Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luís Antônio Giron

‘O humorista, jornalista e artista plástico carioca Millôr Fernandes nega-se a completar 80 anos no próximo dia 16 de agosto. Como diz em um dos muitos currículos que escreveu, ele sempre se recusou a dançar conforme a música – ou conforme o tempo. Por insistência dos amigos e interessados em se consagrar com seus elogios, Millôr resolveu encerrar o assunto publicando, no início de julho, o livro Apresentações (Record, 256 páginas, R$ 34,90). Na coletânea, há elogios a poetas, diretores de teatro, atores, cantores, ilustradores e humoristas, inclusive ele próprio. ‘É o fim da minha carreira de apresentador’, jura a ÉPOCA, em seu apartamento de cobertura em Ipanema, bairro que ajudou a consagrar, nos anos 60, como meca da inteligência tropical. Um dos mestres da verve brasileira, Millôr ataca amigos, inimigos, revela seus planos e critica todos os governos, mas acredita que o humor tem função no Universo. O sarcástico antipensador enxerga o mundo com otimismo.

ÉPOCA – Em seu novo livro, você está mais bonzinho do que nunca. Por quê?

Millôr Fernandes – Quero me livrar da obrigação de apresentar os amigos. Se eu levar esse tipo de coisa a sério, não faço outra coisa na vida. O pessoal acha que sou gênio, que é só começar que saem frases fantásticas. Ganho minha vida com isso. O novo livro interessa porque atravessa 500 anos de História e não há ali pessoas que eu não conheça bastante. Sou tão antigo que nunca conheci ninguém famoso.

ÉPOCA – É possível citar alguns anônimos célebres?

Millôr – Há muitas celebridades obscuras. Manso de Paiva, por exemplo, o único regicida do Brasil. Manso matou com a faca o Pinheiro Machado, candidato à Presidência da República. Ele tinha uns 30 anos quando o conheci: ficava ali, esperando ser atendido, descascando tangerina. A maioria dos famosos desaparece com ou sem razão. O meu amigo fraterno Sérgio Porto é exceção. Ele ficou famoso com o ‘Samba do Crioulo Doido’, com as crônicas depois republicadas. Ele tinha talento, era bonito, agradável e mulherengo. Mas há muita gente de talento que desapareceu.

ÉPOCA – Como você virou celebridade?

Millôr – De repente, todo o mundo que trabalhava no Cruzeiro ficou famoso. Depois da fama, continuei: fiz teatro, cinema, televisão e show no palco. Trabalhei até no show do Zimbo Trio com a Elizeth Cardoso no auge. Intitulava-se Do Fundo do Azul do Mundo. Eu entrava diante de mil pessoas no teatro Sacre Coeur, sem experiência, começava a falar. Eu imitava o Magalhães Pinto cantando.

ÉPOCA – A carreira na TV foi mais promissora?

MilIôr – Apresentei Treze Lições de um Ignorante, primeiro em Belo Horizonte, depois no Rio. Aí o grande liberal Juscelino Kubitschek mandou censurar o programa. Desagradei porque li a notícia do dia: ‘A primeira- dama do país voltou de Paris depois de seis meses e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho’. Fui conversar com o censor, o que nunca tinha feito antes, porque acho que a censura se exerce pela violência. De qualquer forma prometi ler a notícia sem entonação. Mas ele disse que não adiantava. JK nunca voltou atrás.

ÉPOCA – Você se projetou nos tempos de censura. Como você compara o humor da ditadura com o de hoje?

Millôr – Não tenho preocupação com mudanças. A vida é rica e o humor continua. Você me dá o governo mais democrático e eu percebo que estou vivendo dentro de uma ditadura. Nunca houve governo democrático em lugar nenhum. No Brasil, não existe mesmo. O que é diferente em uma democracia é você combinar que aquele que foi eleito vai ficar quatro anos no posto. No Brasil, o medíocre do José Sarney aumentou seu mandato para cinco anos. O nobre Fernando Henrique Cardoso aumentou para oito. Jango foi cortado pela ditadura. O Itamar disse que queria o Fusca, ele o teve no dia seguinte, coisa que nem o Hitler havia conseguido na Alemanha.

