‘Ensaísta, crítica e, desde 2000, professora do Depto. de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes, da USP, Esther Hamburguer colabora regularmente na imprensa, refletindo sobre a importância da TV na sociedade brasileira. Num estudo orientado pelo antropólogo Marshall Sahlins, ela recupera agora a história da TV no País, assim como ‘questões privilegiadas de antropologia contemporânea’, como observa Lilia Moritz Schwarcz. Esta pesquisa está no livro O Brasil Antenado, da Jorge Zahar Editor. Há um subtítulo sugestivo – A Sociedade da Novela.
É o recorte de Esther. Estudando a história da telenovela, esse gênero que o Brasil – leia-se a Globo – desenvolveu e aprimorou, a ponto de transformá-lo em artigo de exportação, ela na verdade quer estudar o País. Pois se é verdade que o Brasil se reflete nas novelas, elas, reciprocamente, oferecem um interessante painel para se entender esta nação agora sobressaltada pelo escândalo do mensalão. Janete Clair é uma das escritoras analisadas por Esther Hamburguer. Nenhum estudo sobre a telenovela brasileira estaria completo sem essa autora fundamental (leia ao lado).
Por mais importante que seja Janete, Esther, na introdução, prefere lembrar De Corpo e Alma, novela de Glória Perez que foi ao ar entre 1992 e 93. De Corpo e Alma é lembrada pela mistura de realidade e ficção que chocou o País. Na madrugada de 28 de dezembro de 1992, Daniela Perez, filha de Glória e atriz da novela, foi assassinada num matagal próximo ao estúdio de gravação. O caso ganhou ares de telenovela mórbida quando o ator Guilherme de Pádua, companheiro de Daniela no elenco, confessou o crime.
A repercussão, nacional e internacional, foi grande. Mobilizou, como diz Esther, ‘a indústria da TV em suas conexões com o público, o Judiciário, o Executivo e a mídia’. Mais que isso, ela vê no episódio um elemento valioso para se entender o significado da TV no País e a forma como ela construiu a identidade (e a cidadania), dos anos 1970 aos 90. Esther analisa a questão do mercado, mapeia as preferências do público (e quem é esse público), mas principalmente debate a novela como espaço de discussão da nação. Faz isso num texto enxuto, no qual o rigor da análise não inibe o prazer da leitura (e até a trívia que a autora oferece). Você vai ver a novela com outros olhos. O Brasil produz a maior parte da programação exibida em horário nobre. Elementos culturais, conteúdos ideológicos, códigos de linguagem, tudo passa pelo crivo de Esther, que enfatiza a conexão entre a consolidação da indústria televisiva brasileira com o autoritarismo do regime militar.’
MEMÓRIA / JANETE CLAIR
Flávia Guerra
‘Primeiro e único romance de Janete Clair é relançado hoje na ABL ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 11/08/05
‘Há dois anos, o acervo de Janete Clair, a Nossa Senhora das Oito, estava literalmente mofando em um apartamento no Rio. O calor, a umidade e o mal acondicionamento estavam corroendo o que de melhor o Brasil já produziu em teledramaturgia.
Glória Perez, discípula fiel de Janete, não se conformou e convocou o diretor de TV e publicitário Márcio Tavolari para tentar salvar o material e transferi-lo para São Paulo, para a sede do Grupo de Pesquisa e Estudos da Telenovela, da USP. ‘Aceitei na hora e um mês depois viajava para o Rio, para a casa do Alfredo Dias Gomes, filho de Janete, para checar o estado do acervo e ver o que podia ser feito. Começava então um grande desafio, que consumiu muito trabalho’, conta Tavolari. A recompensa por esse esforço é para todos. Em meio a originais, anotações e fotos antigas, Tavolari e sua equipe descobriam verdadeiras relíquias. A primeira delas chega ao público hoje, na Academia Brasileira de Letras, com o relançamento de Nenê Bonet (Barcarolla, R$ 34, 288 págs.), primeiro e único romance escrito por Janete. A data não poderia ser mais adequada. Além de comemorar os 80 anos de Janete (completados em abril), o lançamento também festeja o Dia da Televisão.
A segunda descoberta foi o original de Estrada do Pecado, novela inédita de 90 capítulos. ‘É curioso porque a Janete nunca escrevia além do quinto capítulo a não ser que a novela fosse entrar em produção. E nota-se nesse texto que ela exercita todos os recursos tão característicos de suas obras’, diz Tavolari, que não conseguiu transferir o acervo para a USP, mas o acomodou em um espaço na Bela Vista que será transformado em Instituto Janete Clair.
Nenê Bonet nasceu como romance de folhetim. No fim da década de 70, Janete foi convidada pela extinta revista Manchete para resgatar o formato. No começo dos anos 80, a história foi publicada em livro, mas em edição reduzida e está fora de catálogo há mais de 20 anos.
Nenê Bonet foi escrito à maneira tradicional. Um capítulo por semana. O que obrigava Janete a manter a curiosidade do leitor, o tão clássico mistério de fim de capítulo e bebe abertamente na fonte de mestres como Dumas, Balzac e Machado de Assis. Os personagens do romance vivem na década de 20, mas têm psique dos anos 70. Nenê não sabia o que era a liberação sexual que mudou o mundo nos anos 60, mas Janete sabia. E soube tratar do tema com sutileza e simplicidade.
A história se passa num Rio dos anos 20, época em que a escritora nasceu e a capital carioca ganhava refinamento. Ernestina (Nenê), jovem ingênua, filha superprotegida de um aristocrata rural, é criada para ser obediente ao marido, fiel, submissa. Depois de perder os pais, descobre que seu marido idealizado era um homem rude, machista e autoritário. Por meios nada ortodoxos, ela descobre o caminho da emancipação e da libertação sexual. A leitura de Nenê Bonet rende para começar, uma constatação: seria uma ótima novela. Está tudo ali. O mistério no final de cada capítulo, as personalidades bem marcadas, o tom dramático. A Globo comprou os direitos em 1998, mas, para nosso azar, o projeto está engavetado. Janete provou mais uma vez que dominava a linguagem como poucos e fez por merecer sua entrada, ainda que informal, na ABL.’