‘O presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Geraldo Majella Agnelo, disse ontem que os católicos devem assistir ao filme ‘A Paixão de Cristo’, de Mel Gibson, que tem estréia prevista para hoje.
‘O filme é um retrato fiel da Bíblia. São cenas que estão no Evangelho. O sofrimento de Jesus é muito grande. Porém não há nenhum exagero nas cenas’, disse.
Dom Geraldo Majella Agnelo disse também que a obra de Mel Gibson não faz a propagação do anti-semitismo. ‘Cristo morreu por causa do pecado. E onde está o pecado? O pecado está no povo. É claro que também houve a contribuição dos judeus para a morte de Cristo’, acrescentou.
Para lembrar que não se pode responsabilizar o povo judeu como um todo pela morte de Cristo, o cardeal primaz do Brasil usou o episódio do embarque da delegação do Corinthians para Fortaleza, ocorrido na última terça-feira em São Paulo.
‘Alguns torcedores jogaram ovos nos jogadores do Corinthians, o que não quer dizer que todos os corintianos são favoráveis a essa atitude. O mesmo podemos dizer dos judeus. Alguns judeus participaram da morte de Cristo, mas não podemos generalizar’, disse.
Segundo o cardeal, a obra de Gibson, que retrata as últimas horas de Cristo, tem a intenção de ‘mostrar o sofrimento no mundo’ e não tem exagero nas cenas violentas. ‘O que existe é muito sofrimento, muita angústia. As pessoas que assistirem ao filme vão se aprofundar um pouco mais na história de Jesus.’’
Tiago Faria
‘Polêmica programada’, copyright Correio Braziliense, 19/03/04
‘Um filme sobre amor e esperança, com a missão de inspirar tolerância e perdão. Assim Mel Gibson descreve A paixão de Cristo em toda e qualquer entrevista sobre a produção. A resposta automática serve para que o cineasta contra-ataque principalmente as acusações de que teria feito filme de conteúdo anti-semita, que elege os judeus como culpados pela morte de Jesus Cristo. Enquanto conquista apoio de vários grupos católicos e evangélicos, Gibson desperta manifestações indignadas contra a obra.
‘É repugnante’, afirmou Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Paulista, que assistiu à via-sacra cinematográfica de Gibson em pré-estréia em Brasília, programada pela própria distribuidora do filme, a Fox. Ele não foi o único a reclamar. Na obra, as responsabilidades da condenação de Jesus são jogadas especificamente sobre um grupo de judeus da elite, representada pelo sumo-sacerdote Caifás, que temia as perturbações sociais da chegada de um Messias. Quando começou a escrever o roteiro, com Benedict Fitzgerald, Gibson buscou fidelidade aos Evangelhos, mas disse saber das dificuldades de escapar de uma visão pessoal do tema.
‘Quando você aborda uma história que é tão conhecida e que tem tantas concepções diferentes a seu respeito, a única coisa que você pode fazer é permanecer tão fiel quanto possível a essa história e a seu modo de expressá-la criativamente’, diz Gibson, no material de divulgação do filme. A escolha do cineasta foi alternar momentos de horror com mensagens de fé. Mas não é assim que o filme foi encarado por parte dos espectadores.
Pôncio Pilatos
Para os representantes de entidades judaicas que se ofenderam com o filme, pesa o fato de que estão na tela relatos do Evangelho que são historicamente contestados – dentre eles, a descrição do cruel regente Pôncio Pilatos como homem em dúvida, até mesmo piedoso, que deixa o destino de Jesus ao ‘povo judeu.’ No Concílio Vaticano Segundo, entre 1962 e 1965, os judeus foram eximidos de qualquer culpa que pudessem ter tido na morte de Cristo.
Em meio ao bate-boca cristão, Gibson conseguiu pelo menos um aliado influente: o Vaticano. ‘O papa viu o filme e não fez nenhum comentário’, anunciou semana passada o porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro-Valls. ‘Se o filme fosse anti-semita, os Evangelhos também seriam’, continuou. O rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, porém, afirmou que o filme representa ‘obstáculo para o diálogo inter-religioso.’ Pedradas, para Gibson, não faltam.’
Pedro Butcher
‘Polêmica faz ferver sangue de ‘Paixão’’, copyright Folha de S. Paulo, 19/03/04
‘Quando os primeiros rumores em torno de ‘A Paixão de Cristo’ começaram a pipocar, em agosto de 2002, Mel Gibson já estava na Itália, terminando de escolher as locações do filme (na região de Basilicata, ao sul do país). Um mês depois, o projeto foi oficialmente anunciado em entrevista coletiva na sala Fellini da Cinecittà, o lendário estúdio romano onde ele filmou as cenas de interior.
