‘Certa vez, um incauto decidiu ironizar Luiz Carlos Prestes para o marechal Cordeiro de Farias, adversário histórico de suas idéias. O marechal cortou suas asas na hora: ‘Só personagem da história pode criticar personagem da história’.
Esse episódio me veio à lembrança lendo rescaldos sobre a morte de Celso Furtado. Em pelo menos dois locais, dizia-se que Furtado tinha sido bem avaliado, após a sua morte, por generosidade dos críticos. Um ‘boa praça’ que, por não arrumar encrenca, não despertava críticas. Mas era um dinossauro, se comparado, por exemplo, a Roberto Campos.
Faz parte das modernas sociedades de massa a banalização da opinião, despi-la de qualquer critério mais técnico de análise para aproximá-la do leitor comum. Mas não precisava exagerar.
Furtado é o mais internacionalmente conhecido dos economistas e cientistas sociais brasileiros. É o brasileiro que mais inovou o pensamento econômico internacional por ter se especializado em analisar as características específicas das economias emergentes.
Por ser universalista, não existe um ‘pensamento’ de Roberto Campos, nem no plano teórico nem no histórico. Sua inteligência aguda e seu senso crítico o transformaram em referência do liberalismo dos anos 80, do liberalismo extremado dos anos 90, mas não em autor de obras inovadoras e essenciais como as de Furtado.
Isso em nada muda a importância de ambos para o desenvolvimento do país. Furtado foi o economista que pensou o desenvolvimento dos países emergentes, as políticas regionais, trouxe as primeiras ferramentas de análise macroeconômica para o país, interligou a questão cultural com o desenvolvimento. No campo prático, criou as bases que permitiram o planejamento macroeconômico do Plano de Metas de JK e a criação da Sudene, com todos os defeitos que se possa apontar.
Campos foi o pragmático fantástico que, nos anos 50, ajudou a pensar o BNDES, nos anos 60 ajudou a montar a Finep, foi o coadjuvante brilhante de Octávio Gouvêa de Bulhões na modernização institucional do governo Castello Branco, o crítico acerbo do pesado processo de estatização do final dos anos 70, uma luz de racionalidade que, após certo período, ficou um pouco ofuscada pela radicalização progressiva.
Mesmo no Investbanco (o banco que dirigiu e quebrou), foi um inovador, que errou, mas por estar muito à frente do seu tempo, segundo testemunho de Luiz Carlos Mendonça de Barros, e de toda uma geração de operadores financeiros que começou sua vida profissional por lá.
Ambos cometeram equívocos, ambos deixaram obras monumentais, ambos são espécimes diversas da família dos dinossauros inteligentes, extintos do mapa da inteligência brasileira pela grande noite da ditadura, que abortou o debate público e banalizou a discussão pública brasileira a ponto de se utilizar, no julgamento de Campos e de Furtado, os mesmos critérios que se aplicam na análise de técnicos de futebol, de apresentadores de televisão e de socialites.
Muitas vezes muitos me perguntam onde se perdeu o rumo, se essa superficialidade que acometeu todas as instâncias da discussão pública brasileira é um sinal inevitável dos tempos modernos.
Penso que não. No período mais intenso da urbanização, da industrialização, o debate político foi abortado. A última geração a combater o arbítrio foi a das diretas. Mas a opinião pública moderna foi plasmada dentro da retórica da mediocrização, entendido por tal o discurso que procura sempre refletir o pensamento médio.
Ainda há uma longa noite pela frente, até que o país aprenda a somar o que de melhor cada agente contribuiu para a construção nacional.
Mais do que um determinismo dos tempos modernos, o que se tem é uma fase de superficialidade, que, dentro de algum tempo, será superada pelo próprio amadurecimento da opinião pública e pelo desenvolvimento do país.
Que são Dias Leite, santo Eliezer, são Delfim, santa Conceição, são Bresser Pereira, são Reis Velloso, são Sérgio Juagaribe nos iluminem até o término da travessia.’
FERREIRA GULLAR / FSP
‘‘Nada é intocável e indiscutível’, diz Gullar’, copyright Folha de S. Paulo, 19/12/04
‘Nascido em São Luís há 74 anos, José Ribamar Ferreira poderia ter sido mais um Ribamar maranhense. Mas sua inquietação o levou a ser ‘gauche’ na vida, seguindo os passos da poesia de Carlos Drummond de Andrade.
Maior poeta brasileiro vivo, um de nossos melhores críticos de arte, dono de opiniões firmes, muitas vezes polêmicas, Ferreira Gullar (pseudônimo extraído do Goulart materno) abre novo capítulo de sua vida em 2 de janeiro: no primeiro domingo de 2005, ele passará a assinar uma coluna semanal na Ilustrada.
Gullar adianta que, na coluna, exercitará seu lado de cronista, menos conhecido do grande público. É uma faceta bem familiar a seus amigos e vizinhos de Copacabana, que sabem de seu prazer em andar na rua, conversar com pessoas, ouvir histórias.
Nesta entrevista, ele fala de sua poesia, das artes plásticas dos outros (seus desenhos e colagens são hobby que ele não pretende expor) e da esperança que mantém em sua vida.
Folha – O senhor já disse que não queria mais entrar em polêmicas, mas, ao escrever a coluna, isso não acabará acontecendo?
