Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Luiz Felipe de Alencastro

"Seguindo uma evolução já observada alhures, o quiproquó sobre a expulsão do jornalista Larry Rohter ecoou no estrangeiro e assumiu novos desdobramentos ao entrar de volta no Brasil. É o efeito de ricochete do noticiário político, particularmente impactante nos governos democráticos latino-americanos: quando uma iniciativa desastrada parece superada no plano interno, ela se espalha pela mídia ocidental e bate de volta no país. As fogueiras que pareciam apagadas se reacendem como como as velas de ‘pavio mágico’ nos bolos de aniversário. Nos anos 70, não existia esse tipo de vela. Mas já havia o repique fosforecente das encrencas políticas, fenômeno que contribuiu para ofuscar a visão do governo Allende. A entrevista de Lula à Isto É, afirmando, ‘O Brasil não é governado por um alcoólatra’ – frase fosforescente que será ricocheteada na imprensa do mundo inteiro – e o desabafo do presidente da Câmara, João Paulo, convidando o governo a ‘esquecer esse episódio e tocar para a frente’, resumem a encanação e o sufoco gerados pelo caso Larry Rohter. Entretanto, as interpretações conflitantes que o NYT e o Planalto extraem da carta de ‘retratação’ mostram que a refosforecência do incidente com o jornalista americano continuará em pauta.


À diferença das crises financeiras globalizadas, que atingem quase todos os países emergentes, o efeito de ricochete do noticiário internacional bate muito mais forte, como disse acima, nos países latino-americanos onde há liberdade de imprensa. Boa parte dos outros países emergentes está ao abrigo deste efeito porque não lida com a democracia. Quanto aos países desenvolvidos, o problema, em geral, nem se coloca: a solidez de suas instituições políticas e econômicas lhes permite olhar de cima para o diz-que-diz vindo de fora. Como disse a Paulo Henrique Amorim, no UOLNews, a pesquisadora da Unicamp Regina Martins, que analisou os textos do NYT sobre o Brasil entre 1986 e 2000: ‘Para eles importa o olhar deles. Não o do outro. Para nós importa o olhar do outro’. Única região do Terceiro Mundo onde a colonização deu lugar a um conjunto de nações novas, verdadeiramente ocidentalizadas, a América Latina é bastante sensível ao ‘olhar do outro’ americano ou europeu.


Deixando de lado o lembrete sobre o desafortunado Chile de Allende, existem lições mais gerais a serem tiradas do incidente com o NYT. A primeira delas tem a ver com o rumo das reações brasileiras. O movimento articulado no Congresso para reverter a decisão de expulsão do correspondente, a tomada de posição dos jornais e dos jornalistas brasileiros condenando a medida governamental, o manifesto da OAB no mesmo sentido, a decisão do STJ, ilustram um consenso contrário à medida do governo. Demonstrou-se a vitalidade democrática do país e evitou-se o pior, isto é, uma febre nacionalisteira. Febre que resulta da mistura de impulso nacionalista e de demagogia fuleira. Não foi ainda desta vez que o Brasil sofreu esse tipo de regressão política que provoca surtos freqüentes na Argentina. Aliás, confirmando o viés de nuestros hermanos para a pauleira com os gringos, Cláudia Dianni publica na Folha de S. Paulo (16/05/2004) uma reportagem sob o título ‘Argentinos admiram a severidade de Lula com os EUA’.


