‘Daniel Filho quase dirigiu Dona Flor e Seus Dois Maridos. Num imponente salão do Hotel Hyatt, ele conta para o repórter do Estado que foi convidado pelo produtor Luiz Carlos Barreto para dirigir o filme adaptado do romance de Jorge Amado. ‘Não fiz porque não saberia fazer. Gosto de falar daquilo que conheço e o universo baiano de gastronomia e malandragem me é estranho. Sinto– me mais à vontade em filme sobre casais, como A Dona da História’, conta Daniel. O próprio A Dona da História, que estréia hoje em mais de 300 salas de todo o País, não era o filme que ele queria fazer, embora tenha gostado muito da peça de João Falcão, que ficou muito tempo na estrada, levando a teatros de todo o Brasil as atrizes Marieta Severo e Andréa Beltrão, substituída, no cinema, por Débora Falabella.
‘Queria dirigir algum texto do João. Pedi algo novo e ele me perguntou por que não fazia A Dona da História. A idéia terminou me seduzindo e agora aqui estamos’, Daniel conta, sentado à mesa que inclui três das atrizes – Marieta, Débora e Fernanda Lima – , mais Rodrigo Santoro, que chega quando a entrevista já está rolando. Marieta é tiete de A Dona da História. Defende o filme com entusiasmo. ‘Acho que o Daniel fez um trabalho muito delicado. O filme é cheio de pequenos toques criativos. É sutil, o que me agrada bastante’, diz a atriz. O cartaz do filme anuncia – um amor, duas épocas, muitas vidas. ‘É o tema da peça como do filme e acho que é o que dá universalidade à história. Quem nunca se perguntou no que a sua vida poderia ser diferente? Essa possibilidade mexe com todo mundo, comporta muitos enfoques’, avalia a atriz. O diretor rebate a crítica que algumas pessoas fazem ao filme – diz que A Dona da História não é sobre uma mulher (Carolina) que precisa de um homem para ser feliz, mas sobre uma mulher que descobre o quanto ama seu homem.
‘Só depois que vi o filme pronto concluí que ele era a favor de um casamento longo. Por isso, o dediquei a meus pais, a seus 70 anos de casamento. Mas poderia ter dedicado a Fernanda Montenegro e Fernando Torres, a Glória Menezes e Tarciso Meira, a Nicete Bruno e a Paulo Goulart, a Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto, o Tony Ramos e a Lidiane – olhe que, nesse casal, ela não trabalha fora. Por que negar que muitas mulheres conseguem ser felizes sendo do lar?’
Marieta, que faz Carolina na idade madura, tem estado em permanente exposição no cinema brasileiro dos últimos dez anos. É uma veterana da ex– retomada da produção, iniciada por Carlota Joaquina, de Carla Camurati, em 1994. Débora Falabella, que faz a personagem quando jovem, é uma veteraninha, com um grande sucesso no currículo – Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes. E Fernanda Lima está estreando no cinema. ‘A Fernanda me surpreendeu. É essa beleza e ainda sabe dizer seus textos. Não se intimida com os diálogos. Quando tivemos de dublar algumas partes, ela se saiu muito bem.’ Daniel sabe que A Dona da História estréia sob intensa expectativa. A empresa produtora Globo Filmes e a distribuidora (e co– produtora) Buena Vista esperam um estouro de bilheteria. No ano passado, filmes– fenômeno como Carandiru, de Hector Babenco, Lisbela e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, que vinha do ano anterior, catapultaram a produção brasileira a uma inédita (nos últimos anos) ocupação do mercado da ordem de 22%. Este ano, apesar dos 3 milhões de espectadores de Cazuza, de Sandra Werneck e Walter Carvalho, os números do cinema nacional no próprio mercado estão menos vistosos.
