Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Luis Fernando Verissimo

‘Estou há mais de um mês fora do Brasil. Informações sobre o que acontece aí não faltam, na internet e nas notícias de familiares e amigos. Mas se fosse depender da imprensa local para saber do Brasil poderia desconfiar que ele deixou de existir quando viajei, ou existe como a Mongólia ou Luxemburgo, vagas curiosidades geográficas à margem de qualquer interesse sério. Desde que estou na Europa só li três notícias sobre o Brasil. Uma, pequena, tratava da vitória brasileira na Organização Mundial do Comércio na questão dos subsídios. A outra nem me lembro qual foi, provavelmente sobre música ou futebol. A que teve destaque foi a reação desproporcional do governo à matéria do ‘New York Times’.

O que é desprezível deve ser desprezado, não transformado em caso internacional de previsível péssima repercussão. Na minha opinião, era tão inaceitável pensar em expulsar alguém do país daquele jeito que quem teve a idéia deve ser expulso imediatamente. Para não ter outra idéia parecida.

O enfoque e o tom da matéria do correspondente do ‘Times’ (não li, me contaram) não são novidade – como não são novidade as sugestões de que ele seguia sombrios desígnios americanos de represália e desmoralização. Pior do que mal-intencionada ou secretamente dirigida, a matéria é tradicional, apenas outro jornalista americano sucumbindo aos estereótipos de sempre sobre estes pitorescos latinos – com a vantagem de, no caso, mirar num presidente especialmente pitoresco. A própria arrogância da peça não é maliciosa, é um hábito de pensamento senhorial, como o da elite brasileira que não consegue ver um ex-torneiro mecânico ou qualquer outro de origem popular no poder a não ser como um acidente social, um vexame sempre prestes a nos envergonhar diante dos estrangeiros. Pois nossos pobres não são por natureza cachaceiros sem linha? O americano não escreveu que o Lula é vergonhoso.

Mas tomou o preconceito de classe que a figura e a história do Lula atiçam como subsídio para os seus próprios simplismos pré-fabricados, que são os mesmos de quase todos os seus antecessores.

Um jornalista americano que realmente merece atenção, Seymour Hersh, já tinha contribuído para mudar a história do seu país com reportagens sobre o desastre americano no Vietnã e está fazendo história outra vez com seu jornalismo investigativo para a revista ‘New Yorker’ sobre outro desastre, o que Bush e seus neoconservadores armaram no Iraque. Suas revelações atuais sobre os responsáveis graúdos pela tortura de prisioneiros iraquianos e pela tragédia iraquiana em geral aumentam a preocupação nacional com a conduta no cargo de um presidente, filho da aristocracia do seu país, que, como se sabe, abandonou a bebida há anos. Também merece ser dito que Seymour Hersh não corre perigo de ser expulso de lugar algum.’



David Johnston

‘Rumsfeld apoiou táticas cruéis de interrogatório, diz artigo’, copyright The New York Times / Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 16/05/04

‘O secretário de defesa Donald H. Rumsfeld e um de seus principais assessores autorizaram a expansão de um programa secreto que permitia interrogatórios cruéis de membros detidos da Al-Qaeda, fazendo com que esses métodos fossem usados contra prisioneiros na prisão de Abu Ghraib no Iraque, segundo um artigo na ‘The New Yorker’.

O artigo, feito por Seymour M. Hersh, relatou que Rumsfeld e Stephen A Cambone, o sub-secretário de defesa para a inteligência, aprovaram o uso de técnicas de interrogatório mais duras no Iraque em 2003 para extrair melhores informações dos prisioneiros iraquianos para conter a crescente ameaça de levante no país.

A matéria de Hersh, a ser publicada na edição de 24 de maio, afirma que a expansão do ‘programa de acesso especial’ permitiu que as autoridades a cargo de Abu Ghraib se engajassem em práticas de degradação e humilhação sexual. Ela foi postada no sábado no Web site da ‘The New Yorker’.

‘Segundo entrevistas com muitos oficiais da inteligência americanos antigos e atuais’, escreveu Hersh, ‘a operação do Pentágono, conhecida dentro da comunidade de inteligência por muitas palavras-código, incluindo Copper Green, incentivou a coerção física e a humilhação sexual de prisioneiros iraquianos em um esforço para gerar mais dados da inteligência sobre a crescente revolta no Iraque’.