A segunda lição do episódio se refere ao debate sobre a imagem do Brasil, dos brasileiros e dos seus dirigentes transmitida pelos correspondentes estrangeiros. Do lado brasileiro, o Planalto já reconhece que tem tratado de maneira inadequada esta categoria de jornalistas. Acesso aleatório aos membros do governo e burocracia na concessão de credenciamentos são as principais queixas transmitidas pelos correspondentes ao ministro Gushiken e seus assessores da Secom. Agora, a Secom promete organizar um encontro mensal entre um dos ministros e os correspondentes estrangeiros no Brasil. O primeiro seria com o ministro Luiz Fernando Furlan. Mas o problema é mais difuso. A equipe da Secom encarregada do contato com os jornalistas estrangeiros parece ser, no mínimo, trapalhona. Reclamações sobre este setor existem desde o início do governo Lula. As legações diplomáticas brasileiras no exterior também poderiam fazer um esforço mais consistente. Há adidos culturais e adidos de imprensa, bem instalados e muito bem pagos pelos contribuintes brasileiros, nas nossas embaixadas situadas nas principais capitais do mundo. Não obstante, raramente esses adidos escrevem aos grandes jornais desses países para esclarecer assuntos ou desfazer equívocos publicados sobre o Brasil. Moro há um quarto de século em Paris e não me lembro de ter lido um só texto desta natureza publicado na imprensa francesa.


Do lado da imprensa internacional, o problema tem outra equação. Comparada com a importância que teve no passado, a função de correspondente estrangeiro desvalorizou-se bastante. Contribuem para esta evolução, a difusão das informações e das edições online, os custos de manutenção dos escritórios no exterior, e o relativo desinteresse que envolve a política internacional depois do final da Guerra Fria. Isso também vale para os jornais brasileiros, que reduziram drasticamente seus correspondentes e sucursais nos Estados Unidos e na Europa. O assunto veio à tona na rede de debates brazilnetworks (brazilnetwork@news.gvsu.edu), composta por brazilianistas de diversos países, onde o caso Larry Rohter está sendo discutido. Um dos participantes da rede nota as deficiências da cobertura da América Latina pelo NYT. Só há dois correspondentes do jornal em toda região, e mais um outro, itinerante, quando estoura uma grande crise em algum país. Em seguida, as matérias enviadas pelos correspondentes constituem, em geral, textos requentados publicados pelos jornais locais. Enfim, os correspondentes preferem os assuntos mais exóticos em detrimento de matérias mais refletidas e investigadas. Considerando as simplicações e as caricaturas que vejo, há anos, a imprensa francesa publicar sobre a Itália, bem aqui do lado, penso que a controvérsia não se limita nem ao NYT, nem à América Latina. Há um problema mais amplo, ligado ao declínio da informação de qualidade na imprensa, ilustrado pelo sucesso dos tablóides ingleses. Parte dos motivos que acentuaram essa evolução podem estar ligados à contaminação da imprensa pela supercialidade e a vulgaridade despejadas pela TV.


A terceira lição dessa trapalhada toda tem a ver com o Itamaraty. Faço parte dos que consideram o ministro Celso Amorim como o melhor ministro do governo Lula. Em poucos meses, numa conjuntura internacional em que as negociações comerciais transformam-se em longas maratonas e a diplomacia tem de correr atrás de várias lebres ao mesmo tempo, Celso Amorim ganhou o respeito de todos, dentro e fora do Brasil.


Mas houve algumas mancadas. Durante o contencioso sobre as exigências impostas pelo governo americano para conceder visas aos brasileiros (e para os restantes dos países latino-americanos, à exceção do México), Lula deixou-se levar pela ilusão que poderia deixar o Brasil fora das novas regras. No encontro com Bush em Monterrey, durante a Cúpula das Américas (13/01/2004), Lula botou o assunto em cima da mesa, junto com Marco Aurélio Garcia e Celso Amorim. Do lado americano estavam também Colin Powell e Condoleeza Rice. O Brasil insistia para fazer parte do grupo de 27 nações (a maioria dos países europeus e alguns asiáticos) que dispunham do Visa Waiver, privilégio permitindo viagens sem visa para os Estados Unidos em estadias inferiores a 90 dias. Na saída da reunião, Celso Amorim lançou-se numa evocação histórica: ‘O Brasil tem um histórico de 200 anos de bom relacionamento (com os americanos), foi o único país latino-americano a mandar tropas para lutar com os aliados (liderados pelos EUA) na Segunda Guerra Mundial e abriga até uma cidade chamada Americana, construída por refugiados norte-americanos da Guerra Civil’. Bush prometeu estudar o assunto e tocou o barco no rumo oposto: pouco tempo depois o governo americano anunciou que, a partir de 30 de setembro, os 27 países perdiam o Visa Waiver. Seus cidadãos também terão que deixar impressão digital e ser fotografados para entrar nos EUA. O balanço do episódio é meio patético. No encontro com Bush em Monterrey – rara oportunidade de tratar bilateralmente de assuntos relevantes sobre negociações comerciais e política internacional -, Lula entupiu a pauta com uma questão superada. Celso Amorim deveria ter isso em vista, ao invés de invocar a Guerra Civil americana e a Segunda Guerra Mundial para deixar Lula insistir num pleito inútil sobre os visas.