ÉPOCA – E Lula?

Millôr – Lula é um autocrata. Esse negócio da bebedeira dele foi ridículo. Ele disse que decidiu expulsar o jornalista para servir de exemplo. Para quê? Para que todo o mundo fique com medo de escrever coisas negativas sobre ele? Amanhã eu não vou poder nem dizer que ele tomou umas e outras. O lugar-tenente Aldo Rebelo está me processando porque eu fui contra o projeto dele de proibir termos estrangeiros na língua portuguesa. É a mesma coisa o papa proibir que as mulheres dêem. Sua Santidade exigiu isso a vida inteira e as mulheres continuaram dando. A língua se transforma. Senão, estaríamos falando latim ou guarani. Escrevi que o Rebelo cometia uma idioletice. Ora, idioleto é um termo técnico para língua individual. Mas ele achou que eu o estava chamando de idiota. Veja bem: eu estava, mas ninguém pode me condenar. Ele me processou e está cobrando R$ 50 mil. Isso é intimidação para os jornalistas. Lula não tem um plano de coibir a liberdade de expressão. O problema é que ele acha que está sendo liberal. Os governos me assustam pela falta de raciocínio. O que FHC já escreveu de besteira é incrível. Os livros dele são os de um bobo. É tão tolo quanto o Sarney, só que mais barroco.

ÉPOCA – Como você vê a condição do negro hoje?

Millôr – É um processo irreversível. A gente adquiriu uma consciência e o negro se valoriza. No Brasil, onde tudo é mais lento, o pessoal do pagode ficou mais bem alimentado e hoje as meninas querem dar para o crioulinho que elas acham bacana. Eu, como sou o rei de perceber as coisas e mudar, já fiz alterações nas frases clássicas: ‘Atrás de todo grande homem tem sempre um negão’. A outra: ‘À noite, todos os pardos são gatos’. É a verdade atual. É preciso abrir a escola e a sociedade para os negros. Negritude é chique.

ÉPOCA – Você e sua turma eram libertários sexuais ou aquele discurso servia para seduzir as garotas?

Millôr – Minha turma era ligada ao elemento feminino. Nós éramos libertos mesmo. Não tem tu, vai tu mesmo. Éramos livres com todos os entraves. Mulher era para o prazer mesmo. Meus amigos Sérgio Porto e Antônio Maria morreram de amor. Hoje isso está cada vez mais difícil. Homem e mulher têm medo de se entregar por temor de processo.

ÉPOCA – Há diferença entre a liberação sexual de seu tempo e a atual?

Millôr – Comigo não tem diferença, porque não saio para conquistar menininhas nas boates. Minha vida é reclusa e você tem relações que algumas vezes se tornam mais íntimas. O fato é que a relação atual entre homens e mulheres é tão complexa que ninguém pode dizer mais nada. Há liberação, mas também setores conservadores de gente jovem. Não é assim nem assado. Houve uma liberação absoluta. Se a gente diz para uma menina de 15 anos que a virgindade era uma coisa sagrada para a mulher, ela não vai acreditar. Hoje a menina pode dormir com quem quiser.

ÉPOCA – Você ainda acha que o humor gay é impossível?

Millôr – Atualmente há muita mulher comediante, mas poucas escrevendo algo que valha a pena. Quero que você me mostre um Ivan Lessa ou mesmo um Sérgio Porto gay. O programa Saia Justa não é humor, é uma excrescência, esculhambação. As apresentadoras interrompem o programa dizendo que estão com regras. Casseta e Planeta envolve superprodução para sustentar trocadilhos agressivos.

ÉPOCA – O humor está mais escatológico?