Ferreira Gullar – Vou dizer o que penso, como sempre digo. Mas não quero bater boca com o leitor. Ele pode me esculhambar, escrever o que quiser. Não pretendo fazer da coluna um troço mal-humorado. Eventualmente, entrarei em assuntos mais graves, mas também vou escrever crônicas. A crônica talvez seja um alívio para o leitor, porque o noticiário já é muito pesado.
Folha – E que temas poderiam render crônicas?
Gullar – Comigo sempre acontecem coisas estranhas. Quando eu participava da coluna ‘Rodízio’ no ‘Jornal do Brasil’ [no final dos anos 50, revezando-se com Manuel Bandeira e outros], registrava algumas delas, que depois foram reunidas em livro [‘A Estranha Vida Banal’].
Voltei a escrever crônicas para o ‘Pasquim’ quando estava no exílio, em Lima e em Buenos Aires. Assinava como Frederico Marques, brincadeira com Friedrich, de Engels, e Marx. Num dia, passei por uma agência da Varig em Buenos Aires e vi uma foto da enseada de Botafogo. Deu aquela nostalgia e decidi: ‘Vou voltar’.
Iam me prender na chegada [em 10 de março de 1977], mas tinha muita gente me esperando no aeroporto. No dia seguinte me prenderam. Fui levado para o DOI-Codi algemado, vendado, essa palhaçada toda que aqueles babacas faziam.
Folha – Como o senhor acompanha a polêmica em torno da abertura dos arquivos militares?
Gullar – Tem que abrir. É uma vergonha. Em parte deles [militares], continua a visão de que fizeram certo ao dar o golpe [de 1964], que torturar estava certo.
Mas acho que não tem de buscar vendetas [vinganças]. Não resolve nada e mantém o país num clima de divisão. Tem é que passar a limpo. Mas, se for punir, vai ter que punir dos dois lados, porque quem pega em arma é para matar. Sempre fui contra [a guerrilha], grande bobagem.
Folha – O senhor não simpatiza com o politicamente correto?
Gullar – Penso pela minha cabeça. E estou sempre começando de novo. Cada coisa que acontece, procuro entender. Às vezes penso contra mim, chego a uma conclusão contrária à que eu costumo pensar. Fazer o quê? Não fico preocupado em ser coerente.
Folha – O senhor foi vanguardista nos anos 50 e se tornou inimigo das vanguardas a partir dos anos 80, em especial nas artes plásticas. Mudou o senhor ou mudaram as vanguardas?
Gullar – Eu mudei. Nem vanguarda nem coisa nenhuma eu considero intocável e indiscutível. Em 1961, o que estava fazendo [com o grupo neoconcreto] tinha chegado a um impasse. Comecei a ver que não era o caminho correto para mim.
Já Lygia [Clark] e Hélio [Oiticica] foram além do limite. É claro que cada um faz o caminho que quer, mas não sou obrigado a concordar. O que os dois fizeram estava já fora do que se podia chamar de linguagem artística. Eles chegaram a um ponto em que queriam provocar meras sensações. Do meu ponto de vista, isso é estar antes das linguagens.
Dizia na época: ‘Não pensem que eu vou cortar minha orelha. Não sou suicida. Não estou no mundo para me destruir nem destruir os outros’. Veja que Lygia acabou parando, e Hélio, no final, começou a fazer experiências com cinema. Porque as linguagens das artes plásticas já estavam desintegradas.
Liberdade total não é nada. A água que não tem limite é rasa. Se boto cocô numa lata, não estou inventando nada. É uma coisa pífia, fedorenta. Essa é uma visão segundo a qual Deus fez a arte e ‘eu estou aqui botando para quebrar nessa bobagem que Deus inventou’. Mas não é nada disso. A arte foi inventada por nós.
Folha – Por causa dessas opiniões sobre arte, o senhor acha que passou a ser visto como reacionário?
Gullar – A mim ninguém nunca disse isso. Só se dizem por trás. Mas nenhum poeta foi mais longe do que eu nas experiências. E não há mérito nenhum nisso. O que não tenho é apego a mim mesmo. Nem tenho medo de mudar.
Folha – E por que a ruptura na época foi tão radical: trocar a poesia visual, de vanguarda, pela poesia social, escrevendo até cordéis políticos?
Gullar – São coisas explicáveis pela conjuntura da época. Preferi participar daquele momento social a fazer uma poesia que ninguém entendia e que eu não queria mais fazer.
O CPC [Centro Popular de Cultura, do qual foi presidente] fez um monte de coisas partindo de um equívoco: fazer uma arte simples para atingir o povo. Nem atingiu o povo nem fez boa arte. Nós mesmos chegamos a essa conclusão pouco antes do golpe. E, nos espetáculos que fizemos depois, procuramos dar mais qualidade. Fizemos autocrítica na prática.
Folha – São Luís, para o senhor, é como Itabira para Carlos Drummond de Andrade: um retrato na parede que dói?
Gullar – São Luís é um amor não resolvido. Voltei lá algumas vezes, mas tem sempre um quintal ou um pedaço de telhado que me joga numa viagem emocional em direção ao menino que não existe mais. É doloroso, não dá para viver lá. Mas tenho certeza de que seria outra pessoa se não tivesse nascido em São Luís. O esplendor das manhãs, o cheiro do tijuco podre, a lama, está tudo impregnado na minha poesia.’