‘Foi a primeira morte sem aspas do Brizola. Sua ‘morte’ em sentido figurado foi anunciada várias vezes. Quando comecei a publicar matéria assinada em jornal, em 1969, não havia instruções claras sobre o que se podia e não se podia escrever – pelo menos não em Porto Alegre. Alguns assuntos eram obviamente desaconselhados, para usar um termo brando: críticas ao governo militar e a militares brasileiros em geral, qualquer referência aos rumores de tortura e assassinato de presos políticos e opositores do regime, notícias de guerrilhas. Você podia recorrer à alusão velada, a entrelinhas e a indiretas que passavam ou não passavam pela autocensura do jornal, e assim ir testando os limites do permitido. Às vezes ‘passar’ ou não ‘passar’ dependia apenas de um retoque no texto, outras vezes tudo era desaconselhado e você tinha que escrever outra crônica, de preferência sobre o sexo de anjos apolíticos. Era conveniente ter sempre um texto de reserva, um que não se prestasse a nenhuma interpretação dúbia. Por isso escrevia-se muito sobre futebol, e mesmo assim cuidando para não enfatizar demais as jogadas pela esquerda. Um assunto ideal seria um torneio de futebol entre anjos sem sexo e destros.
Só uma vez recebi uma proibição direta, com nome e sobrenome. Na verdade, dois nomes e sobrenomes. Tinha mencionado o Brizola numa crônica – nem a favor nem contra, era só uma reminiscência – e o editor me chamou para dizer que a crônica não poderia sair e que eu não fizesse mais aquilo. Era proibido tocar no nome de Leonel Brizola no jornal. ‘Faz de conta que o Brizola morreu’, me disse. E, quando eu ia saindo do seu gabinete, acrescentou: ‘Ah, e o Helder Câmara também.’
Acho que deixaram o Dom Helder ressuscitar antes do Brizola, que continuou ‘morto’ para a imprensa brasileira até começar a famosa abertura lenta e gradual do general Geisel. E quando voltou ao Brasil depois da anistia, vivíssimo, Brizola foi recebido por uma multidão que resistira aos anos de silêncio forçado e inútil sem esquecê-lo. Seguiram-se anos de triunfos e de mais algumas mortes entre aspas. Depois daquela eleição presidencial em que ele chegou atrás do Enéas, fiz uma charge para o ‘Jornal do Brasil’ que era assim: uma multidão em torno da sepultura do Brizola recém-enterrado, e no meio da multidão, sorrindo, o próprio Brizola. Se sua vida e sua carreira ensinavam alguma coisa era que qualquer notícia da sua morte política seria prematura.
Sua última morte não foi em sentido figurado. Foi sem aspas, desta vez. Mas, sei não. Talvez seja prudente deixar uma cuia com mate quente perto da sepultura, por via das dúvidas.’
Clóvis Rossi
‘Carne, osso e plástico’, copyright Folha de S. Paulo, 24/06/04
‘Elio Gaspari matou a charada, como quase sempre, ao dizer que, com a morte de Leonel Brizola, morre também o século 20 no Brasil. Seria mais preciso se dissesse que morreu o último político do século 20, ainda que todos os demais em atividade também tenham nascido no século passado.
Ocorre que Brizola era o último político construído sem a televisão, ainda que o brasilianista Thomas Skidmore diga que tenha se adaptado bem a ela. Acho que não: Brizola era o último político de carne e osso em um ambiente em que a grande maioria é ou parece ser de plástico.
A grande exceção era, até a vitória de 2002, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Brizola era da geração do gogó e da saliva. Uma vez, há muitos anos, participei de uma entrevista dele no ‘Roda Viva’, programa da TV Cultura. Depois, dei carona até o restaurante em que ele e os entrevistadores jantaríamos. Se o trajeto demorasse mais 15 minutos, teria levado meu voto.
Não pelas idéias, que não as discutimos, mas pela boa conversa, pelos casos contados, pelo capacidade de fazer-se rapidamente amigo íntimo até de quem conhecia pouco.
A grande maioria dos políticos em atividade não consegue mais conversar desse jeito desarmado. Parecem estar sempre em campanha, instruídos pelos marqueteiros de plantão a vender, 24 horas por dia, uma dada imagem. A maioria apenas me cansa. Alguns chegam a irritar pela insistência em demonstrar uma sapiência que sei que não têm ou um padrão ético que sei ser discutível.
Brizola era seu próprio marqueteiro. Como gente de carne e osso, tinha suas virtudes e defeitos, como é óbvio. Mas não deixava no interlocutor o sabor de plástico que a maioria dos políticos produz.
O diabo é que a propaganda na TV, fator central e decisivo nas campanhas eleitorais, torna obrigatória a plastificação. Talvez por isso Brizola tenha morrido politicamente antes de morrer fisicamente. Pena.’