Outra mancada diplomática ocorreu na visita que Lula fez à Líbia de Muhamar Kadaffi (dezembro 2003). De boa ou de má fé, muitos criticaram a visita de Lula ao ditador líbio (no time da má fé, incluo um ex-chanceler tucano, sugerindo que Lula visitasse países importantes como China, em vez de visitar países autoritários, como se o governo de Pequim tivesse algum parentesco com a democracia). Ora, como ficou claro em seguida, estava havendo uma grande operação da ONU, dos europeus e dos EUA para tirar Kadaffi do isolamento e normalizar as relações com Líbia. De certo modo, a visita de Lula prenunciou essa normalização, fundamental para o controle da proliferação nuclear e o equilíbrio das relações com os países árabes. Mas o Itamaraty não explicou esse ponto essencial. Ficou-se na realpolitik mais banal, expressa por Marco Aurélio Garcia numa entrevista a Eliane Catanhêde (19/11/2004): ‘A Líbia hoje é um campo de investimentos fantástico nas áreas de construção civil, e infra-estrutura, passando por uma modernização incrível. País petroleiro é país petroleiro’.


Em companhia de outros ministros e assessores presidenciais, Celso Amorim participou da reunião em que Lula tomou a decisão de expulsar Larry Rohter. Certamente deve ter ficado do lado dos moderados. Porém, mais tarde, numa audiência no Senado, levando longe demais o seu dever de solidariedade governamental, o chanceler declarou: ‘Não se trata de liberdade de expressão, trata-se de matéria caluniosa que ofende o país, que tem objetivo e efeito de atingir a liderança emergente do presidente Lula e do próprio Brasil’. Uma afirmação deste quilate é, no mínimo, pouco elaborada. O exagero de seu conteúdo só serviu para aumentar a paranóia galopante que tinha tomado conta do Planalto.


O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que não participou das reuniões iniciais com Lula, ajudou a desfazer os equivocos de um ato juridicamente falho, politicamente errado e diplomaticamente desastroso para ‘a liderança emergente do presidente Lula e do próprio Brasil’. Mas o ministro Celso Amorim não fez a parte que lhe cabia. Disse acima que considero Celso Amorim como o melhor ministro do governo. Penso também que, ao fim e ao cabo, ele é o ministro mais forte do governo. E Palocci? Não tem peso? Tem, é claro, mas acho que Celso Amorim é mais forte por três razões: primeiro, seu posto cola-se à sua carreira profissional e ao quadro excepcional de funcionários do ministério que ocupa; segundo, sua ascensão ao cargo não dependeu de sua fidelidade a Lula ou de sua filiação ao PT; terceiro, sua política ministerial está mais próxima do ideário petista do que a política posta em execução por Palocci no ministério da Fazenda.


Com isso tudo, espera-se que o chanceler assuma plenamente o papel do moderador que está fazendo cruelmente falta no governo de Luiz Inácio Lula da Silva."




Flávio Aguiar


"O governo acertou", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 15/05/04


"O governo e o Palácio do Planalto agiram certo de ponta a ponta no caso do jornalista norte-americano Larry Rohter. Estiveram certos na reação dura e acertaram em aceitar o pedido de desculpas do jornalista, que a direção do NY Times tentou inutilmente neutralizar.


