‘RIO – Na carta de cinco páginas que enviou ao presidente Lula pedindo demissão, o ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, João Luiz Duboc Pinaud, faz um apelo ao governo para que não fique ‘refém da força bruta’ e tome a decisão de abrir os arquivos do regime militar. ‘Aceitar o trancamento de arquivos é aprovar torturas e desaparecimentos que outros porões ainda hoje guardam’, diz na carta.
Apesar da pressão de grupos de direitos humanos, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de outras instituições, o governo ainda não se definiu sobre a abertura dos arquivos. Há posições antagônicas no governo, como a do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, defensor da divulgação pública dos documentos, e a do chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Félix, que prefere mantê-los arquivados.
Na carta, Pinaud afirma que um governo não pode ‘negociar sua verdade histórica em troca de um pouco de ordem’, sob pena de perder as duas coisas. E reforça as duras críticas ao secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. Cita como ‘marcas’ da secretaria ‘ritmo lento, hesitações, distanciamentos, táticas de esconder, artimanhas burocráticas’ e se refere a um ‘pacto de não tentar abrir arquivo nenhum’.
Pinaud diz a Lula que ele está ‘devendo à sociedade brasileira’ a correção de alguns ‘desvios’, como a ocultação dos arquivos da repressão. Ele protesta contra a falta de uma ‘resposta crítica oficial’ ao que considera uma ‘concepção paralisante de luta democrática em prol dos direitos humanos’.
O advogado relata algumas situações que viveu como presidente da comissão, citando o exemplo da uma reunião que não pôde ser realizada porque a Secretaria Nacional de Direitos Humanos não enviou passagens aéreas para os integrantes do grupo. Pinaud lembra a nota do Exército que considerou revanchismo a busca por documentos que esclareçam as circunstâncias de mortes e desaparecimentos de presos políticos. ‘Tal argumento, embora pobre e pouco inteligente, ainda assombra, funcionando como ameaça de futuro tenebroso.’ Ele disse que os defensores da abertura dos documentos sentem-se ‘combatidos, calados e blindados’.’
James Allen e Vannildo Mendes
‘Ex-piloto terá R$ 2,5 mi de indenização’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/11/04
Petista, Lavorato é ligado à Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da prefeitura de São Paulo. Coordena o ‘Programa Central de Crédito São Paulo Confia’ e dirige a Associação Brasileira de Gestores e Operadores de Microcrédito (Abcred). O ex-piloto, presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas de 1980 a 1995, não chegou a perder os seus direitos políticos. O decreto que o atingiu foi baixado durante o regime militar e se destinava a controlar lideranças sindicais de setores essenciais como os trabalhadores da área de energia elétrica, petróleo ou viação aérea.
LEI DA ANISTA
‘Como muitos dirigentes, fui demitido, não voei mais e mudei de profissão’, disse Lavorato. Sem conseguir emprego, decidiu pedir a aposentadoria com base na Lei da Anistia. Ele atribui a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça à interpretação correta da legislação.
‘A nova lei prevê que o anistiado deve receber como se estivesse na ativa’, argumenta o ex-sindicalista. ‘É responsabilidade da comissão a forma como interpreta a lei’, sustenta. Lavorato atuou na Constituinte de 1988 para ampliar os benefícios da Lei da Anistia, já em vigor.
Lavorato não informa quanto recebia como comandante de vôo internacional da Varig, até ser cassado em fevereiro de 1988, mas reconhece que seu salário na época estava acima da média. ‘Todos os cálculos foram feitos no cumprimento da legislação e, para mudar isso, tem que mudar a lei’.Essa discussão, segundo ele, está sendo feita da forma errada ‘e ninguém ia falar nada se a pensão fosse de uns R$ 100’.
Lavorato esteve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 30 de setembro. Ele participou de uma reunião para ampliar a oferta de microcrédito no país e saiu do encontro reclamando da atuação do BNDES.
Segundo ele, o ex-presidente do BNDES Carlos Lessa só criou dificuldades para as medidas de expansão do microcrédito proposta pelo governo. ‘O S de social do BNDES não andou e o microcrédito ficou paralisado enquanto Lessa esteve no banco’, reclama.
