Portugal em 1932 e depois na França, entre 1938 e1939, passando pelos Estados Unidos, rumo à Argentina, onde fica até 1943. Marcadas pelo pensamento de Durkheim, entre outros, essas cartas trazem observações de um homem culto, sempre atento aos detalhes.


‘Era uma pessoa formal, sempre de terno, que jamais conversava bobagens e que me deu de presente, quando completei 16 anos, um livro de Joaquim Nabuco, lembra o neto Ruy Mesquita Filho. A exemplo do estadista do império que se tornou embaixador da República, Júlio de Mesquita Filho também teve formação européia. Educado na Suíça, voltou ao Brasil com o projeto de criar uma Universidade. O que fez. Criou a Universidade de São Paulo, graças a seu cunhado, Armando de Salles Oliveira, então interventor, e que o incumbiu do trabalho, atraindo para a cidade, nos anos 1930, professores de peso como o historiador Fernand Braudel e o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o autor de Tristes Trópicos.’


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‘Democracia depende da educação’


‘A política de abertura iniciada no final de 1933, observa o neto editor Ruy Mesquita Filho, organizador do livro Cartas do Exílio, permitiu a volta de Júlio de Mesquita Filho e de sua família ao Brasil, mas por pouco tempo. No mesmo dia do golpe do Estado Novo, 10 de novembro de 1937, ele foi preso. Foi a primeira de uma série de 17 prisões sucessivas até embarcar, em companhia de correligionários e seu cunhado Armando, para o exílio seguinte, em 10 de novembro de 1938. Foi para a França, de onde partiu às vésperas da eclosão da 2ª Guerra Mundial passando pelos Estados Unidos, de onde segue, pelo Oceano Pacifico, rumo à Argentina, e só retornando ao Brasil em 1943, quando, sem condições financeiras de manter-se no exterior, volta de trem desde Buenos Aires até São Paulo, onde, logo depois, é novamente preso e finalmente confinado na fazenda da família, em Louveira, até a queda do ditador, em 1945.


O editor do livro manteve a ordem cronológica das cartas. Numa delas , enviada de Nova York, ele diz à esposa Marina, em tom confessional, que os Rembrandts que viu em sua ‘peregrinação forçada’ pela Europa estão mais próximos de sua natureza ‘sombria e tristonha’ que os pintores italianos. Nova York, diz, causou-lhe fortíssima impressão pelas dimensões dos arranha-céus. Ele elogia a arquitetura ‘harmoniosa’ pós-Bauhaus, mas critica os exageros da moda que as mulheres usam e de que são vítimas, apresentando, muitas vezes, ‘um aspecto clownesco’.


Dona Marina não se furta a comentários igualmente irônicos sobre novos ricos paulistanos. Reclama, às vezes, por ser obrigada a escrever longos relatórios da situação política do País quando tem de cuidar dos filhos e das finanças. ‘Mulher de exilado vira Sevigné, sempre escrevendo’, diz numa carta datada de maio de 1939, em que fala do descontentamento dos militares com Vargas, acusando-o de tentar comprar os integralistas com a promessa de postos e embaixadas.


ENSAIOS


Além de um relatório detalhado da situação do País, os pedidos de Júlio de Mesquita Filho incluem dezenas de títulos de sua biblioteca que a esposa, pacientemente, recolhe e envia para o jornalista na Europa, nos Estados Unidos e na Argentina (segundo o neto, ele esboçava, na época, as primeiras linhas de Ensaios Sul-Americanos, que seria publicado em 1956). Em muitas dessas cartas, Júlio de Mesquita Filho parece chegar ao limite de sua paciência com a ignorância alheia. Numa carta enviada de Buenos Aires, em 1941, ao saber da demissão de Adhemar de Barros e da nomeação de Fernando Costa como interventor de São Paulo, chama o primeiro de ‘sacripanta mentecapto’ e diz que nem em mil anos o Rio Grande se lavará da ignomínia de ter dado ao Brasil um político (Vargas) capaz de submeter São Paulo a essa ‘inqualificável humilhação’.


É uma das raras ocasiões em que adjetivos tão fortes são utilizados pelo jornalista. Mesmo com os adversários ideológicos o tratamento é sempre discreto, desde que intelectualmente respeitáveis. É o caso, por exemplo, de Victor Serge, íntimo colaborador de Lenin na Revolução Russa e vítima do expurgo de Stalin após participar de um congresso de intelectuais realizado em Paris, em 1937, de quem se torna grande amigo. O jornalista elogia sua ‘inteligência, serenidade e retidão de caráter’. Outros exemplos são o escritor Jorge Amado e o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, ambos também comunistas. Hospedado durante um fim de semana na fazenda da família na sua famosa viagem ao Brasil, quando foi ciceroneado por Jorge Amado, em 1960, Sartre definiu seu anfitrião, ao mesmo tempo, como ‘poeta’ e ‘reacionário’ mas apesar disso como uma das melhores cabeças que encontrou na América do Sul.


MISSÃO NO JORNAL


‘Ele anteviu a derrocada do comunismo na Europa e a globalização’, observa o neto editor, que garante ter reunido no volume todos o documentos que permaneciam inéditos no arquivo do avô. A publicação das cartas foi escolhida para mostrar a diferença de como Júlio de Mesquita Filho encarava sua missão no jornal e a imprensa brasileira hoje: ‘Não acredito em jornal sem alma, sem uma missão, sem valores, onde as pessoas são tratadas como máquinas, sem respeito (no tempo dele todo exilado,por exemplo, tinha emprego garantido,não importando o credo e sim o conteúdo,valores que não são levados em consideração hoje) e sem caráter’, justifica Ruy Mesquita Filho, referindo-se ao modo como o avô dirigia o Estado, acrescentando que num programa de televisão lhe fizeram a seguinte pergunta:


O senhor está de acordo com a reforma da lei de imprensa fortalecendo-se a liberdade mas com responsabilidade e combatendo-se a licenciosidade que campeia em grande parte de nossa imprensa?