A reportagem de Hersh lança uma nova luz sobre uma questão importante do escândalo de abuso de prisioneiros – se os oficiais militares ou civis ordenaram os maus-tratos de prisioneiros iraquianos. Rumsfeld, que se desculpou pelos abusos, afirmou que eles foram empreendidos por forças de baixo escalão sem a aprovação dos comandantes.

O artigo sugere que Rumsfeld e Cambone tinham, de fato, tirado a culpa pelos abusos dos principais civis do Pentágono para colocá-la nos policiais militares de baixo escalão que estão enfrentando julgamentos em cortes militares.

No sábado, oficiais da administração Bush discutiram diversos detalhes críticos do artigo de Hersh. Eles disseram que não estavam cientes das decisões dos altos níveis de usar técnicas de interrogatórios altamente coercitivas sobre os prisioneiros iraquianos.

Um oficial militar que trabalhava no Iraque disse no sábado que uma força tarefa secreta de representantes militares e da inteligência havia operado no Iraque, mas que ela tinha pouco contato com os carcereiros em Abu Ghraib.

O oficial revelou que os representantes secretos trabalhavam em seu complexo altamente secreto e bem guardado em Bagdá, onde mantinham os cativos incomunicáveis e os questionavam por períodos relativamente curtos antes de entregá-los aos carcereiros em Abu Ghraib.

‘Eles tinham uma missão própria’, afirmou o oficial. ‘Eles escolhiam o seu próprio pessoal. Eles estavam operando sob suas próprias regras. Então nós não temos nada a ver com isso. Estar lá seria uma violação de segurança enorme para qualquer um’.

O oficial disse que o grupo não está mais trabalhando no Iraque.

O oficial revelou que o complexo de Bagdá onde a equipe trabalhava era tão controlado que outros militares e membros da inteligência não podiam entrar sem autorização do comandante das forças americanas no Iraque, o general Ricardo Sanchez. O oficial se recusou a discutir quais técnicas de interrogatórios a equipe secreta usava no Iraque, mas disse que geralmente ela entregava seus prisioneiros aos carcereiros de Abu Ghraib depois de 72 horas.

‘Era uma coisa de campo de batalha’, afirmou o oficial. ‘Você pega as pessoas. Vocês as interroga, depois entrega para quem pode tirar mais coisas delas’.

O oficial disse que o major general Geoffrey D. Miller, o então comandante do campo de detenção militar americano na Baía de Guantanamo, em Cuba, visitou o complexo secreto em setembro passado, durante uma viagem para avaliar os problemas da detenção e os esforços dos interrogatórios no Iraque. Miller estava acompanhado por um especialista em detenção, que fez sugestões sobre a segurança do complexo.

Oficiais da administração Bush apontados para testemunhar diante do Congresso confirmaram que as Convenções de Genebra se aplicavam aos detentos no Iraque e que, portanto, não permitiam táticas coercitivas.

Mas alguns oficiais sustentaram que com a piora da insurgência no Iraque no verão passado, houve um aumento da preocupação sobre como melhorar a inteligência para ataques futuros.

Uma solução dessas preocupações, escreveu Hersh, era endurecer com aqueles iraquianos no sistema prisional do Exército que eram suspeitos de serem insurretos’. Rumsfeld e Cambone foram um passo além, disse o artigo, expandindo o escopo de um programa secreto ao ‘trazer seus métodos não-convencionais a Abu Ghraib. Os comandos eram para operar no Iraque como fizeram no Afeganistão’.

No Pentágono, o porta-voz chefe, Lawrence Di Rita, negou vigorosamente as alegações de que Cambone dirigia um programa secreto para incentivar a coerção e a humilhação sexual de prisioneiros iraquianos.

‘É fantasia pura e simples’, disse Di Rita em uma entrevista por telefone. ‘Nós não discutimos programas secretos, mas nada em qualquer programa secreto teria levado alguém a sancionar uma atividade como a que foi vista naqueles vídeos’.

‘Nenhum oficial responsável neste departamento, incluindo o secretário Rumsfeld, iria ou poderia ter se envolvido na sanção de coerção física ou humilhação sexual de prisioneiros iraquianos’, afirmou Di Rita.

Alguns elementos do artigo da ‘The New Yorker’ haviam sido relatados anteriormente, incluindo o programa especial de interrogatório para prisioneiros da Al-Qaeda capturados no Afeganistão. Esse programa, autorizado pelas opiniões legais do governo que diziam que os prisioneiros da Al-Qaeda eram ‘combatentes ilegais’ não protegidos pelas Convenções de Genebra, incluía métodos coercitivos, apesar de proibir o uso de tortura como definida pelos estatutos federais e convenções internacionais.’