Formada por representantes da sociedade civil, do governo e das Forças Armadas, a Comissão de Anistia é dividida em três câmaras. A primeira analisa pedidos de indenização de estudantes e profissionais da iniciativa privada. O segundo grupo avalia casos de ex-funcionários públicos e a terceira trata dos pedidos de militares. Desde 2001, a comissão recebeu 60 mil pedidos. Destes, 16 mil não foram avaliados por falta de dados, 8.302 não foram aceitos e 5.540 foram aprovados. A câmara dos militares aprovou um total de 3.887.’
Jair Rattner
‘Para FHC, `houve exagero´ nas indenizações’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/11/04
‘LISBOA – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que também foi exilado político, criticou ontem, em Lisboa, o critério das indenizações dadas aos perseguidos pelo regime militar. ‘Acho que houve exagero. Acredito que as indenizações devem ser dadas a todos aqueles que realmente sofreram, mas com certa preocupação de não deformar uma reparação e transformá-la numa propina’.
Segundo Fernando Henrique, ‘o objetivo não é dar vantagem a ninguém e sim reparar uma injustiça’. Ele afirmou ainda que hoje não aprovaria o decreto-lei que prevê o fechamento dos arquivos da polícia política. ‘Eu não assinaria o ato. Assinei naquele momento, porque não fui suficientemente alertado sobre ele. Acho que não há razão para tanto temor de abrir o arquivo. Quando estava na presidência, procurei saber o que havia naquele arquivo e as respostas sempre foram que não tem nada’, disse ele ao Estado. Segundo FHC, o atual presidente pode mudar quando quiser a situação desses arquivos: ‘O artigo 8º do decreto permite que os comandantes e, portanto o presidente da República, possam abrir o arquivo, o que é uma válvula. Em segundo lugar, é um decreto. Se o presidente Lula quiser, ele muda’.
Para ele, estão fazendo uma ‘tempestade em copo d´água’ a respeito dos arquivos do regime militar. ‘Quer dizer que não exista alguma documentação mais grave? Não, quer dizer que esta documentação não está nos arquivos. Pode estar privadamente.’ No entanto, é contra a mudança da lei de anistia, que poderia ser considerada uma vingança: ‘Sou contrário a mexer na anistia. Ela já foi feita, é para todos. Agora a memória é uma coisa diferente da vindita (vingança). Sou contra a vindita de qualquer lado, mas não sou contra que a memória seja aberta’.
Fernando Henrique participou, na capital portuguesa, de um fórum sobre o Brasil, organizado pela Fundação Luso-Brasileira para o Desenvolvimento do Mundo de Língua Portuguesa. Elogiou o governo Lula, afirmando que, ‘no que é essencial para a democracia ele não tem errado’. Mas acrescentou que ele ‘poderia fazer muito mais’.
Questionado sobre o fato de dois dias antes ter criticado Lula em Londres, ele negou que esteja numa posição de bate-e-assopra: ‘Eu falei a mesma coisa. Estou fora do Brasil e não vou usar uma tribuna no exterior para fazer críticas ao governo Lula. E sempre digo o mesmo, que no âmbito financeiro o governo atuou responsavelmente. Quando faço algum reparo, já o fiz no Brasil, como por exemplo a respeito de como leva as políticas sociais.’
Leonardo Fuhrmann
‘Nas fraldas da anistia’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 19/11/04
‘Vladimir Gomes da Silva foi preso político antes mesmo de saber o que era política. Agora, o Estado admite que cometeu um abuso e decidiu que vai indenizá-lo e aos irmãos Virgílio e Isabel. Eles são as primeiras pessoas em São Paulo indenizadas por terem sido presos políticos quando ainda eram crianças. Vladimir, o mais velho deles, tinha 9 anos quando permaneceu um mês no Juizado de Menores. Ficou preso com Virgílio, na época com 8 anos, e Isabel, com apenas quatro meses de vida. O crime pelo qual acabaram detidos foi a militância do pai, Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, da Ação Libertadora Nacional (ALN), que comandou o seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick em 4 de setembro de 1969. O embaixador foi trocado por 15 presos políticos, entre eles o atual ministro da Casa Civil, José Dirceu.