O governo e o Palácio do Planalto agiram certo de ponta a ponta no caso do jornalista norte-americano Larry Rohter. Estiveram certos na reação dura e acertaram em aceitar o pedido de desculpas do jornalista, que a direção do NY Times tentou inutilmente neutralizar através de uma nota dizendo que o jornal não se retratou.


A matéria de Rohter foi injuriosa, e seu alcance era perfeitamente previsível e danoso. Seu efeito podia ter desdobramentos péssimos na política externa, minando a liderança de Lula, mas também tinha desdobramentos na frente interna. Uma das pautas de setores das oposições é demonstrar que ao presidente Lula faltam condições pessoais para ser chefe de estado. Lula é freqüentemente descrito como tendo gestos de desequilíbrio, de exageros verbais, de incompetente. A pecha de bebum, pois é disto que se trata, acolhida por um jornal de prestígio mundial, viria a calhar para justificar tal vaticínio.


A matéria de Rohter e sua publicação pelo NY Times caracterizaram uma série de equívocos do ponto de vista ético. Primeiro, as fontes eram obscuras, ou declaradamente adversários, ou ainda inimigos políticos do presidente. Segundo, a escolha da foto que ilustrou a matéria foi péssima: ela em si (Lula erguendo um copo de cerveja) ratificava e era um comentário positivo sobre o conteúdo da matéria. Terceiro, o jornal preferiu o caminho do sensacionalismo barato; num caso destes, de ataque pessoal a um cidadão (que soe ser o presidente de um país), deveria tê-lo ouvido, ou pelo menos ter notificado a embaixada para que ela ou o governo pudessem elaborar uma resposta nem que fosse para o dia seguinte.


A reação do governo brasileiro veio na medida. Diz-se que essa reação deu um destaque e uma repercussão que a matéria em si não teria. Não é verdade. De qualquer forma a matéria estaria nos releases de todos os consulados, de todas as embaixadas, de todos os governos do mundo inteiro, no dia seguinte. A resposta tinha de ser pronta, e dura, e de impacto proporcional ao efeito que a matéria certamente teria. Não poderia ser qualquer coisa frouxa como uma mera nota de protesto.


Diz-se também que a reação foi um atentado à liberdade de imprensa e comparou-se o gesto do governo aos da ditadura militar. Nada mais indevido. Não se mandou vigiar o jornalista. Não se mandou qualquer força-tarefa atrás dele para ver se ele saía de fato e imediatamente do país. E depois do seu pedido de desculpas, cancelou-se a expulsão e deu-se o caso por encerrado.


O pedido de desculpas de Rohter é cristalino e não deixa dúvidas. Também foi feito na medida; não cabia ao jornalista confessar má fé ou algo semelhante. Neste caso a sua carreira de correspondente estaria encerrada. A participação do ministro Thomaz Bastos e de escritórios de advocacia experientes dá a medida da gravidade do assunto e do acerto necessário.


Quanto à nota do jornal NY Times, isentando-se de qualquer retratação, ela é o indício seguro de que o jornal está na defensiva. Nada pior para uma empresa jornalística do que uma retratação: vai-se pelo ralo a sua credibilidade. Alguém tem que perder o emprego, num caso desses, como no do jornal inglês que publicou fotos falsificadas sobre torturas no Iraque. A nota do NY Times visa manter a credibilidade e o faz com uma certa insegurança, pois a negociação do governo foi com o jornalista, não com a empresa. Se vai conseguir mantê-la, é outro capítulo."




Mino Carta


"O governo erra o alvo", copyright Carta Capital, 19/05/04


"O jornalista Larry Rohter é um joão-ninguém. Já os arapongas de Tio Sam infiltrados no Brasil…


Vários assuntos do momento, no Brasil e no mundo, têm denominador comum: a prepotência americana. A qual está longe de ser novidade, sem exclusão das imposições do FMI e dos editos do Fed.


Larry Rohter, correspondente do New York Times, é válido representante da arrogância ianque. De porte mínimo, contudo. Deste tamanhico. Quanto ao jornalão nova-iorquino, é importante e influente, mas nem sempre pratica o melhor jornalismo. No caso, por exemplo, da tendenciosa e leviana reportagem (reportagem?) que o nosso Larry dedicou ao presidente da República do Brasil e da qual tanto se fala. Infelizmente.