Helena Celestino

‘Um repórter no sapato da Casa Branca’, copyright O Globo, 21/05/04

‘Coincidência? O repórter que esta semana denunciou a suposta autorização dada pelo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, para ‘flexibilizar’ as leis da Convenção de Genebra nos interrogatórios dos presos do Iraque é o mesmo que há 35 anos revelou ao mundo o massacre de My Lai, perpetrado por soldados americanos no Vietnã. Seymour Hersh já fora, no início do mês, o primeiro a falar da existência de fotos de prisioneiros iraquianos sendo torturados. Com 67 anos, é um dos mais respeitados jornalistas investigativos dos EUA, com acesso a altas fontes da CIA e militares do Pentágono.

– Desde o ataque do 11 de Setembro, ele vem dando furos na área de inteligência do governo e acertando tudo o tempo todo – diz um colega.

Suas reportagens revelam informações secretíssimas, quase sempre sem citar o nome do informante. O governo desmente veementemente, mas os fatos denunciados por Hersh acabam sendo comprovados. Foi assim com My Lai e aconteceu o mesmo quando ele revelou a participação do embaixador americano no golpe contra o presidente Salvador Allende no Chile em 1973. Desta vez, o roteiro está apenas no início: ele citou ‘um experiente funcionário da CIA’, ‘um ex-alto funcionário da inteligência americana’, ‘um analista militar’, ‘consultores do Pentágono e do governo’ como fontes de informação na sua reportagem, publicada domingo pela revista ‘New Yorker’, para denunciar que as cenas de tortura fotografadas na prisão de Abu Ghraib não eram atos de depravados, mas conseqüência de uma decisão tomada por Rumsfeld. Segundo Hersh, o secretário de Defesa permitiu que o plano secreto da CIA de atuação no Afeganistão para prender os militantes da al-Qaeda fosse usado também no Iraque, sem se importar com as leis internacionais.

– É uma peça histérica de mau jornalismo, a maior peça de mau jornalismo que já vi – disse o porta-voz do Pentágono, Lawrence Di Rita.

Hersh não parece preocupado com o desmentido e o editor da ‘New Yorker’, David Remnick, disse saber os nomes das fontes citadas anonimamente na reportagem. Os canais de TV também apostaram na veracidade das informações de Hersh, pois ele foi a estrela dos talk shows na semana. No ‘Late edition’, não hesitou em fazer um paralelo entre as cenas de tortura no Iraque e os métodos dos nazistas. ‘A gente vê dois cachorros atacando os prisioneiros, dois pastores alemães. Isso é uma cena digna do Terceiro Reich’, disse. Agora não quer mais dar entrevistas: ‘A informação é importante, o repórter, não’, desculpa-se.

Sempre comparado a Bob Woodward, um dos autores das reportagens sobre Watergate (o escândalo que derrubou o presidente Richard Nixon em 1974), Seymour Hersh é mais polêmico e instável. Era free-lancer quando levantou a história do massacre de civis na Guerra do Vietnã e ganhou um Prêmio Pulitzer com a reportagem. Trabalhou em agências de notícias e, na década de 70, foi repórter em Washington do ‘New York Times’, deu alguns furos no caso Watergate, levantou uma história sobre um espião da CIA com muita repercussão nos EUA, mas não se acomodou ao estilo do jornal.

– Ele é agressivo e apaixonado. Deixa recados para altas autoridades mandando ligar imediatamente para ele, não é bem o estilo do ‘Times’ – diz o professor Steve Naimburg, da Universidade de Missouri. – Já cometeu erros, mas um jornalista que trata de assuntos tão delicados e depende de fontes anônimas está sujeito a isso.

No mês passado, recebeu o prêmio National Magazine Award por uma reportagem sobre corrupção na família real da Arábia Saudita, mas já passou por situações difíceis. Quando lançou um livro sobre o presidente John Kennedy, recorrendo às fontes anônimas, ousou tocar numa unanimidade nacional e o mundo quase caiu sobre ele. Em ‘The Dark Side of Camelot’ (O lado escuro de Camelot), descreveu com detalhes muitas histórias sexuais de JFK e disse que o então presidente pagava à atriz Marilyn Monroe para não revelar o caso amoroso dos dois.’