E ele respondeu:


– Não tenha dúvida nenhuma também. Sou tão objetivo na minha maneira de encarar o papel da imprensa que não hesito em atribuir-lhe boa parte das desgraças que têm desabado sobre nosso país, como em todo o mundo. Lembra-se do que foi o papel da imprensa francesa nos últimos anos da Terceira República quando ela estava toda a serviço da Alemanha? Hitler determinava os artigos que jornais como Le Temps, Le Petit Parisien, Le Matin, Le Journal, L’Illustration deviam publicar; como campanha preparatória para a invasão que pretendia levar a cabo contra a França. Digo mais. Sabe qual é meu juízo? É que quando a imprensa não é conduzida com dignidade necessária ela se transforma num mal muito mais profundo do que o comércio de tóxicos. Este é menos nocivo aos grupos sociais do que a imprensa quando ela é dirigida com capciosidade, com falta de sentimento de responsabilidade e como instrumento para satisfação dos instintos de quem a maneja e dos grupos que a dirigem. E continua Ruy: ‘Isso não existe mais, virou um comércio.’


Decio de Almeida Prado e Antonio Candido também dão testemunho, no apêndice do livro, da preocupação que Júlio de Mesquita Filho tinha com a cultura, ao encarregá-los da criação do Suplemento de Cultura. A democracia futura, já dizia numa carta há 66 anos, dependerá muito mais da educação e da solidariedade moral dos integrantes da nação do que dos partidos. Difícil não lhe dar razão .


A compilação do texto foi feita por Ruy Mesquita Filho e a edição por Mary Lou Paris e Diana Mindlin. O patrocínio, pela Lei Rouanet, é do Banco Cacique, cujo presidente, Cesario Coimbra, é neto de um correligionário, também exilado em 1932, Cesario Coimbra, citado na obra por seu apelido, Zarico. Mais informações, no site da editora: www.terceironome.com.br ou pelo telefone (11) 5093-8216.’


Gilberto de Mello Kujawski


A saga da família Mesquita


‘‘Eu creio no Brasil, creio na missão do nosso povo, creio que não foi em vão que os paulistas traçaram com as suas ossadas os limites da nossa terra.’


(Júlio de Mesquita Filho)


Júlio de Mesquita Filho teria material de sobra para redigir suas memórias, mas não o fez. Pois agora, por iniciativa do neto, Ruy Mesquita Filho, depositário da história da família, tem agora publicado em livro o acervo precioso das cartas que trocou no exílio (amargo exílio) com sua mulher, d. Marina e outras pessoas da família e de fora, documentando, com pungente fidelidade, o que foi sua experiência de prisão quando da Revolução de 32, seguindo-se a separação prolongada da sua terra e da família, durante o penoso desterro em Portugal, França, Estados Unidos e Argentina.


A correspondência ora publicada também é memória, e constitui valioso subsídio para o conhecimento histórico de um dos períodos mais sombrios de nossa história republicana. Mas o que sobreleva nas cartas é o retrato de uma personalidade soberana, desassombrada, de feições grandiosas na generosidade de sua dedicação à causa única de sua vida, o Brasil. E à preservação, lutando contra céus e terra, do principal instrumento de reflexão e ação de que dispunha, o jornal da família, O Estado de S.Paulo, envolvido em trama maliciosa para sair do domínio dos seus fundadores.


No perfil de bronze do jornalista Júlio de Mesquita Filho, três eram os traços predominantes:


1. O traço político, a fidelidade rigorosa aos princípios e aos valores da doutrina liberal, difundida nos editoriais com um espírito de missão evangélica.


2. O traço moral, a coragem e a impassibilidade estoica com que sempre fez frente às ameaças na prisão e às agruras do exílio, sem jamais se dobrar, sem nunca fraquejar ou transigir com o inimigo, mas crescendo em força de caráter quanto mais se avolumava contra ele a pressão da adversidade.


3. O traço cultural, manifesto na leitura dos clássicos nacionais e estrangeiros, na preocupação entranhada de promover no País uma revolução mediante a educação, e no entusiasmo, volta e meia registrado, pelos grandes monumentos da cultura européia, edifícios e museus, com seus tesouros artísticos, pintura por exemplo, que o encantavam e arrebatavam em escala surpreendente.


Fiel guardião das virtudes republicanas, Júlio de Mesquita Filho pertencia à família dos Cipiões romanos. A casa de Cipião Emiliano, ‘o superlativo da sanidade quiritária’ (Ortega), foi a primeira em Roma na qual se falava grego e em que se liam os textos da literatura e da filosofia helênicas. (Quirites era o cidadão romano de estirpe antiga.)


1. O liberalismo de Júlio de Mesquita Filho não se retraía à defesa egoísta dos interesses e dos direitos individuais divorciados da área social. Pelo contrário, sua posição aparece nítida nos textos ora editados: ‘Estou convencido de que assistiremos a uma paz ditada pelas concepções político-sociais inerentes às organizações ‘prado-unionistas’ inglesas, o que significa que a nação futura, sem abrir mão do individualismo, nos moldes a que acima me refiro, e, conseqüentemente, da propriedade privada, não verá a acumulação de capitais em proporções muitas vezes enormes nas mãos de poucos e com grande prejuízo para todos, como atualmente é comum verificar-se. Creio firmemente que a produção de riquezas não seja no futuro , como até aqui, a finalidade suprema das atividades sociais, mas apenas a consecução de um fim: a justiça social, o combate às desigualdades passivas, a possibilidade para todos de realizar um mínimo de bem-estar material compatível com a dignidade humana e um máximo de desenvolvimento moral natural, de acordo com a capacidade de cada um. Não presenciaremos a vitória do socialismo propriamente dito e segundo a concepção marxista, mas o advento de idéias trabalhistas no significado anglo-saxão da expressão’ (carta de 14 de fevereiro de 1940, p.136). Proféticas palavras! O pós-guerra não assinalou na Europa a vitória do socialismo marxista e sim a difusão da social-democracia, mais ou menos nos termos referidos por Mesquita. Seu liberalismo nunca foi o duro liberalismo individualista, nem nada de semelhante ao estigmatizado ‘neoliberalismo’, e sim um liberalismo algo mitigado no individualismo, com alcance social.