Depois dos filhos de Virgílio, mais seis pessoas que enfrentaram problema semelhante também tiveram seus pedidos de indenização aprovados pela Comissão Especial sobre Ex-Presos Políticos de São Paulo: Janaína de Almeida Teles, com 5 anos na época, e o irmão Edson Luiz, que tinha 3, foram presos juntos com a tia Criméia de Almeida, grávida de sete meses, em dezembro de 1972. Eles estavam em uma casa na qual funcionava a redação dos jornais do então clandestino PCdoB. Criméia havia voltado do Araguaia, onde participara da guerrilha, para ter o filho. João Carlos nasceu dentro da prisão. Janaína, Edson Luiz e João Carlos também devem receber indenização do governo paulista.
O número de crianças feitas prisioneiras do Estado durante a ditadura militar por motivos políticos é uma incógnita para a própria comissão que analisa os pedidos de indenização. O arquivo do extinto DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, não é informatizado e está organizado apenas pelo nome das pessoas que foram fichadas. A Secretaria de Justiça de São Paulo não divulga o nome dos outros três indenizados por terem sido presos políticos durante a infância. A explicação é que a família ficou muito traumatizada e até hoje evita falar no assunto. Além de terem sido presos com o pai, viram ele sendo morto dentro das dependências de um órgão da repressão. O valor das indenizações não chega a R$ 40 mil.
Não há notícia ainda de crianças que se tornaram presos políticos que tenham recebido indenização da União. ‘A lei federal prioriza a questão trabalhista. As pessoas recebem pela interrupção que tiveram em suas vidas profissionais’, diz a jornalista Rose Nogueira, que preside o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.
Infância sem amigos
Vladimir Gomes da Silva, atualmente com 44 anos, conta que antes da prisão já levava uma vida diferente da maioria dos meninos da idade dele. ‘Não lembro de nenhum momento da minha infância aqui no Brasil em que não fosse clandestino’, afirma. Virgílio era funcionário de uma indústria química na zona leste da cidade de São Paulo e participava das atividades do sindicato. Foi baleado pela polícia em 1962 quando participava de uma greve. Em 1964, com o golpe militar, foi preso. O sindicato foi posto na clandestinidade. Até 1969, o sindicalista viveu períodos no Uruguai e em Cuba. ‘Fomos orientados por meu pai. Quando perguntavam sobre ele, dizíamos que era um sacana que havia abandonado a família’, lembra Vladimir.
Além de ter de se acostumar com os longos períodos de ausência do pai, ele e os irmãos tinham de se acostumar com a mudança constante de endereços. ‘Tínhamos de mudar de casa direto e em alguns momentos a situação era bastante precária. Não lembro de ninguém que eu possa apontar como meu amigo de infância. Em determinadas épocas, sequer saíamos de casa.’
Ele se recorda que o pai era carinhoso, mas, por causa da situação do país, exigia muita disciplina deles. As crianças foram presas junto com a mãe em uma casa em São Sebastião, no litoral paulista. O único dos irmãos que se livrou da prisão foi Gregório, na época com 2 anos, que estava doente e ficou com a avó enquanto a mãe, Hilda, e os irmãos foram para a praia. ‘Era de manhã cedo, eu já estava acordado e vi alguns carros rondando a casa. Percebi que era a polícia, mas não deu tempo de avisar ninguém. Eles invadiram a casa quando fui chamar minha mãe.’
A prisão foi no final de setembro de 1969. Na mesma época, Virgílio Gomes da Silva foi capturado na região central de São Paulo. Segundo relatos de outros presos políticos, como Celso Antunes Horta, assessor da Presidência da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Virgílio morreu durante uma sessão de torturas. É considerado o primeiro desaparecido político do país, pois não teve a sua morte reconhecida pelas autoridades da época. A família de Virgílio só recebeu o atestado de óbito do sindicalista em 1996.
Todos na família já tinham nomes falsos para sair do país. ‘Meu pai percebeu que estávamos em perigo e decidiu ficar sozinho por aqui. Ele nos chamou e disse para decorarmos nossos novos nomes e como chamaríamos nossos pais, também por nomes falsos, claro.’ A viagem de São Sebastião para São Paulo foi tumultuada. O carro da polícia capotou no caminho. A família foi separada assim que chegou ao temido prédio da Rua Tutóia, sede do DOI-Codi, na Vila Mariana. ‘Eu e meus irmãos ficamos dois dias por lá. Fomos interrogados e, depois, encaminhados para o Juizado de Menores.’ Há um ofício entre os documentos do Dops para que as crianças fossem atendidas na instituição.
