‘Para alguém que ainda tem dúvida sobre a necessidade do controle externo do judiciário, um dos temas mais candentes no Brasil atual, o maior e mais importante país da América do Sul e um dos líderes do bloco das nações consideradas emergentes, o estado do Pará, o segundo mais extenso da Federação brasileira, está oferecendo um contundente exemplo em favor da tese.
O caso envolve a maior grilagem de terras do país, de quase 180 milhões de habitantes — e, provavelmente, do mundo. Diz respeito a uma área situada no fértil vale do rio Xingu, 800 quilômetros a oeste de Belém, atualmente sob o impacto de frentes econômicas pioneiras. Tendo, no mínimo, cinco milhões de hectares, essa grilagem, que consiste no uso de fraudes para a apropriação ilícita de terras públicas, pode atingir até sete milhões de hectares.
Com esse tamanho, a área poderia formar o 21º estado brasileiro em território, de um total de 27. Corresponde a 6% da superfície do Pará, o segundo maior estado da federação, com área de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, o equivalente a quatro vezes a Itália.
O principal atrativo atual dessa área é abrigar a maior concentração de mogno da Amazônia. Por seu valor, essa espécie florestal é chamada de ouro verde. Mas na verdade vale mais do que o ouro amarelo. É o bem mais valioso da região neste momento. Pode alcançar 1.800 dólares o metro cúbico na Europa, a partir do custo de extração na floresta de menos de 100 dólares. Por isso, é causa de conflitos e de mortes.
O domínio dessa área era inquestionavelmente público em 1923, quando o governo do Pará assinou contratos de arrendamento com comerciantes da região, autorizando-os a explorar as árvores de castanha e seringa (da qual a borracha é extraída) existentes em quatro glebas, que podiam alcançar até 30 mil hectares. O contrato tinha duração de um ano. Caducaria automaticamente se não fosse renovado.
Essa era a forma comum na Amazônia na relação do poder público com particulares nessa época, em que a exploração econômica da terra era através do extrativismo vegetal. Em alguns casos o arrendamento foi renovado. Em outros, evoluiu para o aforamento da terra. Mas nessas quatro situações do Xingu não houve qualquer novo contrato.
Como o extrativismo entrou em decadência e a exploração dos altos rios foi abandonada, as coisas ficaram na base do dito pelo não dito. A autorização caducou, mas o estado nem se deu ao trabalho de formalizar o fim da relação. Os termos do contrato eram claros quanto à reversão das terras ao patrimônio público depois de um ano. Além disso, o que estava em causa eram apenas direitos de posse, materializados na presença física do concessionário na área.
Mesmo assim, os sucessores daqueles coronéis de barranco (ou da Guarda Nacional, uma espécie de senhores feudais, mal-comparando com os originais europeus), autorizados a fazer uso das terras devolutas, levaram os contratos para registro em cartório.
A escrivã do cartório imobiliário de Altamira, a capital do Xingu, não hesitou em lançar no livro de propriedades o que não passava de posse, registrando no livro três, específico de propriedades, o que só caberia ficar no livro dois, de posses.
A partir daí se sucederam operações comerciais tendo como base aquelas terras, já devidamente matriculadas. Mas como nenhuma cadeia imobiliária pode ser formada senão a partir do desmembramento do imóvel do patrimônio público (já que os estados herdaram as terras da Coroa quando a República derrubou o Império, no final do século XIX), uma dessas propriedades com sua matriz no extrativismo, a futura Fazenda Curuá teve como origem um ‘título hábil’.
Qual era esse título? Ninguém sabe, já que ninguém o viu. O governo do estado não encontra tal documento nos seus registros de concessão de terras. Os supostos detentores do documento jamais o apresentaram. O título é tão fantasma quanto Carlos Medeiros, personagem fictício que outra quadrilha de grileiros inventou para acobertar as apropriações de terras públicas que efetuou, até com maior gula (suas pretensões chegam a 12 milhões de hectares, espalhados por nove dos 143 municípios paraenses, incluindo a própria capital do estado). Como no caso do ‘título hábil’, nenhum ser humano jamais viu o tal Carlos Medeiros em carne e osso, embora seus advogados se movimentem por cartórios e gabinetes de juízes em nome do cliente metafísico.