Millôr – Tem de tudo. As coisas explodiram de tal maneira que não é mais possível chegar a uma conclusão.

ÉPOCA – Ao longo destes 70 anos, seus textos não foram ficando menos prolixos e mais concisos?

Millôr – Não sei. A língua serve para você ser claro ou obscuro quando quiser. A profissão me fez eclético. Aprendi inglês quando traduzi histórias em quadrinhos. Eu fazia dez seções na revista, mas nunca deixei de ir à praia namorar as moças. Tenho preconceito com o cara que é fanático por trabalho e com o sujeito que é monógamo. A vida desse jeito fica muito limitada.

ÉPOCA – Por que você resiste a ser entrevistado?

Millôr – Não gosto de dar entrevista, porque é natural que o entrevistador faça uma interpretação. Uma das formas de interpretar é extrair da entrevista o que você disse de mais agressivo e botar em destaque. Aí você parece um cão danado. Chegou um tempo em que eu perguntava quanto pagavam pela entrevista, porque sou um profissional. Por que vou dar a minha cara à televisão de graça? Quero ganhar é a minha gaita. Tudo o que fiz na vida foi a pedido, exceto duas coisas: a exposição que fiz no Museu de Arte Moderna, em 1957, e depois uma peça excepcional, Flávia, Cabeça, Tronco e Membros.

ÉPOCA – Por que você implica com Machado de Assis?

Millôr – Machado de Assis é um bobo, mas todo o mundo o coloca no céu. É difícil a pessoa recuar naquilo que absorve na juventude. Minha cabeça funciona o tempo todo. A questão da Capitu em Dom Casmurro, por exemplo. Fica todo o mundo preocupado se a Capitu deu ou não para o Escobar. Ora, é evidente que sim. O livro diz que o filho da Capitu tem a cara do Escobar. Demonstro com evidências que Capitu traiu. Bentinho descreve de tal maneira Escobar que ele parece mesmo apaixonado pelo amigo. Peguei trechos sintomáticos do Bentinho no livro. Escobar se afasta no ônibus e Bentinho fica triste porque ele não lhe dá adeus. Eles ficavam de mãos dadas no colégio de padres e os padres achavam aquilo estranho. Não era normal. Dom Casmurro é um livro fraco.

ÉPOCA – Qual é o seu ideal de vida?

Millôr – O meu é ficar pensando, sem fazer nada. Sempre vi essas beldades das revistas falando aquele clichê: ‘Não quero ser reconhecida apenas pela beleza física’. Eu também não quero ser reconhecido apenas pelo meu talento. Eu quero posar nu!

ÉPOCA – Há alguma vantagem em chegar aos 80 anos?

Millôr – O problema é que querem comemorar a data. Tinha o meu plano de não passar dos 80. Nunca tive problema com 20, 40, 50 anos. Agora estão me jogando contra a parede. Estou fazendo força para não ser mais engraçadinho. Porque sou muito engraçadinho. Com 80, você não pode mais fazer graça.

ÉPOCA – Você é otimista?

Millôr – Vivo no melhor dos tempos. Mesmo a violência é resultado da melhoria da vida humana. A automação está provocando a demissão de todo o mundo. As pessoas são obrigadas a sair às ruas. Nesse momento, em 20 ou 50 anos, ou você socializa os benefícios básicos, ou o mundo vai explodir. Quando a gente liga a TV, percebe que o mundo está explodindo. Mesmo hoje, com essa possibilidade de ver tudo, Bush e Blair contaram mentiras para provocar a guerra e torturaram presos. Há 20 mil anos, Nabucodonosor torturava prisioneiros e ninguém sabia. Nosso tempo é admirável. Não adianta querer recuar. No século XIX, você não tinha nada. As pessoas eram sujas e nojentas. Pode-se dizer que elas não sentiam isso. Mas hoje a vida é muito melhor. Sou um otimista: com 6 bilhões de pessoas no planeta, devem existir por aí pelo menos 10 mil gênios.’