Há uma cobrança para que A Dona da História venha reequilibrar a presença brasileira. Daniel Filho não acredita que seu filme possa repetir ou ultrapassar os 4,9 milhões de espectadores de Carandiru. Mas ele espera fazer pelo menos os 150 mil espectadores que A Dona da História teve no palco, ‘senão vai ser um vexame’, diz. ‘Nem brinca, Daniel’, observa Marieta Severo, que acredita no potencial do filme. O diretor não quer entrar na neura da pressão. ‘É um filme muito simples e direto. Foi feito para divertir, para agradar. Nunca participei de um set tão feliz. Todo mundo deu o melhor de si. A Dona da História foi feito com muito amor.’ Por mais que lhe interesse falar sobre isso, Daniel Filho não foge ao debate sobre a Ancinav, a Agência Nacional do Audiovisual. Diz que a parceria cinema– TV tem sido seu trabalho, faz tempo. Lamenta o preconceito, o ranço contra a TV que ainda observa em parte da comunidade cinematográfica e da imprensa. ‘Como se pudéssemos viver de cinema no Brasil’, provoca. Os que não fazem TV fazem publicidade, ‘que dá mais dinheiro’, espeta.
Ele acha necessário produzir muitos filmes, até telefilmes, para preencher bem a grade de programação das TVs. Espera que as outras redes comecem a competir com a Globo – só a Record, que vai lançar o filme da Eliana, mostrou interesse nisso. O fato de ser favorável ao diálogo entre o cinema e a TV, não leva Daniel Filho a apoiar a lei que cria a Ancinav. ‘Sou totalmente contrário ao princípio político da lei, à base ideológica sobre a qual ela é fundamentada. Não adianta dizer que tem duas ou três coisas boas, e tem mesmo.’ Daniel anuncia que está se desligando da Globo Filmes. E revela – ‘Minha firma está em negociações com as Organizações Globo, visando a Globo Filmes, a Globo Sat e até o Sistema de Rádio.’
Rodrigo Santoro retoma o tema do ambiente de alegria no set. Lembra que vinha de três experiências pesadas, em filmes como Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky; Abril Despedaçado, de Walter Salles; e Carandiru. ‘Queria fazer alguma coisa mais leve e divertida e a A Dona da História foi perfeito.’ Santoro gagueja e até canta, na cena da serenata para Débora Falabella. ‘Nunca cantei nem no chuveiro e aqui não fizemos nenhuma preparação especial. Cantei porque era preciso e acho que a cena saiu espontânea, muito bacana.’ Débora reconhece que sua personagem tem um lado Lisbela muito forte, ‘mas isso é por causa do João Falcão, que escreveu os dois roteiros, e pelo amor do cinema, que move as personagens nos dois filmes’, diz Marieta Severo. Daniel Filho comenta a mudança de estrutura – o filme começa como um flash– back tradicional, indo e vindo no tempo; aos 41 minutos, quando Marieta encontra Débora no banheiro, a narração passa a ser como na peça. A personagem dialoga consigo mesma em dois momentos de sua vida, como jovem e como mulher madura.
‘Tentamos fazer esse encontro mais cedo, mas não houve jeito’, diz o diretor. Quanto ao fato de parecerem dois filmes, ele lembra que Alfred Hitchcock fez rupturas muito maiores em Psicose. Daniel diz que, pela primeira vez em sua carreira, nunca teve dúvidas nem indecisões sobre onde colocar a câmera. Só planejou, até mesmo com storyboard, as cenas da passeata e da festa porque eram grandes, envolviam muitos figurantes e poderiam confundir a produção. Mas ele também surpreende ao dizer que prefere dirigir mil passeatas. ‘Tiro de letra.’ Difíceis, para o diretor, são as cenas íntimas.’
Luiz Zanin Oricchio
‘Visão diet dos anos 60 e elogio ao simplismo’, copyright O Estado de S. Paulo, 01/10/04
‘Ninguém é senhor do seu destino e isso é mais ou menos o que vai descobrir a protagonista de A Dona da História, vivida por Marieta Severo.