O que podia não passar de um incidente paroquial de fraude e promiscuidade provinciana de poder se transformou num escândalo de tamanho mundial. Foi quando a pretensão dos grileiros se multiplicou, ultrapassando cinco milhões de hectares (área que corresponderia a uma sexta parte de toda a Itália, em poder de um único proprietário). O personagem principal deixou de ser um coronel de barranco para ser um grupo empresarial de fora, que se apresenta com várias faces jurídicas, mas gravita em torno de Cecílio do Rego Almeida, dono da C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país.
O objeto da empreitada comercial deixou de ser o látex da seringueira ou o ouriço da castanheira. Além do ativo imobiliário, o principal alvo do negócio passou a ser o precioso mogno. Os valores de referência passaram a ser medidos em dezenas de milhões de reais. Ou dólares.
Em 1996, impressionado com a grandeza que o problema havia assumido, o Iterpa (Instituto de Terras do Pará) ajuizou uma ação na comarca de Altamira para cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, que já então era de 4,7 milhões de hectares. Desde logo, independentemente do julgamento do mérito da questão, pendente até hoje, o instituto solicitou ao juiz que fosse averbada a existência da contestação judicial à margem da matrícula do imóvel. A medida serviria de alerta para terceiros de boa fé e acautelaria as providências posteriores. O suposto proprietário continuaria na área. Só não poderia passá-la adiante até que o contencioso fosse decidido.
O juiz Torquato Alencar antecipou liminarmente a tutela. A empresa recorreu da decisão. O desembargador (recentemente aposentado) João Alberto Paiva revogou a decisão de primeiro grau, restabelecendo todos os efeitos do registro imobiliário. Na sua decisão, afirmou que a área era ‘inquestionavelmente’ de propriedade particular, embora todas as instâncias do poder público, da Polícia Federal à Procuradoria da República, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) à Funai (Fundação Nacional do Índio), já estivessem contestando essa dominialidade privada — e, além disso, o tamanho da área supostamente titulada.
O Tribunal confirmou por unanimidade a decisão do desembargador, numa sessão realizada uma hora antes de começar o expediente regular do fórum, às seis da manhã, algo absolutamente inédito nos anais forenses. Quando o procurador do Iterpa chegou para participar da sessão da câmara, já os desembargadores se haviam retirado. Saíram mais cedo para uma viagem de trabalho ao interior do estado. Foi a justificativa.
Confirmada a plena disponibilidade sobre a Fazenda Curuá, o grupo conseguiu assumir o controle de uma outra extensa área próxima, o Seringal Monte Alegre. Alegando que a área estava sendo invadida para a extração de mogno e cedro, a C. R. Almeida conseguiu um interdito proibitório judicial e indicou um ‘fiel depositário’, responsável perante a justiça pela madeira derrubada e equipamentos que haviam sido apreendidos.
Como o bem estivesse sujeito a deterioração, acidentes naturais e roubos, o depositário dos bens, graças a um mandado de segurança, foi autorizado a — com recursos próprios — serrar, embalar, classificar e armazenar essa madeira. Só poderia vir a se ressarcir desse pesado investimento quando — e se — a justiça deliberasse de vez o que fazer com a madeira (avaliada em 120 milhões de reais, ou 40 milhões de dólares).
Embora a decisão proibisse a comercialização da madeira, o Ministério do Meio Ambiente reagiu imediatamente contra a decisão da desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte, desencadeando uma grita nacional. No dia seguinte, a presidente do tribunal chamou a colega para uma conversa e convenceu-a a revogar seu ato, remetendo o processo para a justiça federal, considerada instância competente em função do interesse da União pelas terras (a empresa está contestando essa competência).
Já anteriormente a mesma desembargadora havia concedido um recurso da empresa, requerido através de fax, e, pelo mesmo instrumento, o fax, comunicado no dia seguinte sua decisão à juíza de Altamira, que havia sentenciado contra a empresa. Quatro horas depois de ter determinado o cumprimento de sua decisão, quando o processo, distribuído pelo protocolo informatizado do Tribunal, foi mandado para outra desembargadora, Maria do Céu revogou seu ato. Argumentou que cópia do pedido lhe fora submetido ‘por equívoco’ e o despachara por julgar-se preventa (isto é, vinculada) para decidir a questão.
Enquanto os incidentes pipocavam nas dependências do fórum (e fora delas), os autos do processo principal, formado a partir da ação do Iterpa contra a grilagem, que haviam desaparecido em setembro de 2000, reapareceram em algum dia ainda não definido de janeiro de 2002. O cartório registrou o dia em que o advogado da empresa retirou os autos, mas não o dia da devolução (a partir dessa omissão grave do responsável, assentamentos passaram a ser referidos como se existentes, embora possam ter sido feitos a posteriori).