Por isso tem toda razão seu filho, Ruy Mesquita, ao testemunhar: ‘Em outras palavras, as idéias básicas que constituíram o grande alicerce das fantásticas transformações políticas e econômicas que revolucionaram o mundo depois da 2.ª Guerra Mundial, principalmente a partir do final da década de 1960, eram as idéias mestras de Júlio de Mesquita Filho já no começo da década de 1930.’ (Ruy Mesquita, Apêndice, p. 371).


No mesmo texto protesta Ruy contra o equívoco generalizado de classificar seu pai de ‘conservador’ e ‘reacionário’. Mais do que equívoco involuntário, trata-se de uma infâmia muito bem calculada. Em sua invectiva escreve o filho sobre o pai: ‘Como considerar conservador um homem que em nenhum momento de sua vida esteve conformado com a ordem política e institucional e com as condições culturais do país que amava acima de todas as coisas? Como chamar de conservador um cidadão brasileiro que, mais do que qualquer outro do seu tempo, lutou para mudar a realidade nacional, tendo como modelo as mais avançadas democracias do seu tempo?’


E como entender que o filósofo Jean-Paul Sartre também se deixasse cegar pelo preconceito infamante de estigmatizar Mesquita Filho de maneira tão maldosa e equivocada, quando foi seu hóspede na fazenda da família, em Louveira? Depois do jantar, já na saída, volta-se o papa do existencialismo para Jorge Amado e Zélia, indagando: ‘- Digam-me como é que um homem tão reacionário, tão estreito quanto monsieur Mesquita, ao falar dos cafezais se transforme num poeta, o mais terno e amoroso?’


Enquanto filósofo, Sartre foi de genialidade inegável (embora discutível em muitos pontos). Como ficcionista, afora La Nausée, nada de excepcional. Mas onde Sartre exibe suas limitações é na formação histórica e sociológica, que é muito falha, e na avaliação política, geralmente míope e distorcida. Ao qualificar seu hospedeiro, em Louveira, de ‘reacionário’, o intelectual gaulês estava roído pelo ressentimento. Ruy Mesquita explica: ‘Naquele tempo, no começo dos anos 1960, Sartre ainda não fora derrotado por Raymond Aron no grande debate ideológico que empolgou o mundo, particularmente depois da derrota do totalitarismo de direita na 2.ª Guerra Mundial, que projetou a União Soviética como uma das superpotências que se confrontariam no período da Guerra Fria. O que provocou aquela reação de Sartre foi a honestidade com que Júlio de Mesquita Filho lhe expôs as razões por que acreditava que sua (a de Sartre) visão político-ideológica do mundo daqueles dias era completamente equivocada.’ (Ruy Mesquita, Apêndice, p.370)


Patriota Mesquita Filho o foi, em grande estilo. Muito patriota e nada nacionalista. Esta distinção deve ser feita. Formado no espírito do liberalismo político e econômico, Mesquita queria seu País aberto à comunidade das nações, mirando-se no modelo dos Estados mais desenvolvidos. Seu propósito foi somar o Brasil ao patrimônio da cultura universal, européia e norte-americana. Ao criar a Universidade de São Paulo, convidou mestres franceses de nomeada para lecionar. Seu patriotismo esclarecido rejeitava o nacionalismo estreito, xenófobo, e qualquer interesse pelo nativismo tipo Policarpo Quaresma, que não combinava com sua inteligência aberta, arejada e universalista.


2. Quanto à força do caráter, por sua transparência, foi, talvez, o traço mais visível e saliente em Júlio de Mesquita Filho. Quando esteve preso, na Revolução Constitucionalista de 1932, enquanto muitos companheiros recuavam, acovardados, prestou mais de um depoimento assumindo e declarando sem disfarces suas convicções políticas em confronto aberto com as disposições anti-democráticas e anti-liberais que dominavam o cenário. E isso no ambiente tenebroso e desumano da prisão. ‘Aí nesse cubículo permaneciam trapos humanos, reduzidos à última expressão pelas tremendas sevícias que haviam sofrido e continuavam a sofrer. …Um deles suicidou-se, porque era terrível a pressão que todos sofriam. …Pessoas, rapazes com 20 anos, com dentadura admirável, voltavam das sevícias sem nenhum dente, com cacos apenas, com a orelha arrancada. Isso era constante.’ (Depoimento de Mesquita ao jornal O Estado de S.Paulo, em 15-02-1992, pp.62s). Declara que não sabia como sua vez de ser torturado não chegou. Mas jamais se intimidou.


Sobre sua valentia fala ele mesmo nas cartas e depoimentos que deixou. Acerca de sua integridade, contamos com o testemunho insuspeito de Antonio Candido: ‘Ele foi íntegro no sentido mais completo da palavra, desde a honestidade intransigente e abrupta até a fidelidade aos princípios e compromissos. Por isso, quem o conhecesse bem, mesmo discordando de suas posições políticas (era o meu caso), respeitava as suas posições culturais, admirando a coerência com que as concebia e o destemor com que lutava por elas’ (A. Candido, Apêndice, p.356).


Entretanto, foi na luta sem quartel que sustentou contra a venda espúria do jornal, que melhor revelou toda a grandeza de sua visão e de sua tenacidade heróica. Voto vencido por quase unanimidade (1), solitário na defesa de sua decisão de não alienar o jornal de jeito algum, e a nenhum preço; caso contrário, cederia à pressão maquiavélica da ditadura, que queria suprimir o periódico. Dr. Julinho mostrou, então, toda a fibra de sua resistência ao que classificava de vergonhosa capitulação.


‘Não há nada, absolutamente nada que eu não esteja disposto a sacrificar em defesa do Estado.’ (Carta, p.259) Por que tanta intransigência? O produto da venda não lhe garantiria, a ele e à família, a merecida folga econômica após tantos anos de provação não só moral, como material, com a esposa, Marina, tão sacrificada, três filhos pequenos em escola paga, com freqüentes problemas de saúde, dificuldades de moradia e dívidas a liquidar? Mesquita Filho acusa nas cartas duas singularidades mal conhecidas de seu feitio senhorial. Primeiro, abominava do fundo da alma a vida acomodada, com excesso de conforto e facilidades, irresponsável, refestelada nos prazeres e no luxo. Havia nele certo pendor ascético. Segundo, demonstrou a vida inteira o mais solene desprezo pelo homens do dinheiro, pelo dinheiro, e por decisões tomadas por amor ao dinheiro. Longe de convencê-lo, este discurso ‘pragmático’ só o irritava.