Ela é Carolina, que arruma uma crise no seu casamento com Luiz Cláudio (Antonio Fagundes), justo quando resolvem vender o apartamento na Barra da Tijuca para fazer uma sonhada viagem ao exterior. O filme se dá em dois tempos. O atual é o da crise; no passado, quando o casal se conhece e vive o grande amor, Carolina é interpretada por Débora Falabella e Luiz Cláudio por Rodrigo Santoro.
Planejado para ser grande sucesso, A Dona da História poderia também ser interessante. Isso se recusasse o tom de caricatura para retratar os anos 60, durante as revoltas estudantis, quando acontece o encontro de Carolina e Luiz Claudio. É engraçado, a própria Globo já tratou do assunto com mais firmeza e emoção na minissérie Anos Rebeldes. Regrediu. Ou alguém acredita naquelas cenas de passeatas que pintam na tela? Ou nas serenatas daquele Che Guevara apaixonado, que vai cantar Guantanamera no balcão de sua Julieta, aliás, Carolina. Sim, o filme tem esses toques de amores proibidos, porque a moça é rica e o rapaz pobre, além de revoltado e, com toda a possibilidade, comunista. Só que no filme tudo isso é misturado e embalado de modo tão infantil que chega a dar dó daquele período histórico.
Passemos por isso e vamos admitir que A Dona da História, da História propriamente dita, não quer saber nada. Quer saber da sua historiazinha pessoal, com agá minúsculo, e o que teria sido dela se tivesse casado com o rapaz chato mas rico. Ou o que teria acontecido se tivesse recusado o convite para ir a um baile, etc. Alternativas do passado que resultam em futuros diferentes, futuros possíveis, como se diz. Alain Resnais dirigiu um filme genial sobre isso, Smoking No Smoking, que mostra exatamente como pequenas decisões podem implicar histórias de vida diferentes para cada personagem. Mas o tom é o de um exercício intelectual e, como se sabe, isso faz mal para a saúde da bilheteria.
Então a ordem é simplificar ao máximo, deixar tudo na superfície mesmo, de modo a não dificultar qualquer compreensão, o que é louvável, mas também não deixar espaço para qualquer exercício de imaginação, o que é menos. Tudo vem prontinho, mastigado e digerido, como manda o bom estilo televisual da emissora dominante. Diversão de bom nível, produto nacional de padrão internacional, com boa colocação no mercado, atores conhecidos e qualidade técnica indiscutível.
E Deus assim criou o ‘cinema brasileiro de qualidade’, uma seqüela da pós– retomada que ainda precisa ser analisada pelos especialistas. Tudo é bem– feitinho – e perfeitamente inócuo. Precisa ser sempre assim? Não. A contraprova é outro filme, também em cartaz, Redentor, que ousa ir além das chinelas, para usar a expressão bíblica. Irônico, cáustico, porém cheio de imaginação, se propõe a divertir o público e, ao mesmo tempo, pintar diante dos seus olhos um grande painel da nossa tragédia social. A Dona da História evita, pelo contrário, qualquer das arestas buscadas conscientemente por Redentor. Aplaina tudo. Daí a visão anódina de um dos períodos mais ricos da história recente. Daí a leitura diet de uma das maiores angústias do ser humano, aquela que pergunta o que eu poderia ter feito da minha vida e não fiz. Certo, é diversão. Mas quem disse que diversão tem de ser tão superficial assim?’
Silvana Arantes
‘O impossível acontece’, copyright Folha de S. Paulo, 30/9/04
‘Voltar no tempo, desdobrar uma esquina da vida e seguir em outra direção é a chance que o diretor Daniel Filho dá à protagonista do longa ‘A Dona da História’, interpretada simultaneamente pelas atrizes Débora Falabella e Marieta Severo.