O New York Times e a imprensa americana em geral já foram melhores. No respeito à verdade factual, no exercício do espírito crítico, na fiscalização do poder. Seus jornalistas, mais cuidadosos na colheita de informações, na exposição de juízos e na escolha de fontes mais qualificadas do que tucanos da vida e espiões profissionais.


Os Estados Unidos já foram melhores, embora escravagistas, no tempo dos celebrados Pais Fundadores, e bastante após. Terra de desmandos, perseguições, agressões e preconceitos que negam a dita democracia. Ainda assim, as coisas pioraram. Até a chegada de Bush júnior, não se tinha notícia de presidentes usurpadores, eleitos pela fraude.


O que se avivou nos americanos foram a certeza da primazia, a convicção do direito ao mando imperial, o ufanismo desmedido de quem se leva a sério além da conta. As pesquisas recolocaram Bush à frente na corrida presidencial no instante em que anunciou o envio de tropas frescas ao Iraque. Se as fotos da tortura estarrecem, isso também é de estarrecer.


Há toda uma salutar tradição brasileira de esperto silêncio diante da crítica do medíocre. Do adversário miúdo, do caluniador insignificante. Por mais peso que possa ter o New York Times – jornal capaz de silenciar, de resto, a respeito de vilezas de calibres diversos -, convinha ao governo, na opinião de quem escreve, ignorar oficialmente as calúnias de um pigmeu.


Quem sabe valesse soltar a fala de um ou outro parlamentar dotado de ironia, de sorte a aconselhar o New York Times a cogitar de assuntos mais prementes e relacionados com o prestígio do Tio Sam. Mas ao erro inicial, sempre na opinião do acima assinado, somou-se a decisão de explusar um certo Larry, com o efeito de complicar a complicação.


Parmesão sobre o ragu à bolonhesa, diria um italiano. Para a tucanagem, que há tempo se deleita em espalhar as pretensas preferências de Lula pelos destilados. Para o engenheiro Brizola, citado com respeitoso destaque por Larry, esquecido, ao que tudo indica, de um passado habilitado a justificar, aos olhos do Tio Sam, e dos seus instrumentos de desestabilização, o golpe de 40 anos atrás.


O governo ofereceu munição de graça a quantos esperam na curva o seu fracasso. A ação contra o correspondente precipita o espanto do mundo e as iras daqueles que, no Brasil, clamam por sua própria liberdade de agir como bem entendem, em proveito do privilégio.


O governo contribui para o seu próprio desgaste, sem desmentir a sua condição de país vassalo. Bem diferente teria de ser o alvo da sua reação. CartaCapital há anos denuncia a presença no País de espiões americanos e até relações de dependência, inclusive financeira, de importantes órgãos brasileiros prontos a aceitar a orientação e a subvenção de Washington.


Há menos de dois meses, as provas cabais dessa sujeição surgiram com a entrevista do ex-chefe do FBI no Brasil, Carlos Costa, a Bob Fernandes. Ignoradas as revelações pelos jornalões nativos, bem como pelas autoridades competentes, a começar pelo Ministério da Justiça, que agora bane um jornalista inconfiável.


Há um abismo entre as duas situações, não é difícil perceber. Larry não põe em xeque a independência do Brasil. Bem ao contrário dos homens da CIA e assemelhados, incumbidos, entre outras tarefas, de grampear o Palácio da Alvorada. E saiba o senhor presidente que seus fins de semana, por exemplo, na Granja do Torto, são objeto de detalhados informes dos arapongas a serviço do Tio Sam.


A questão transcende claramente as atividades da Polícia Federal, chefiada por Paulo Lacerda, delegado de notável dignidade e competência, não por acaso exposto com freqüência às críticas de quem prefere outro gênero de qualidades intelectuais e morais. Está em jogo, antes ainda que governo, o Estado brasileiro a demonstrar, mais uma vez, a sua vassalagem.