A luta contra a venda do Estado, vitoriosa no final, foi o drama dentro do drama (prisão, exílio, separação forçada da família e da pátria, privações afetivas e materiais). Hoje só podemos aplaudir a obstinação, a resistência e a bravura do herdeiro do velho Júlio Mesquita. Com efeito, cumpre indagar o que é O Estado de S.Paulo na ordem das coisas? Não é uma simples empresa comercial, não é um instrumento de ação político-partidária, nem algum órgão de entretenimento. Não, OESP é uma instituição, uma instituição cultural, ou seja, um patrimônio de idéias e ideais a serviço da sociedade e responsável pela formação moral e intelectual de sucessivas gerações de leitores. Portanto, uma instituição, no maior rigor a na maior plenitude da palavra. E uma instituição não se vende. Certamente, foi esta intuição que iluminou e alimentou a decisão de não capitular jamais, sustentada como questão de vida ou morte por Mesquita.


3. À testa da instituição cultural que é o jornal (não se esqueça que foi em suas páginas que nasceu Os Sertões, de Euclides da Cunha), só poderia estar um homem de cultura, e de alta cultura, como foi Júlio de Mesquita Filho. O traço dominante no seu perfil é este – o amor incondicional pela cultura. Escudado no arcabouço de ferro de seu caráter, e inspirando sua doutrinação liberal-democrática, palpitava com força o homem de cultura, o humanista de larga visão, lastreado na mais sólida formação clássica. Estudioso sistemático, leitor incansável, alimentava suas convicções com o que há de melhor na filosofia política, na História, na sociologia e na literatura. À certa altura da correspondência deparamos com esta declaração patética, que define essencialmente sua personalidade: ‘Decididamente, entre a conquista do mundo interior e a do mundo exterior, não hesito. Sou por aquela.’ (Carta de 20-05-1939).


Quem sentiu de perto a vibração e o fervor cultural de Júlio de Mesquita Filho, foi Gilles Lapouge. Com que carinho, com que compreensão, com que gratidão este máximo jornalista e escritor francês acompanha de perto os passos do Dr.Julinho em seus primeiros contatos com ele, que viajou até o Rio para receber o jovem jornalista. ‘Na minha memória, me vejo trêmulo, magro, diante daquele homem alto, elegante, o porte magnífico, sorridente e intimidante ao mesmo tempo, e que se exprimia num francês irrepreensível, com algumas expressões arcaicas , utilizando sutilezas de linguagem que até mesmo poucos franceses conhecem.’ (G.Lapouge, Apêndice, p. 365). Não se sabe o que mais admirar, se o perfeito retrato de uma personalidade desenhado por Lapouge, ou sua encantadora modéstia, sua comovente simplicidade. Que diferença da atitude de Sartre e de seu ‘coup de bêtise’, ao classificar Mesquita como ‘reacionário’, ‘estreito’ e ‘medieval’. Pelo contrário, diz bem Lapouge sobre seu amigo brasileiro: ‘Perspicaz, via além dos fatos.’


‘A seguir o doutor Mesquita me falou do poeta Paul Valéry. Seu conhecimento me surpreendeu – ele recitava poemas inteiros, eu também conhecia alguns. Minha estada começou com poesia – um bom presságio. A conversa passou para a literatura francesa em geral, que o doutor Júlio apreciava e conhecia bem.’ (G.Lapouge, Apêndice, p.366).


O forte, o que havia de decisivo na pessoa de Júlio de Mesquita Filho era o homem de cultura, o intelectual, o humanista, o qual, somado ao patriota inflamado, soube consolidar a obra iniciada pelo pai, o velho Júlio Mesquita, – que foi transformar um jornal, um periódico diário, numa verdadeira instituição, caso raro no mundo e único no Brasil.


Em sua forma de redação transparecia em cada palavra o gosto intenso pela cultura, pelas idéias nítidas, um estilo denso, vigoroso, mas sem nenhum pesadume, antes muito responsável, e salpicado aqui e ali de alguns toques francamente líricos.


Aquele homem de ‘porte magnífico’, no dizer de Lapouge, que parecia sobranceiro como um promontório, era também homem de coração e delicados sentimentos, como comprovam as muitas linhas escritas quase em lágrimas aos filhos pequenos e à esposa Marina, mulher também de fibra, gênio forte, redigindo com fluência e mostrando familiaridade com a boa literatura. ‘Mulher de exilado vira Sevigné, vive escrevendo.’ Digna esposa daquele marido, Marina Vieira de Carvalho Mesquita,que o acompanhou nos dois exílios, só voltava uma vez por ano para visitar os filhos (2), encarnava as melhores virtudes da mulher paulista de seu tempo – a disciplina doméstica, o domínio emocional, a fortaleza do caráter, temperadas por insopitável vivacidade e simpático senso de humor sempre presente, cheio de malícia inteligente, prova de sua coragem inabalável em meio a tantas adversidades.


(1) Na verdade, Júlio de Mesquita Filho teve sempre o apoio de seu irmão Francisco na sua luta contra a venda do jornal.


(2) Dona Marina acompanhou o marido nos dois exílios. Em 1932, em Portugal, os filhos também acompanharam os pais. No exílio de 1938, ficaram no Brasil, e eram visitados pela mãe na época das férias de meio de ano. As cartas de dona Marina ao marido são sempre desses períodos.’