O filme, que estréia amanhã em 250 salas, sucede ‘A Partilha’ (2001), por sua vez o título que interrompeu jejum de quase duas décadas de Filho na direção de cinema, desde os iniciais ‘Pobre Príncipe Encantado’ (1968) e ‘O Impossível Acontece’ (1969).
Com seu segundo longa no século 21, sobre uma mulher em dúvida entre a carreira de atriz e um grande amor, o diretor diz que homenageia a ‘trabalhadora caseira’, figura comum em ‘países subdesenvolvidos como o nosso’.
Do velho mundo, diz sonhar com o modelo europeu de produção de filmes, com financiamento das TVs. O diretor afirma que a Globo não está mais entre as maiores emissoras mundiais e diz que é ‘uma tristeza’ que ela seja ‘possivelmente a única estação profissional’ do país. Afiado, cita ‘Acquaria’ para provar que prestígio na publicidade não é sinônimo de sucesso no cinema.
Folha – O sr. tem reputação de bom estrategista no lançamento de filmes nacionais. ‘A Dona da História’ é aposta no filão feminino?
Daniel Filho – Não sou estrategista de lançamento. Vários filmes que lancei não foram bem. Para citar um recente, ‘Redentor’ [de Cláudio Torres]. Portanto, não sou esse midas de só acertar.
Minha vida é de mais acertos. Mas essa média está relacionada com os riscos que corro. O mundo muda e você tem que estar atento. Se eu fizesse hoje uma história como ‘Malu Mulher’, que fiz em 1978, estaria defasado.
Folha – No entanto, em ‘A Dona da História’ a carreira profissional da mulher é incompatível com sua vida amorosa. Não é um recuo até em relação a ‘Malu Mulher’?
Filho – Não. Nem todas as mulheres trabalham fora. Em países subdesenvolvidos como o nosso, há enorme contingente da mulher trabalhadora caseira. A do nosso filme teve quatro filhos, dedicou a vida a esse tipo de casamento. Minha homenagem é a esta mulher. Não creio que seja voltar atrás.
Folha – A trilha usa ‘Chovendo na Roseira’ (Tom Jobim) na voz de Sandy, e não na de Elis (1974). O sr. quis mostrar que da ‘Pimentinha’ a Sandy há uma curva do Brasil?
Filho – Não. Eu não queria tirar o espectador do filme. Para ‘Canta, Brasil’, poderia ter usado a gravação fantástica de Gal, mas ela roubaria a minha cena. No final do filme, se botasse a Elis, em vez de ficar com essa menina, iria para a Elis Regina revolucionária. E quero ficar com a menina sonhadora.’
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‘‘Não tenho mais nada a provar’, diz diretor’, copyright Folha de S. Paulo, 30/9/04
Nesta parte da entrevista, o diretor Daniel Filho fala sobre a produção de cinema no Brasil, a predominância da TV Globo no mercado e sua atuação na Globo Filmes.
Folha – O sr. avalia que o cinema caminha para ser menos arte e mais entretenimento juvenil?
Daniel Filho – O cinema americano, que domina o mercado, tem apostado nesse tipo de filmes, possivelmente porque têm poder aquisitivo bem maior. Mas não creio que seja o mesmo no Brasil.
Na Europa, as televisões fechadas e abertas começaram a investir no cinema e, ali, há uma possibilidade de fazer filmes menores, mais intimistas, que precisam menos desse chamado público que vai ao cinema. Vejo isso acontecer e é algo que desejo muito.
Folha – O sr. se refere à participação das TVs européias no financiamento da produção cinematográfica. O vice– presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, publicou na Folha artigo intitulado ‘A TV não é o problema’, em que avalia o projeto do Ministério da Cultura de criar a Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual). Onde está o problema do financiamento do cinema brasileiro?
Filho – Eu vejo isso tão longe, que acho que não seja para a minha geração. É o problema do achatamento salarial. Somos terceiro mundo. Pertenci a uma época em que produzíamos filmes com nosso dinheiro, e esse dinheiro voltava. ‘O Casal’ [1975] foi um filme que produzi com meu dinheiro. Eu, Roberto Farias e Tarcísio Meira o produzimos.