Materializado novamente, o processo redivivo trazia em seu bojo uma novidade: longa sentença, de 38 laudas, assinada pelo juiz Luiz Ernane Malato, datada de 19 de setembro de 2000, cinco dias depois que os autos lhe foram conclusos (isto é, prontos para receber uma decisão). Na época, Malato atuava na comarca de Altamira. Quando os autos ressurgiram, com a sentença incluída, o juiz estava licenciado, mas já de outra comarca do interior do Pará, de Bragança, para estudar em São Paulo.
Na sentença, o juiz decidiu não examinar o mérito da questão, apesar da extensa argumentação do Iterpa. Simplesmente extinguiu o processo, por considerar que o estado não havia provado sua titularidade da área. Para assumir a condição de parte legítima, o Iterpa precisaria ter discriminado as terras, provando que elas eram efetivamente públicas. A presunção de domínio público, antes aceita, não satisfez o magistrado. A conseqüência prática da decisão: os registros em poder da empresa continuavam válidos, até demonstração positiva em contrário.
Durante 28 meses, ao longo dos quais os autos estiveram em lugar incerto e não sabido, essa importante e controversa decisão, para dizer o mínimo sobre sua explosividade, permaneceu desconhecida de todos. Nada vazou para a imprensa, nem para jornalistas que acompanham o caso desde o início e tiveram contato com o juiz nesse período. Ele simplesmente manteve-se calado, atitude natural, segundo ele, já que havia deixado a comarca de Altamira.
A situação era grave e confusa, admitindo várias hipóteses e explicações. Concretamente, porém, o que houve foi que as partes interessadas só foram intimadas da decisão 28 meses depois que, em tese, a sentença foi anexada aos autos. Como os autos foram retirados um mês antes da data atribuída à sentença e não havia registro da baixa anterior, todas as suposições se tornaram possíveis. Nenhuma, porém, capaz de elucidar o mistério.
Tendo decidido, Malato recorreu de ofício da própria decisão, como manda a norma processual, exaurindo a instância judicial de primeiro grau. Quase dois anos e meio depois é que foi aberto o prazo para o recurso cabível, a apelação ao Tribunal de Justiça do estado. Mas sua substituta na comarca de Altamira, juíza Danielle Bührnheim, revogou todos os atos decisórios que constavam dos autos, declarou a justiça estadual incompetente para apreciar o feito e encaminhou o processo para a justiça federal.
Criou-se um clima de perplexidade, espanto e incredulidade diante dessa história toda, que não faz bem à imagem da justiça, principalmente porque ela tarda demais a prestar os devidos esclarecimentos. Quando os presta. Isso tudo apesar de estar em causa não um terreninho qualquer, mas, no mínimo, cinco milhões de hectares, área da grandeza de um país. Por um passe de alquimia escritural, essa vasta área pode evaporar do patrimônio público e se materializar em um ativo particular, transferindo o controle sobre o maior adensamento do mais valioso patrimônio vegetal da Amazônia. No seu todo, esse patrimônio é medido em bilhões de reais, dezenas e dezenas.
No vértice dessa história está o judiciário, cuja inércia leva o cidadão cumpridor da lei, mas que perquire por seus direitos, a pensar cada vez mais no controle externo, uma alternativa que cabe como luva no caso paraense. Mas quem tem coragem de formular as questões com clareza e coragem?
Tenho tentado. O resultado é que oito dos 13 processos que tramitam no judiciário contra mim se referem à grilagem de terras e à extração clandestina de madeira na ‘Terra do Meio’ do Xingu. Já fui condenado em um desses processos e quase fiquei sem poder me defender da condenação por uma manobra nos autos. O risco maior imediato de sofrer os efeitos da pena (um ano de detenção, convertida, por minha primariedade, no pagamento de duas cestas básicas, no valor de um salário mínimo cada, durante seis meses) parece ter passado. Mas não de vez. A normalidade provavelmente só se estabelecerá, dentro e fora dos autos judiciais, quando um personagem entrar nessa história escabrosa: a opinião pública.’
Folha de S. Paulo
‘Jornalista vai ao STF contra condenação’, copyright Folha de S. Paulo, 21/07/04
‘O jornalista Lúcio Flávio Pinto, que edita em Belém o ‘Jornal Pessoal’, entrou com recurso no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e no STF (Supremo Tribunal Federal) contra sua condenação por difamação, confirmada pelo Tribunal de Justiça do Pará.