CHICO BUARQUE, 60 ANOS
Martha Mendonça

‘Chico Buarque para todos’, copyright Época, 14/06/04

‘‘Não sou cabotino a ponto de fazer uma auto-homenagem.’ Assim Chico Buarque foge das entrevistas sobre os eventos comemorativos de seus 60 anos, a ser completados no dia 19. O compositor vai soprar as velas com a família, em Paris. Enquanto isso, no Brasil, não vai faltar comemoração pelo aniversário do artista, que desafia a máxima de Nelson Rodrigues – torcedor do Fluminense como ele. Em se tratando de Chico, pode ser que a unanimidade não seja burra. ‘Existe um respeito ímpar por esse artista, que, além da obra, é exemplo de cidadão. É uma referência ética’, diz o professor Rinaldo Fernandes, organizador de Chico Buarque do Brasil – Textos sobre as Canções, o Teatro e a Ficção de um Artista Brasileiro.

Por mais que já se tenha falado em Chico ao longo de quase quatro décadas, sempre há uma nova forma de olhar. Em Sobre Chico, nas livrarias a partir desta semana, o jornalista Fernando de Barros e Silva define o compositor como a representação de uma utopia perdida depois da ditadura. Uma ponte entre os anos dourados do desenvolvimentista Juscelino Kubitschek e a amargura dos anos de chumbo. ‘O Brasil se reconcilia consigo mesmo na obra de Chico Buarque’, diz o autor. Ele acredita que existem poucos trabalhos a respeito do compositor, se comparados com o gigantismo de sua obra e sua importância histórica. ‘Estudou-se muito o tropicalismo, por exemplo, mas Chico é um movimento de um homem só’, diz.

Grande parte da obra desse artista único está na caixa Francisco, que a BMG, sua gravadora, lança até o fim deste mês. São 12 CDs e dois DVDs de seus principais trabalhos desde 1987. Discos como Paratodos, Uma Palavra e As Cidades, entre outros da fase mais recente de sua carreira – e a ‘musicalmente mais madura’, como ele mesmo define -, misturam-se aos dois únicos DVDs: Chico e o País da Delicadeza Perdida, dirigido por Walter Salles para a TV francesa, em 1990, e o registro do show As Cidades em São Paulo, em 2000. Junto com a caixa, um encarte com texto do jornalista Mauro Dias traz curiosidades – como o fato de ter sido de Chico a idéia da capa do CD Paratodos, famosa pelos instantâneos de gente anônima. Há ainda depoimentos do artista sobre seu processo criativo, suas influências e a paixão pela escola de samba Mangueira.

Chico, cada vez mais reservado sobre sua intimidade, terá vida e obra expostas numa mostra audiovisual da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, a partir de julho. Haverá fotos de família, imagens de seus trabalhos para teatro e cinema, uma recriação do escritório de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, além de todas as suas músicas à disposição dos visitantes. Um dos segmentos da exposição aborda a ligação de Chico com o futebol e recria, num painel, a linha de seus sonhos: Pelé, Garrincha, Didi, Pagão e Canhoteiro, como ele mesmo canta na música ‘O Futebol’.

E o futebol, é claro, também homenageia os 60 anos de Chico com um programa especial no canal a cabo ESPN. Na data de seu aniversário, um sábado, a emissora apresenta, às 13 horas, o especial inédito O Bom e Velho Chico. O programa reúne imagens e depoimentos de arquivo, como a entrevista dada a Tostão, em Paris, durante a Copa de 1998, e cenas de suas tradicionais peladas com o time Polytheama. Chico pensou seriamente em seguir a profissão, fez até teste para o Juventus, em São Paulo, e jogou numa equipe semiprofissional na Itália, em 1969. Acredita que há uma característica brasileira de ‘músicos que querem ser jogadores de futebol e jogadores de futebol que querem ser músicos’. Se vale a comparação, Chico é o Pelé da música popular brasileira.’