Folha – Quanto custou?
Filho Não me lembro. Tenho 25% do filme. A mim custou um Karman Ghia que vendi e meu trabalho. Foi o que dei. Realmente, o problema não está na TV. Está em como podemos produzir algo que se pague. Quando fui fazer televisão independente, vi que certos produtos não podia fazer.
Quando quis vender [a série] ‘Confissões de Adolescente’, o que podiam me pagar não cobria o custo do programa. É por isso que você vê o Silvio Santos tentando fazer um tipo de programa, a Bandeirantes fazendo outro, e a maioria fazendo programa de entrevista, porque fica barato.
Como a Globo é a dona do mercado, pela competência e pelo investimento dela, lá o patrocínio cobre o preço do programa. Mas como são eles que fazem, você fica fora, sem saber o que fazer.
Folha – É uma incongruência o país que tem a Globo, uma das maiores empresas de produção audiovisual do mundo…
Filho – (Interrompendo) Já foi mais forte. Pelo que vejo nas listas dos caras, caiu algumas posições. Mas continua sendo forte.
Folha – Uma grande empresa?
Filho – Isso! Das mais fortes do mundo é um pouco forte demais.
Folha – Pois bem, o país possui uma grande empresa de produção audiovisual e um cinema subindustrial. É incongruente?
Filho – Exatamente. Temos a TV Globo, com um audiovisual muito forte. Temos as outras muito incompetentes, porque, durante o período que a TV Globo se formou, as outras poderiam ter se formado também. Mas algum problema houve nas suas administrações ou nos seus processos de investimento ou no governo, quando deu as concessões.
Desde que existo na televisão, já vi sumir a TV Tupi, a TV Rio, a TV Manchete, a verdadeira TV Record, a Excelsior, que já foi muito mais forte do que a Globo. Sumiram. Não existem. O que houve? Onde houve o erro?
Vi os desmandos na TV Excelsior. Vi os desmandos nas associadas. Vi o desinteresse nas outras estações. Ou interesses paralelos nas outras estações. E vi, na TV Globo, o dr. Roberto Marinho não enfiando a mão no dinheiro que entrava e reinvestindo no próprio produto. Então ela começou a crescer e se tornou possivelmente a única estação realmente profissional do país.
Isso para mim é uma alegria? Não. Para mim é uma tristeza. Como você está num campo em que, graças a Deus, há uma concorrência maior, você pode sair de um jornal para outro, ganhando mais. Nós: [só temos a] TV Globo. Ou vamos fazer dois meses de uma novelinha rápida ali.
A TV fechada, também por um erro de estratégia, foi feita de uma forma que só no Brasil não teve tantos assinantes como tem nos outros países. Então, nem na TV fechada a gente pode se dedicar a fazer um programa com mais dinheiro. É essa a história.
Folha – Comenta– se no mercado que a Globo Filmes tem dívida de R$ 47 milhões com a Globo e vive um impasse, por não conseguir se tornar lucrativa. O sr. não está na testa da Globo Filmes porque a Globo Filmes não é um bom negócio?
Filho – Vamos devagar. Qual é a sua tese?
Folha – A Globo Filmes não é um bom negócio.
Filho – Nunca ouvi isso. E que a Globo deve R$ 47 milhões à TV Globo? Isto tenho certeza de que é total inverdade. A Globo Filmes não deve um centavo à TV Globo, mesmo porque a Globo Filmes é a TV Globo, mas ela retorna o dinheiro. A Globo, algumas vezes, patrocina uns filmes que não se pagam e depois puxa o dinheiro da bilheteria.