Estado civil: mulher de revolucionário
Pelo que Vladimir lembra do Juizado, eles foram bem tratados. ‘Não ficávamos no meio dos infratores. Creio que estávamos junto com os abandonados. Lembro que eu era o mais velho dos garotos de lá.’ O bom tratamento que recebiam não impediu que os meninos tivessem uma preocupação especial: não serem separados, nem da irmã, que ainda era bebê. ‘Tentaram separar a gente de várias formas, mas a gente não aceitava. Houve uma época em que eu e o Virgílio dormíamos embaixo do berço em que ficava a Isabel. Amarrávamos uma cordinha nela e na gente para garantir que não seríamos separados durante o sono.’ A menina, que ainda mamava quando foi afastada da mãe, passou a maior parte do tempo doente, segundo relato do irmão. Os nomes falsos foram mantidos durante todo o tempo em que ficaram lá.
‘Uma tia chegou a ir nos buscar e não a reconhecemos. Dissemos que não sabíamos quem ela era e que não éramos os garotos que procurava. Ela ficou apavorada, pensou que haviam feito uma lavagem cerebral na gente’, relata Vladimir. A tia voltou horas depois e pediu para falar com o menino em particular. Ela explicou a importância de eles dizerem os nomes verdadeiros para saírem de lá e, assim, conseguiu levá-los embora.
Hilda só saiu da cadeia nove meses depois, sem que respondesse a qualquer acusação ou que a prisão fosse registrada. ‘Minha mãe não tinha militância política alguma. A única atividade revolucionária dela era ser mulher do meu pai’, afirma Vladimir. No período em que ficaram sem a mãe, as crianças foram espalhadas pelas casas dos tios, que também moravam na região de São Miguel Paulista, extremo leste paulistano. ‘Foi aquela coisa de família pobre mesmo. Ninguém teria condições financeiras de cuidar de mais quatro crianças, mas todos davam um jeito de manter uma criança a mais em suas casas.’
As crianças já ouviam na época que o pai tinha sido assassinado, mas a foto de Virgílio continuava nos cartazes de ‘terroristas procurados’. ‘A gente aceitava a versão que era mais cômoda: de que nosso pai havia conseguido fugir e apareceria em casa a qualquer momento’, descreve Vladimir.
Pouco depois, a família seguiu para o Chile – na época governado pelo socialista Salvador Allende – e de lá para Cuba. ‘Éramos bem tratados na ilha. Aqui, meu pai era tido como terrorista e lá como herói.’ Mas o sonho de rever Virgílio continuava vivo para Vladimir. Até os 13 anos, ele não perdeu a esperança de que o pai voltasse. ‘Sentia até um pouco de raiva dele, porque não aparecia lá para nos ver. Acordava no meio da madrugada ouvindo seu assovio e levantava para vê-lo.’ Virgílio costumava assoviar quando chegava em casa, para que os filhos descessem para abraçá-lo. O filho descreve o assovio do sindicalista como diferente dos demais, estridente e com uma nota só.
Para Vladimir, a perda do pai só se tornou assunto do passado este ano, quando o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo conseguiu laudos e fotos da morte do militante da ALN. O corpo ainda não foi localizado. A única informação é que está no cemitério da Vila Formosa, na zona leste, o maior da América do Sul. Lá são enterrados os indigentes da cidade de São Paulo.
Em Cuba, de onde só retornaram no começo dos anos 90, Vladimir e Isabel se formaram geólogos. Gregório e Virgílio cursaram a faculdade de engenharia. ‘Houve uma pressão para que voltássemos junto com os demais exilados no final dos anos 70, quando houve a anistia. Minha mãe não quis. Ela sabia que não teríamos no Brasil as mesmas oportunidades que tivemos lá. Eu pergunto: quantos operários dos anos 60, como meu pai, têm hoje quatro filhos que terminaram a faculdade?’’