BUSH vs. IMPRENSA
Paulo Sotero


Casa Branca lança ofensiva contra imprensa


‘A forte reação da Casa Branca, na semana passada, à revelação pública de mais um programa secreto iniciado pelo presidente George W. Bush depois do 11 de Setembro incluiu não só a esperada justificativa sobre a necessidade de defender os EUA de novos ataques terroristas, usada para explicar iniciativas semelhantes quando elas vieram à tona. A defesa do programa de rastreamento de milhões de contas bancárias através do sistema internacional de transações financeiras Swift, revelado na quinta-feira pelo New York Times, incluiu um duro ataque direto do governo ao jornal e à imprensa. O vice-presidente Dick Cheney comandou a ofensiva.


Depois de afirmar que o programa de espionagem é ‘absolutamente essencial’, Cheney disse: ‘O que acho mais perturbador nessas matérias é o fato de alguns na imprensa tomarem para si (a decisão de) revelar programas vitais à segurança nacional, tornando mais difícil para nós, assim, a prevenção de futuros ataques contra o povo americano.’


A pesada acusação lançada por Cheney provavelmente foi estimulada pela falta de reação maior da opinião pública à exposição (feita também pelo New York Times há três meses) de um maciço programa de escuta telefônica sem ordem judicial, conduzido pela administração, sob o mesmo argumento da necessidade de proteger o país de novos ataques. Sondagens feitas na época mostraram que os americanos estavam divididos a respeito e a maioria inclinava-se a relevar a ilegalidade da iniciativa em nome da segurança.


O New York Times respondeu a Cheney em seu editorial principal no sábado. O jornal esclareceu que as consultas sobre o programa de espionagem financeira com membros das comissões de inteligência do Congresso que a administração alegou ter feito, na semana passada, para dar-lhe cobertura legal, só começaram, de fato, depois que o diário buscou confirmação sobre a existência do programa junto à Casa Branca, dois meses antes de transformar o assunto em notícia.


O jornal informou ainda que as precauções que o Departamento do Tesouro alegou terem sido tomadas para evitar o uso das informações para objetivos outros que não a prevenção de ações terroristas foram adotadas apenas depois que os executivos da Swift, baseada na Bélgica, passaram a manifestar preocupação a Washington diante da eternização de um programa que eles julgavam, no início, ser de curto prazo e alcance limitado.’


MÍDIA / MÉXICO
O Estado de S. Paulo


Televisa faz oferta pela rede Univisión


‘Um grupo de investidores liderado pelo grupo de mídia mexicano Televisa apresentou uma oferta de compra da rede de TV em espanhol Univisión, dos EUA. O valor da oferta não foi revelado mas, segundo uma fonte próxima às negociações, supera uma outra apresentada por um grupo rival, que era de US$ 10,7 bilhões. A Televisa já é dona de 11% da Univisión e, juntamente com a venezuelana Venevisión, é a principal provedora de conteúdo para a rede. O grupo de investidores tem ainda o Bain Capital Partners e o Cascade Investment.’


INTERNET
Ricardo Anderáos


O português perdido


‘Outro dia, durante um treino da Seleção Brasileira aqui na Alemanha, um grupo de jornalistas discutia as maravilhas do sistema de navegação de automóveis via satélite GPS, objeto do desejo de todo mundo que aluga um carro no exterior. O pequeno computador de bordo, do tamanho de um radinho de pilha, é conhecido como ‘Never Lost’, que pode ser traduzido como ‘perdido nunca’, uma marca registrada pela locadora de automóveis Hertz.


Há outros sistemas similares a esse. Mas uma espécie de efeito Bom Bril está transformando essa marca em sinônimo da coisa. O Never Lost pode ser instalado em qualquer automóvel. Além de uma tela de cristal líquido que mostra o mapa das ruas e estradas e a posição exata de nosso carro em tempo real, ele também dá orientações por voz para quem está guiando tomar sempre o caminho correto.


As gargalhadas do grupinho ao lado começaram a atrair a atenção de quem estava em volta. ‘Eu juro para vocês! Não é brincadeira não’, dizia um carioca. ‘Você está fazendo piada, isso é impossível’, respondeu um paulistano, que chamou um colega e pediu que a história fosse contada novamente. Apurei o ouvido para saber exatamente do que eles falavam.


‘Eu estava achando o never lost uma m… A porcaria do aparelho sempre me avisava para entrar numa rua depois que eu já tinha passado por ela’, começou o carioca. ‘Fiquei com raiva, ainda mais porque configurei o aparelho para falar em português, mas o desgraçado tinha sotaque lusitano. Até que eu resolvi mudar a configuração para o inglês. E não é que ele passou a avisar tudo antes das entradas direitinho? Até computador português é burro.’ A gargalhada foi geral. Mas acho que o sujeito estava apenas querendo dar uma de engraçadinho.


Infelizmente, não pude conferir em seguida se isso era verdade ou não. Estou com carro alugado pela Hertz. Mas, como o jornal não solicitou o tal Never Lost para meu veículo quando foi feito o contrato de locação, eu não consegui um quando cheguei aqui na Alemanha. A demanda por esses aparelhos está muito maior do que a oferta. É impossível alugar um antes do final da Copa do Mundo.


Já usei esses aparelhos mais de uma vez em viagens aos EUA. Realmente é maravilhoso dirigir em terras estranhas com um desses. A gente não tem de ficar quebrando a cabeça com aqueles mapas enormes, que nunca mais dobram direito depois de abertos pela primeira vez. Dá pra se concentrar em dirigir e apreciar a paisagem.


Melhor ainda: nos mapas impressos as mãos de direção não vêm marcadas. Já o banco de dados do Never Lost leva isso em conta. É muito difícil ele mandar a gente entrar em um local proibido.


Quando a equipe do jornal chegou aqui e começou a apanhar nas velocíssimas autobanhs da Alemanha, estradas onde não há limite de velocidade e um pequeno engano na entrada de um viaduto pode nos jogar a dezenas de quilômetros do local desejado, todo mundo foi atrás do aparelho. Como não havia mais estoque, alguns jornalistas de nossa equipe conseguiram carros que já vêm de fábrica com sistemas de navegação embutidos. Eu, infelizmente, não consegui nem isso.


Mas como também tenho meus ases tecnológicos escondidos na manga, dei um jeitinho hi-tech para não ficar perdido por aqui. Minha tábua da salvação é um telefone celular combinado com computador de mão que comprei nos EUA há dois anos. É daqueles que usam chip GSM. Aí no Brasil, tenho nele uma linha da Tim.