[A reportagem refez a pergunta para a Central Globo de Comunicação, que respondeu: ‘A Globo Filmes não recupera os investimentos de mídia que faz (até hoje R$ 45 milhões, e não R$ 47 milhões, como mencionado), mas este valor não é considerado uma dívida, uma vez que seu papel é estratégico e, desde seu lançamento, em 1997, seu objetivo é fomentar a indústria audiovisual. Quanto a faturamento, este ano teremos a nossa melhor receita e, pela primeira vez, cobriremos os custos que temos, excluindo os investimentos em mídia.]
Folha – Por que o sr. não está na testa da Globo Filmes?
Filho – Não sei. Os diretores da Globo é que têm que responder isso. Não tenho a menor idéia.
Folha – Como diretor artístico da Globo Filmes o sr. prefere descobrir novos talentos ou aglutinar talentos já comprovados?
Filho – Quando chamei Fernando Meirelles [‘Cidade de Deus’], ele não era talento comprovado.
Folha – Só na publicidade.
Filho – Só na publicidade. O que não quer dizer nada, porque Flavia Moraes é a melhor e a mais bem paga da publicidade.
Folha – E ‘Acquaria’ não é um bom filme. É o que está dizendo?
Filho Estou dizendo que ‘Acquaria’ foi mal. Não vi, mas soube que é um mal filme, apesar de achar que vale a tentativa.
Folha – É diversa a produção dos diretores oriundos da TV: Guel Arraes (‘Lisbela e o Prisioneiro’), Jorge Furtado (‘O Homem que Copiava’), Luiz Fernando Carvalho (‘Lavoura Arcaica’), Jayme Monjardim (‘Olga’). Nesse arco, o sr. aprecia tudo? Gosta de ‘Lavoura Arcaica’?
Filho – A média é ótima. O que vale é a média. Na minha vida, na tua vida, o que vale é a média. Você não pode ser julgado apenas por um ato nem pode se deixar abater por um ato que tenha feito.
Não tenho mais nada a provar. Tudo meu já está provado. Vocês me conhecem. Já viram o que fiz de bom, de ruim, de excelente, de delicado, de grosseiro. Sou isso.
Folha – O descompromisso de não querer provar mais nada substitui o pedido– confissão– biográfica ‘Antes que me Esqueçam’?
Filho – ‘Antes que me Esqueçam’ continua. Serei esquecido, sem dúvida nenhuma, como todos os artistas brasileiros. Tem um momento na vida que você tem que relaxar e curtir. Já corri o que tinha que correr. Não quer dizer que eu tenha encerrado, mas agora corro mais tranqüilo.’
Claudio Szynkier
‘Valores e estética globais são fatores essenciais’, copyright Folha de S. Paulo, 30/9/04
‘A embalagem de ‘A Dona da História’ traz a idéia do cinema como refúgio idílico da classe média, espelho para suas vivências e sonhos. Ou seja, essa aspiração metalingüística, bastante cara à mitologia audiovisual da Globo – a casa de Daniel Filho– , de ‘minha vida é um filme’.
Parte– se de uma construção orientada pelo conflito: há um senso de imagem nostálgica, suave, em choque com a modernidade envidraçada das paisagens e a decadência do corpo.
Surgem duas histórias paralelas, sobre as mesmas pessoas e lugares. Carolina se lasca na fria aparelhagem de academia. Em um jogo rápido de planos de vivacidade retrô e colorida, sorri, com o uniforme de balé, 32 anos antes. E a Barra? Hoje, jardim de prédios ‘futuristas’, 32 anos atrás, uma selva a ser desbravada, como a vida dos personagens, ainda na flor.
Nos anos 60, Carolina e Luiz Cláudio se apaixonam em manifestação. Vão se casar. Hoje, ela, entojada, pouco agüenta a cara dele. Quer se separar, tudo azedou.
Se esquecermos a desconexão entre os Luiz Cláudios de hoje e de ontem, ‘A Dona da História’ é um shopping center filmado de primeira linha, com textura de loja fofa e aromatizada em cada gesto de câmera. O passadismo, quando encarado, em tom de revista antiga, é melodioso.