A tradição soletra histórias terríveis, conquanto nem sempre vivas na memória. Os horrores da tortura praticada por americanos e ingleses no Iraque arrepiam o mundo e parecem surpreendê-lo. Surpresa, por quê?


Só para citar eventos recentes, que mexem conosco, ou teriam de mexer: os torturadores brasileiros convocados pelo Terror de Estado, à sombra da ditadura militar, não passavam de denodados discípulos dos mestres da CIA. Ainda que fossem capazes de alguns toques de originalidade tropical, representados, por exemplo, pelo pau-de-arara, obra indiscutível da imaginação verde-amarela.


Tio Sam ensinou as melhores técnicas no quintal sul-americano infestado por vice-reis fardados, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile, e Dan Mitrione, superagente, fica na história como o especialista supremo.


Na época, a tortura escondia-se no porão. O que caracteriza o momento atual é a enxurrada de imagens como se houvesse adequação aos vezos do dia, segundo os quais o fato não existe se não tiver visibilidade iconográfica.


Surpresa, por quê? Que esperar do Império, disposto a desfechar uma guerra colonial no século XXI?"




Luís Nassif


"O gigante e o áulico", copyright Folha de S. Paulo, 18/05/04


"Há quem se surpreenda, ainda hoje, com a diferença entre a imagem pública e a imagem privada das pessoas -como se os maiores não fossem eles, também, humanos. Esse descompasso é tema recorrente na história mundial. No caso brasileiro, não há personagem contemporâneo mais intrigante que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.


Mesmo sem acompanhar o dia-a-dia do Itamaraty, ouso dizer que é o mais brilhante diplomata da sua geração. Não há nenhum grande feito diplomático da história recente do país que não tenha tido sua participação muitas vezes decisiva.


Foi o caso da vitória sobre as patentes de remédios, um trabalho do ex-ministro da Saúde José Serra, que contou com sua participação decisiva no campo diplomático e do convencimento da opinião pública norte-americana. Do mesmo modo, foi decisiva sua participação nas negociações no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) que resultaram na condenação dos Estados Unidos no caso do soja e do algodão, dando o apoio diplomático de que necessitava Pedro de Camargo Neto, do Ministério da Agricultura.


Tudo isso antes de se tornar chanceler. Indicado para o cargo, em pouco tempo organizou o grupo dos 22 e assumiu papel central nas grandes articulações diplomáticas internacionais, ampliando enormemente a estratégia de independência diplomática adotada no governo Fernando Henrique Cardoso.


No entanto, esse gigante da diplomacia tem características comuns aos que vivem na corte, de demonstrar uma lealdade aos chefes um pouco além do que recomendam as normas de convivência entre iguais.


O recente episódio de criar um álibi conspiratório para a questão da expulsão do correspondente do ‘New York Times’ do país foi a demonstração mais flagrante de um estilo que já incomodava seus admiradores.


À medida que a poeira vai baixando, fica-se sabendo que a reação de Luiz Inácio Lula da Silva ao episódio foi descontrolada. Virou uma espécie de ‘quem não está comigo está contra mim’. Houve os que ficaram contra e, depois, vieram a público defender a medida como posição de governo -mas fazendo questão de deixar claro sua contrariedade.


Houve os que ficaram a favor, inicialmente, até por falta de informação adequada sobre as conseqüências do ato, mas que evitaram defender publicamente sua posição, por considerar que seria jogar gasolina na fogueira, dificultando ainda mais uma saída honrosa para o governo.


A incrível tentativa de Amorim de conferir um caráter épico à atitude de Lula, vindo de uma pessoa de sua estatura intelectual, acabou mais exposta ainda pelo contraste com a personalidade do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Em nenhum momento Bastos apoiou a medida, em nenhum momento deixou de trabalhar para encontrar a saída adequada ao país e ao presidente.


Que o destino reserve a Amorim inúmeras outras oportunidades de continuar servindo ao país com o brilhantismo com que sempre se conduziu. E que essa sua característica pessoal não atrapalhe sua obra pública admirável."