Como o jornal nos deu celulares GSM de uma operadora alemã, coloquei o chip germânico no bichinho e assim posso navegar com ele na internet. Para encontrar meus caminhos na Alemanha, entro no site http://maps.google.com, digito o endereço de saída e o de chegada, e ele me fornece um roteiro tão preciso e detalhado quanto o que aparece no Never Lost.


Já cruzei o país várias vezes usando as dicas do Google Maps, e tudo tem dado certo. Minha primeira viagem assim foi de um subúrbio de Frankfurt até o centro de Berlim, com uma passadinha em Weimar. Consegui percorrer esses 600 km sem cometer nem um erro sequer. De norte a sul, de Dortmund a Munique, passando por Colônia e muitas outras cidades menores, meu PocketPC nunca me deixou na mão.


Nenhum desses sistemas funciona no Brasil. A Hertz só oferece o Never Lost nos EUA, Canadá, Porto Rico e Europa. Já o Google Maps tem dados dos EUA, Canadá, China, Japão, Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha. Por aí temos o www.apontador.com.br, que, além de endereços na tela do PC, oferece um sistema de navegação similar ao Never Lost para computadores de bolso e até para celulares. Isso sem falar em opções como o http://br.mapas.yahoo.com e o www.maplink.com.br.


Para resolver a história do Never Lost lusitano, entrei no site da Hertz. Lá descobri que o aparelho deles oferece navegação em inglês, holandês, francês, alemão, italiano, japonês e espanhol. Realmente, parece que o tal jornalista carioca estava tentando criar uma nova piada de português.’


Pedro Doria


Em defesa dos emoticons


‘Meu novo aparelho celular é bem bom. Escolhi-o seguindo uma receita de bolo: queria que tivesse Edge, que permite o acesso à internet via notebook com velocidade razoável; queria que tirasse fotos decentes e que fosse possível enviá-las por e-mail; queria que não fosse caro demais. Deu trabalho, mas encontrei o aparelho. Ainda estou me ajustando, e tem uma única coisa que considero profundamente irritante.


Quando digito um SMS, uma mensagem de texto, e ponho um emoticon no meio, o raio do aparelho o transforma num smiley. Entenda-se: emoticon é uma série de caracteres que sugerem a expressão facial. Assim, o 😉 é uma piscadela gentil. O smiley, aqui, é um rosto, rosto mesmo, um raio de um círculo preenchido com amarelo, olhos caricaturais e a boca.


Está virando padrão. Vi disto primeiro no sistema de mensagens instantâneas da Microsoft, o MSN. Não te permite a opção – ou, se permite, exige que você pesquise todas as caixas de preferências do mundo. Há caixas de comentários espalhadas por blogs vários daqui afora que fazem a conversão forçada. O leitor que digitar ponto e vírgula, hífen e fecha parênteses verá seu código transformado em ícone.


No celular, descobri um macete de como enganá-lo: basta usar espaços – o emoticon fica um tico mais esticado, mas dá para enganar o sistema. E lá vai o que digitei, não o seu equivalente gráfico.


Isto é importante. Não parece, mas é. Dois adultos podem trocar emoticons; diga-se, eles são importantes. Clarificam o texto escrito, deixam claro onde algo foi dito com cordialidade e não sarcasmo. Dois adultos não trocam smileys. Smileys são uma ofensa estética, trazem um tom infantil ou de adolescente para a conversa. Mas esta sutileza estética vai se perdendo e, ao que parece, da Nokia à Microsoft e quantas tantas entre ambas decidiram que não nos será mais permitido escrever caracteres. Teremos de lidar com risinhos fofinhos. Valha-me.


Até hoje, o vício é dos tempos em que computador era letra verde sobre fundo preto, escrevo e-mails sem acento. Permito-me duas variações da língua. Quando o E leva acento agudo, digito eh; quando o A é uma crase, quer dizer, quando o A são dois As, digito aa. Não há muitos anos, todo mundo escrevia e-mails assim. E ainda hoje, quando recebo uma mensagem que nas curvas entre roteadores da rede perdeu-se e veio quebrada, a acentuação substituída por caracteres nunca dantes avistados, sinto uma nostalgia do tempo em que, cordialmente, ninguém usava acentos.


Esta cordialidade entre cidadãos da rede está no passado, mas a linguagem um quê cifrada continua presente nos naum que substituem não. A abreviação faz sentido: vc no lugar de você, tb no de também. O naum é uma ofensa estética.


Mas cá não vai qualquer crítica: se ofende esteticamente, tem lá sua graça; o naum é como gíria escrita. A gíria de nossos pais soa arcaica, a de nossos filhos é talvez incômoda. Mas crianças e adolescentes têm seus códigos, sempre os tiveram, é bom que seja assim. É um mecanismo lá de identificação em grupo.


Só que aí voltamos à questão da conversa infantil e da conversa entre adultos. Nossos instrumentos são comuns. Um sistema de mensagens instantâneas, assim como um celular que envie SMSs, não pode tampouco deve obrigar um grupo a se sujeitar à linguagem de outro; muito menos, e esta é uma completa inversão de valores, obrigar adultos a usarem a linguagem de crianças. Não cabe.


A turma que organiza uma promoção que passa na tevê pátria está em desespero. Para participar e ganhar carros, computadores e quetais, há que se enviar um torpedo para determinado número. Nada contra o papo de marketing – mas chamar de mensagem de texto ou SMS soa melhor. Não importa: só adolescente e mais meia dúzia sabe fazer isto, a promoção não decola.


E cai-se no dilema essencial: as ferramentas da modernidade são construídas para adolescentes porque adultos não as usam. Adultos se incomodam com a infantilização e acham que aquilo é instrumento de adolescente. Quem dirá que não têm, todos, a razão.’


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Folha de S. Paulo


Segunda-feira, 26 de junho de 2006


ENTREVISTA / JANE FONDA
Sérgio Dávila


Aos 68, ‘Hanói Jane’ abraça o feminismo


‘‘Percebi que atrapalharia meus outros projetos’, disse ela à Folha, indagada sobre sua mudança de planos, durante uma das palestras que deu em Washington.