O roteiro, equipado com tensões cômicas burlescas, vai cativar. Sem falar do enredo, que passa pela brincadeira do ‘se eu fizer diferente aqui, o que vou colher em um novo futuro?’.
Os enquadramentos sorriem sob a regência de uma artilharia sonora dourada. E o filme baila, entre os dispositivos onírico e naturalista. Neste, que primor. A guerra estudantil nas ruas, com policiais – ferindo gente com esguichos– e cavalos, impõe selo de recriação poética e respeitosa da história brasileira.
Ou seja, temos, em cada camada, um ideal institucional claro, de vida e produção. Todas as instâncias estéticas estão – meio que politicamente– harmonizadas, as engrenagens operam em sadia cadência industrial, o barulho é de máquina nova. Tal lógica de assepsia e excelência, é claro, não abandonará o coração do filme.
Embora se construa, a princípio, no conflito, ‘A Dona da História’, pregará a erradicação das contradições: que vazio é o destino se pensarmos em remontá– lo, é dado o sinal. Indicará a diluição de qualquer estranheza que conspire para a demolição ou o envenenamento de um projeto de ‘segurança’, familiar e estética.
Como sugere o esforço metalingüístico, a vida dessa classe média, na redoma do filme, imita mesmo um certo imaginário de ficção.
Mas de televisão – Globo, no caso– , em seus mecanismos plásticos e sociológicos mais profundos. E pensemos no último Charlie Kaufman, que também viaja pela memória e pelo tempo.
O recomeço, em ‘Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças’, é um pacto pela imperfeição, pela nebulosidade do que vem adiante na vida. Sobretudo, um pacto pela aventura ‘errada’, meio cinematográfica, do viver a dois. Uma sociedade acidental, em nome da chance do acidente.
Recomeçar uma história afetiva, em ‘A Dona da História’, é a conciliação, o remendo final. Um grito de negação, estética inclusive, da vida como algo áspero ou indomável. Essas coisas, entendemos, seriam opostas à beleza, e a uma cartilha, a da Rede Globo.’
DOCUMENTÁRIOS
‘Um livro fundamental sobre o documentário’, copyright Jornal do Brasil, 05/10/04
‘Três em cada três discussões sobre o cinema documental acabam por afunilar– se numa questão que assombra o gênero: afinal, o que é documentário? Que lugar ocupam as idéias de realidade e verdade nessa forma de cinema hoje tão prestigiada? Reféns do ‘maldito’ termo documentário – que os americanos contornaram com um não menos problemático, non– fiction film – , cineastas e estudiosos gastam boa parte de seu tempo com querelas semânticas que, na verdade, refletem dilemas éticos, estéticos e políticos nascidos praticamente junto com o cinema. O título do livro que o talentoso documentarista e engenheiro de som Silvio Da– Rin lança hoje na Tenda do Festival do Rio, às 18h30 (em frente ao nº 1.260 da Av. Atlântica, em Copacabana), já anuncia as noções de refração e crise que acompanham toda reflexão sobre o filme documental: Espelho partido – Tradição e transformação do documentário.
A publicação não vai transformar o beco sem saída desse debate numa autopista desimpedida, mas certamente vai torná– lo mais iluminado, limpo e habitável. Sem pretender contar a história do documentarismo mundial, o livro acaba sendo o que melhor se aproxima dessa função entre tudo o que já foi editado no Brasil. Esse texto, sem algumas modificações importantes da versão agora publicada, tem circulado como tese há alguns anos pelo meio acadêmico, fornecendo base teórica a toda uma geração de universitários. Ou seja, antes mesmo de chegar à forma de livro, já cumpriu uma função admirável.
Entre as suas muitas qualidades está a de aliar, passo a passo, o exame do trabalho dos grandes documentaristas (aqueles que formaram escola) com o rebatimento teórico que eles inspiraram. A combinação de dados biográficos, exemplos colhidos nos filmes, considerações de contexto ideológico e análise de teorias permite ao autor caminhar no rumo de suas próprias conclusões sobre o documentário como um mero constructo, ou seja, ‘uma ficção como outra qualquer’.