Em fevereiro de 2003, Pinto foi condenado em primeiro grau pela 16ª Vara Criminal do Fórum de Belém, por causa de um artigo de 2000, no qual criticava o então desembargador João Alberto Paiva, hoje aposentado, que havia dado decisão favorável à construtora C.R. Almeida em uma disputa com Instituto de Terras do Pará. Considerando-se ofendido, Paiva acionou o Ministério Público.
No dia 6, o TJ-PA confirmou a condenação, e o recurso não foi aceito porque não teria cumprido o prazo. O jornalista diz que obedeceu ao prazo. Ele foi condenado a um ano de prisão. Por ser réu primário, teve a pena convertida no pagamento, durante seis meses, de duas cestas básicas.
Entidades como a Federação Nacional dos Jornalistas e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo divulgaram um ‘Manifesto em defesa da liberdade de imprensa’, em que apóiam Pinto e repudiam a condenação.’
REPÓRTER NELSON RODRIGUES
‘O repórter caveirinha’, copyright Jornal do Brasil, 24/07/04
‘O baú de Nelson Rodrigues: os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-35), Nelson Rodrigues, Org. Caco Coelho, Companhia das Letras, 288 páginas, R$ 39,50
Nelson Rodrigues costumava dizer que tinha escolhido a reportagem policial porque ‘com um ano no metier, o sujeito ganhava a experiência de um Balzac’. Será? Para saber como teria sido este primeiro ano do repórter e quais as marcas teria deixado em sua literatura, o organizador de O baú de Nelson Rodrigues, Caco Coelho, vasculhou em jornais e revistas dos anos 20 e 30 tudo o que o escritor publicou com o próprio nome ou pseudônimo.
O livro levanta não apenas o primeiro ano, mas os primeiros 80 meses de trabalho do repórter e crítico, entre 1925 e 1935. Ao todo, foram catalogadas 837 edições de A Manhã, belicoso jornal fundado por Mário Rodrigues, onde seu filho Nelson estreou aos 15 anos, 610 edições de Crítica, também criado pelo pai, e mais de 2 mil de O Globo, que, na época, chegava a publicar até sete edições por dia.
Dos quase 700 textos encontrados, foram selecionados quatro contos, cinco crônicas, 10 críticas, e 31 reportagens, além de 20 desenhos de Roberto Rodrigues, ilustrador de A Manhã, irmão de Nelson assassinado em plena redação do jornal.
Entre os textos, estão as duas famosas colunas em que o rapazinho topetudo desanca ninguém menos do que Rui Barbosa, e que lhe renderam um castigo do pai, que tinha o jornalista baiano como Deus. A verve rodriguiana já circulava nas veias do adolescente. ‘Rui Barbosa foi um gênio. Toda a gente sabe disso. O pequerrucho que chupa, insaciável, o peito da mamã, e o homem que vai à repartição, que chega ao lar às seis e que, à noite, após o jantar, acende um charuto e desdobra com delícia o jornal predileto … Mas, o que ninguém sabe é o porquê.
‘ Para quem leu O anjo pornográfico, a biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, o prazer de se deparar com as transcrições das reportagens é ainda maior. É fácil visualizar o colegial chegando à redação e se sentando, todo importante, em frente à máquina. Na saborosa descrição de Ruy Castro, ‘a redação de A Manhã era como outras do Rio naquele tempo. Uma sala comprida, com muitas escrivaninhas, cabides para os chapéus e um ou dois telefones de manivela. Poucas máquinas de escrever (daquelas Royal, pretas) e ainda menos gente que as soubesse usar. A maioria dos redatores escrevia a mão, com penas francesas da marca Mallat, em folhas de papel almaço. Usavam viseira como nos filmes, enceravam os bigodes e estavam mais preocupados com as ênclises, próclises e mesóclises do que com as notícias. Os paginadores sofriam: tinham que contar letra por letra, para calcular o espaço da matéria na página. Os linotipistas não sofriam menos, porque os redatores […]escreviam com garranchos, quase impossíveis de decifrar’.
Como as reportagens em geral não eram assinadas, a autoria de Nelson Rodrigues só pôde ser identificada porque seu estilo já era inconfundível. Obsessões como o adjetivo (sua ‘tara estilística’), a pontuação propensa a frases curtas e impactantes, e o conjunto temático (suicídios e pactos de amor eram seu ponto forte) não deixam dúvidas de que os textos reproduzidos só podem ter saído da cabeça de Nelson.