E quais são esses planos? Divulgar sua autobiografia e se dedicar cada vez mais ao ativismo feminista que voltou a abraçar. Um deles tem a ver com a vagina. Explica-se. ‘Para falar a verdade, até a adolescência eu pensava: ‘Quando eu vou ter uma?’, brinca a atriz para risadas gerais. Mas o projeto é sério. Junto da atriz Selma Hayek e da dramaturga Eve Ensler, fez uma leitura da peça ‘Monólogos da Vagina’, que foi apresentada em pequenas cidades mexicanas, com histórico de alto índice de violência contra as mulheres.


Em Washington, Jane Fonda lançava a versão capa mole de sua autobiografia, ‘Minha Vida Até Agora’, que chega às livrarias do Brasil pela editora Record no dia 4 de julho. No livro, faz um balanço de sua vida, que começa como filha de um ícone do cinema (Henry Fonda), passa por símbolo sexual (‘Barbarella’), ativista política, inventora do ‘vídeo de malhação’, mulher de um grande empresário das comunicações (Ted Turner, criador da CNN) e termina como uma senhora que não tem papas na língua para falar dos assuntos mais polêmicos. A seguir leia os principais tópicos da sabatina da qual a Folha participou e da conversa posterior com o repórter.


‘Hanói Jane’


Eu recebo cartas e e-mails ofensivos até hoje, 40 anos depois, pela foto que fiz no Vietnã do Norte sentada naquela bateria antiaérea. Eu me arrependo da foto, acho que foi um erro de julgamento terrível, mas não me arrependo de meu ativismo antiguerra. Fui levada pelo meu marido Tom Hayden, que era muito envolvido em ativismo político de esquerda, a Hanói. Não digo que não sabia o que eu estava fazendo, mas estava cansada, com o pé quebrado, tínhamos acabado de tentar cantar uma música vietnamita… Quando vi estava lá.


Quando voltamos, a foto nem foi notícia imediata. Virou depois, nas mãos da direita mais perigosa deste país, que inclusive inventou frases a meu respeito, frases que eu nunca disse. Nunca chamei nossos soldados de ‘assassinos mercenários’, mas há sites na Internet até hoje que afirmam isso. Nos anos 70, abri um escritório que batizei de ‘GI Jane’, em que eu recebia o apoio de veteranos que eram contrários à guerra. De certa forma, aquilo me fez fazer as pazes com o episódio.


Sofro por causa da foto até hoje. Moro na Geórgia, e acaba de passar uma lei que protege as adolescentes que têm gravidez precoce, uma das causas de uma das entidades que criei. Pois alguns políticos que lutaram no Vietnã se colocaram contra, citando o episódio.


‘Bagdá Jane’


Desisti da marcha anti-Guerra do Iraque por dois motivos. Primeiro, não quero que isso interfira nos meus outros planos. Segundo, não quero que o fato de eu fazer parte da campanha contra uma guerra que a maioria do país também é contra seja uma distração, uma desculpa para que a extrema direita vença esse debate. Então resolvi não participar ativamente, embora dê minha opinião sempre que indagada. De qualquer maneira, a campanha está bem encaminhada, com o comando de Cindy Sheehan [ativista política que é mãe de um soldado morto no Iraque].


Ativismo feminista


Comando uma organização chamada Georgia Campaign for Adolescent Pregnancy Prevention e o Jane Fonda Center na Emory University School of Medicine. Trabalhamos com os adolescentes, mas também com os pais, especialmente as mães, já há uma década. Temos também um centro para mulheres, chamado Women’s Media Center, que fica no Empire State, em Nova York. Nós treinamos mulheres para falar em rádio e TV sobre questões importantes, como a guerra, o sistema de saúde, coisas que nos afetam de uma maneira diferente que afetam os homens.


Diálogos da vagina


Para falar a verdade, até a adolescência eu pensava: ‘Quando eu vou ter uma?’ (risos) Mas o trabalho que a Eve Enlser [autora da peça] faz é incrível. Nós não vamos deixar as autoridades mexicanas em paz, mas também aqui nos EUA temos de fazer muita coisa. As corporações norte-americanas que compram produtos mexicanos por conta da mão-de-obra barata têm parte da culpa por as mulheres não terem segurança nas ruas.


Terceiro ato


Quando fiz 60 anos, há oito anos, percebi que estava entrando no terceiro ato de minha vida e que tinha de ser mais verdadeira. Por isso falo sem problemas da reposição de quadril que tive de fazer por conta de uma doença. Ou dos dois implantes que tinha para aumentar os seios e que tirei. Quis banhá-los em bronze e guardar as peças como lembrança, ao lado dos meus Oscar, mas os médicos disseram que é proibido; por conta do material de que são feitos os implantes, constituem ameaça à natureza…


Henry Fonda


Se eu não fosse filha dele, não teria sido atriz. Como fui demitida como secretária, fui fazer o curso no Actor’s Studio, com Lee Strasberg. Era uma menina, e sentava ao lado de Marilyn Monroe. Ela já era uma estrela, e chegava, com um lenço amarrado na cabeça, e não dizia nada. Mas prestava muita atenção. Meu pai nunca encorajou nem a mim nem a meu irmão (Peter Fonda) a sermos atores.


Tinha medo de que nós fôssemos medíocres [ironicamente, Jane Fonda ganhou dois Oscar antes que o pai ganhasse seu primeiro]. Se tivesse de defini-lo numa palavra, diria ‘frio’.


Mas houve um momento em que acho que o emocionei de verdade. Na cena de ‘Num Lago Dourado’ [1981], em que estamos conversando, eu adicionei um ‘caco’. Disse: ‘Eu quero ser sua amiga’ e o toquei. Sabia que isso o deixaria furioso como ator, pois ele gostava de tudo ensaiado e não tolerava improvisos. A reação foi microscópica, mas eu vi as lágrimas vindo aos olhos dele. Para mim, foi um dos momentos mais importantes de nossa relação.