Que o documentário envolve dramatização, interpretação, invenção e performance todos sabemos de sobra. Mas a forma como essas estratégias se sucederam desde as primeiras tomadas do cinematógrafo de Lumière até a auto– reflexividade do documentário contemporâneo, nem sempre é compreendida na profundidade proposta por Da– Rin, refinado conhecedor do assunto. Para desmentir a idéia de uma evolução linear, que supostamente acumularia ganhos no sentido de se atingir uma verdade cada vez mais complexa e fiel, ele repassa as contribuições de Robert Flaherty, John Grierson e a escola inglesa, Dziga Vertov e o cinema– olho, Robert Drew/Richard Leacock e o cinema direto, Jean Rouch e o cinema verdade. A experiência brasileira é enfocada em Alberto Cavalcanti e, sobretudo, pelo viés da crise da representação documental, através de trabalhos de Arthur Omar, Jorge Furtado e Eduardo Coutinho.
Da– Rin utiliza em larga escala a classificação proposta por Bill Nichols, segundo a qual os documentários se comportam diante da realidade de modo expositivo, observacional, interativo e/ou reflexivo. Não o faz, porém, para separar um modo do outro, hierarquizá– los ou ordená– los segundo uma cronologia. Todo o seu esforço de articulação e análise tem por objetivo mostrar como essas linhas de força se combinaram e interagiram historicamente, tendo sempre no horizonte algum método de representação. Daí a constante recuperação de condutas e ideais ‘antigos’ na abordagem de procedimentos mais modernos. A trajetória dos documentários é uma aventura autenticamente dialética no que toca à tradição e à transformação.
Em meio a múltiplas atitudes e pensamentos a respeito do cinema do real, Silvio Da– Rin elege Vertov como uma espécie de padroeiro da modernidade. Ou pelo menos um parâmetro fixo, em torno do qual gira o seu compasso. Ao recusar a narrativa como atributo de dramatização, mas privilegiando a montagem como lugar da produção de sentidos, Vertov teria levantado questões que anteciparam e ultrapassaram o discurso hegemônico sobre os documentários. Da– Rin dedica a Vertov o maior espaço e, proporcionalmente, a maior importância no que se refere ao ‘desvio’ que hoje tanto se busca na relação entre imagem e realidade.
A imposição – fundamentada – do entusiasmo por Vertov, contudo, não chega a transformar o livro em elegia. O autor vê a história dos documentários como uma sucessão de acumulações e dispersões, onde nenhuma fase tem a primazia absoluta de tangenciar algum ideal. Signos precoces de modernidade seriam já a ‘narratividade frouxa’ de Flaherty e mesmo a obsessão formal de Grierson, que em certo nível traía sua crença na predestinação naturalista do cinema.
Da– Rin dedica algumas de suas melhores páginas a levantar a revolução de valores provocada pelo advento do som nos documentários. Questiona com vitalidade os preceitos de observação não– intervencionista do cinema direto, contrapondo a isso a ‘intervenção produtiva’ operada pelo cinema– verdade, com sua aberta incorporação do falso. Recupera as raízes do movimento auto– reflexivo, hoje dominante nos documentários de ponta, sublinhando mais uma vez o papel pioneiro de Vertov e seu O homem da câmera.
Ao longo de sua consistente análise histórica, Da– Rin lança um olhar crítico ao ilusionismo e às apropriações ideológicas que afastaram o documentarismo – assim como o cinema em geral – de uma suposta vocação modernista, instituindo– o como um suposto instrumento de prova. A figura do espelho partido sintetiza, assim, um elogio à fragmentação de perspectivas e ao descentramento de discursos que podem reconciliar o documentário com suas mais ricas potencialidades.’