Nessas reportagens, como assinala Carlos Heitor Cony no prefácio, encontra-se ‘um material farto que seria o embrião de grande parte de sua obra teatral e literária’. Chegado ao sensacionalismo, o repórter Nelson se aproximava de seus personagens célebres, como os inescrupulosos Amado Ribeiro, de O beijo no asfalto, e Caveirinha, de Boca de ouro. A verdade era a menor de suas preocupações.’
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‘A notícia desgrenhada’, copyright Jornal do Brasil, 24/07/04
‘Nelson: ‘O problema é que hoje o repórter mente pouco. Mente cada vez menos.’
No Baú de Nelson Rodrigues, é difícil reconhecer a diferença entre um texto assumidamente ficcional, como ‘A paixão religiosa de Maria Amélia’, e a suposta reportagem ‘Um açougueiro sentimental agredido a faca quando recitava Baudelaire’. Ou mesmo classificar como jornalístico um texto como o que carrega o lacrimoso título de ‘Os dramas do desespero/ fugindo à perseguição da polícia, as infelizes decaídas recorrem ao suicídio!/um romance de todos os dias’. Nada é puro em Nelson Rodrigues, nem mesmo os gêneros literários, como demonstram os dois parágrafos lapidares da reportagem:
‘Há três anos desembarcava na gare da Central uma rapariga a quem não faltava graça e beleza.
Vinha da Viola de Bicas, Minas, e lá deixara a família e os seus primeiros idílios. A metrópole incendiou-lhe o cérebro cheio de sonhos. Ela veio, como muitas, para viver. Viver era um segredo que ela não conhecia.’
Nada de lides e sublides, que só vingariam na década de 50, sob as ordens dos ‘idiotas da objetividade’, como Nelson apelidou os copidesques encarregados de implantar o modelo americano de jornalismo. Ele dizia que seriam capazes de reescrever o próprio Proust. No que estava absolutamente certo, já que, dali em diante, literatura seria uma coisa, jornalismo, outra.
Nelson também reclamava que, nos novos tempos, ‘o repórter mente pouco, mente cada vez menos’. E ensinava, contra tudo o que os manuais de redação diziam: ‘Ai do repórter que for um reles e subserviente reprodutor do fato. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar.’
Ética jornalística era uma expressão pouco em voga até então. Nelson, que mais tarde escreveria sob pseudônimo várias críticas das próprias peças (um presente para seus estudiosos), faz num de seus primeiros textos uma ode a Eros Volusia, filha da poetisa Gilka Machado, por quem foi perdidamente apaixonado, e dedica várias colunas à análise das imagens sombrias desenhadas pelo próprio irmão.
Seu jornalismo não temia cruzar as fronteiras da ficção. Para Nelson Rodrigues, elas eram mesmo inexistentes. ‘Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jornalismo. Já ao escrever o primeiro atropelamento, me comovi como se fosse a minha estréia literária.’ O atropelamento também faria parte de sua estréia no teatro, com Vestido de noiva. A peça que revolucionou o teatro brasileiro levou apenas seis dias para ser escrita, boa parte na redação. A reportagem, em 1925, exigiu não dias, mas horas de concentração. ‘Eu me torturei como um Flaubert fazendo uma linha de Salambô’, recordava o escritor, confessando ter ficado seriamente tentado a acrescentar elementos ficcionais – uma vela e uma senhora de preto – na nota de atropelamento. Infelizmente, este texto de estréia não pôde ser localizado pelo organizador da coletânea.
Nas reportagens seguintes, Nelson mostrou que era capaz de inventar histórias mirabolantes a partir de um único telefonema a uma delegacia. Sua imaginação criava diálogos, cenários, subtramas. Sua especialidade era macabra: os pactos de morte entre namorados. Eram os únicos crimes que faziam Nelson sair da redação para apurar in loco. Ele defenderia o sensacionalismo até o fim da vida.
‘Via de regra, o nosso jornal moderno tem pudor de valorizar e dramatizar o crime passional’, dizia. ‘Marido que mata mulher, ou mulher que mata marido, é tratado sem nenhum patético, em forma de pura, sucinta e objetiva informação. (O Jornal do Brasil vai mais longe. Ignora qualquer modalidade de crime e de criminoso. Os atropelados, os esfaqueados, os enforcados, que comprem outros jornais. O do Brasil não lhes dará a mínima cobertura)’.’