O suicídio da mãe


Minha mãe se matou quando eu tinha 12 anos. Ela sofria de Transtorno Bipolar Severo. Quando comecei a escrever a biografia, fui atrás dos registros médicos e descobri que ela tinha sofrido abuso sexual quando pequena. Nunca soube disso. Alias, só descobri que ela tinha se matado quando, adolescente, vi uma revista de cinema na minha escola que dizia que ela tinha cortado a garganta. Mas quando descobri seus registros médicos, na pesquisa que fiz recentemente, eu já estudava os efeitos de abusos sexuais em crianças havia dez anos, um assunto para o qual fui atraída sem nunca saber o motivo. [Numa entrevista posterior a atriz diria que também ela foi abusada sexualmente, ou pelo menos achava que foi, embora não tenha dito por quem.]


Os homens


Passei minha vida tentando agradar aos homens, primeiro meu pai, depois meus namorados, por fim meus amantes e três maridos. É o que chamo de ‘disease to please’ (doença de agradar). Hoje em dia, finalmente, me livrei. Também, eu vivo sozinha, com um cachorro, então é muito mais fácil.


Ménage à trois


Faz parte da doença de que falei. Quando era casada com [o cineasta] Roger Vadim, participei de um, dois ou três ménage à trois a pedido dele. Tinha medo de desagradá-lo e perdê-lo.


Bulimia e anorexia


Tive essas doenças dos 15 anos aos 40 anos. Quando as tive, ainda não existiam esses nomes. Tudo fazia parte de minha ânsia de agradar, de ser perfeita. E, quando você é jovem, principalmente adolescente, ser perfeita quer dizer ter um corpo considerado perfeito pelos padrões da sociedade -ou seja, esquelético. Meu pai me dizia que eu era gorda. Bem, não na minha frente, mas mandava recados pelas mulheres dele, que me sugeriam não usar maiô ou trocar de vestido.


Ted Turner


Quando me separei de meu segundo marido, Tom Hayden, recebi um telefonema. O sotaque era inconfundível, sulista forte. ‘É verdade que você se separou?’, perguntou a voz. ‘Sim’, eu disse. ‘Você quer sair comigo?’ Claro que eu disse não. Era Ted Turner. Ele disse: ‘Eu sei como você se sente, acabei de me separar de minha amante, pela qual eu havia acabado um casamento de 24 anos.’. Eu ri. Como alguém tenta conquistar uma mulher com essa frase? Seis meses depois, ele me levou para jantar.


No carro, sua primeira frase foi ‘Tenho amigos comunistas. Fidel Castro e Mikhail Gorbachev.’ Acho que ele estava tentando me agradar por conta de meu passado como ativista política. Ele disse também que tinha ido à CNN e lido tudo sobre mim nos arquivos. Durou dez anos. Depois ele diria que a gente se separou porque eu virei muito religiosa. Realmente, me converti, sou o que chamo de ‘cristã feminista’. O verdadeiro motivo, porém, é que ele me traiu. Mas somos bons amigos, Ted é meu ex-marido favorito.’


TELEVISÃO
Daniel Castro


Decreto da TV digital mantém ‘monopólio’


‘O decreto que o presidente Lula deverá assinar nesta semana, instituindo a TV digital no país, vai manter o ‘monopólio do ar’ exercido pelas atuais grandes redes. O documento será um texto curto, com linhas gerais sobre a transição da TV analógica para a digital.


A Folha apurou que o decreto atenderá às reivindicações vitais das redes de TV.


Como pediram em ofício ao presidente, as redes receberão um novo canal de seis megahertz. Assim, praticamente se fecha por dez anos o espectro de UHF e VHF em São Paulo e Rio para novas redes de TV e para outros usos das freqüências, como internet e telefonia. A entrada das teles no negócio da TV aberta, tão temida pelas redes, ficará bloqueada.


O decreto não obrigará as redes a ocuparem 100% da faixa de seis megahertz. Hoje, elas precisam desse espaço para irradiar um canal analógico. Com a tecnologia digital, cabem pelo menos quatro canais de definição standard (igual à atual) nos seis megahertz.


O decreto não obrigará as redes a transmitirem sempre em altíssima definição nem vetará a divisão da freqüência em quatro canais -o que aumentaria custos das TVs. Dirá apenas que elas estão autorizadas a transmitir em alta definição (HD), para televisores top de linha, em definição standard (SD), para pequenos aparelhos como os de ônibus, e em baixa definição (LD), para celulares.


GIANE É ATOR 1


Para Silvio de Abreu, autor de ‘Belíssima’, Reynaldo Gianecchini foi o ator que mais surpreendeu a audiência de sua novela. O ex-modelo se revelou um esforçado ator cômico.


GIANE É ATOR 2


Abreu, no entanto, diz que o desempenho de Gianecchini não o surpreendeu. ‘Eu tinha certeza de que ele ia fazer bem. Toda vez que um ator reverte a expectativa do público, leva tempo para o telespectador se acostumar. Depois o público diz que o ator melhorou, mas não é isso, é o público que se acostumou’, defende Abreu.


MARCA PESSOAL


O autor Manoel Carlos vai bater um recorde pessoal com ‘Páginas da Vida’. A próxima novela das oito da Globo entra no ar com 18 capítulos escritos.


FILÃO INFANTIL 1


A Rede TV! descobriu que desenho animado dá boa audiência (pelo menos para seus parâmetros). Depois de estrear produções japonesas na faixa das 18h, que vêm dando até três pontos no Ibope, acaba de fechar uma parceria com o canal Nickelodeon, do grupo Viacom.


FILÃO INFANTIL 2


A partir de 3 de julho, a Rede TV! exibe uma faixa de desenhos das 7h30 às 9h. As estrelas são três boas atrações da Nickelodeon para o público pré-escolar: ‘Dora, a Aventureira’ (que está bombando nos EUA), ‘Go, Diego, Go’ e ‘Pistas de Blue’.


SEM CONSPIRAÇÃO


A Globo informa que já estava previsto havia meses que Sandra Annenberg voltaria da Alemanha antes do final da primeira fase da Copa do Mundo.’


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