Na entrevista, Gibson contou que ‘Paixão’ era o projeto da sua vida. A idéia surgira dez anos antes, durante uma crise pessoal, e seu objetivo era ser o mais fiel possível ao relato bíblico das últimas horas da vida de Cristo. Por isso, o filme seria falado em latim e aramaico. ‘É claro que ninguém quer tocar em um filme falado em línguas mortas. Eles acham que estou louco’, disse Gibson, referindo-se aos executivos dos grandes estúdios. Coube, então, à Icon Productions, que pertence ao ator, bancar sozinha os US$ 25 milhões da produção, pois nenhuma grande produtora queria se comprometer. Além disso, Gibson não queria nenhuma grande estrela no elenco.
A imprensa tampouco o levou a sério. Revistas especializadas apostavam em um fracasso, prevendo que o filme faria, no máximo, US$ 30 milhões em seus primeiros dias em exibição. Fez US$ 82 milhões, e no próximo fim de semana deverá ultrapassar US$ 300 milhões, sem contar rendas internacionais.
Todos quebraram a cara ao subestimar a capacidade de Gibson, que desde o início agiu como um profundo conhecedor das entranhas do jogo hollywoodiano. Cada passo parece ter sido meticulosamente calculado, da decisão por anunciar o projeto na Itália, a uma distância segura do frenesi de Los Angeles e a poucos quilômetros de distância do Vaticano, ao forte estímulo à polêmica, além de uma seletiva aparição em programas de televisão.
Absolutamente tudo foi motivo para polêmica. Até mesmo o título, que precisou ser trocado duas vezes por questões de direitos autorais, até chegar ao definitivo ‘The Passion of the Christ’.
‘A Paixão de Cristo’ ocupou a mídia por quase um ano inteiro antes mesmo de estar pronto, por conta de rumores de se tratar de uma versão ultraviolenta e possivelmente anti-semita da morte de Cristo, estimulando a visão de que os judeus teriam sido responsáveis pela morte de Jesus.
Gibson usa sempre a mesma defesa: ‘O filme é apenas uma dramatização fiel do que a Bíblia diz’. Apoiado na própria popularidade, o astro se fez arauto da verdadeira história da morte de Cristo.
Em 2003, a polêmica foi alimentada, com o roteiro do filme e cópias piratas surgindo misteriosamente nas mãos de grupos judaicos, que logo passaram a esbravejar contra o filme, ajudando o marketing espontâneo.
A polêmica aumentou com a estréia do filme (nos EUA, ela aconteceu no dia 25 de fevereiro, Quarta-Feira de Cinzas, em mais de 2.000 salas). Os cinemas encheram, não apenas graças à romaria cristã, mas também pelo público atraído pela propalada violência.
As grandes esperanças de Gibson, agora, são de que o filme seja absolvido das pré-acusações de anti-seimitismo e, uma vez avalizado pelo status de ‘blockbuster mundial’, chegue intacto à corrida do Oscar 2005. Como ‘O Senhor dos Anéis’, é um exemplo de triunfo pessoal. O que, no fim das contas, costuma suplantar qualquer polêmica. Verdadeira ou falsa.’
Inácio Araujo
‘Jesus não salva, vende’, copyright Folha de S. Paulo, 19/03/04
‘Alguns detalhes chamam a atenção em particular na ‘Paixão de Cristo’ de Mel Gibson.
A caminho da crucificação, uma mulher lhe estende uma toalha. O Cristo enxuga o rosto suavemente, gravando no tecido a sombra de seu rosto sofrido. Depois veremos Jesus ser pregado na cruz. Os pregos cortam sua carne com tal ímpeto, que já não vemos a carne nem o sangue: o objeto em si -o prego- é que fica em destaque.
Mel Gibson desenvolve, em um nível, uma trama fetichista que coloca em relevo uma série de objetos (reais ou fictícios) que freqüentam a imaginação de todos os católicos desde a infância: o sudário, o cálice, a sandália, os pregos, a coroa de espinhos etc.
Ao mesmo tempo, convém não esquecer, toda a mitologia desse filme vem da fé católica (fé suposta, naturalmente) de seu diretor, que o teria produzido com dinheiro do próprio bolso. Não se trataria, assim, de um produto -mas de um ato de fé.
Mais tarde, a equipe de marketing do filme divulgou a história segundo a qual João Paulo 2º, após ver o filme, teria dito que ‘assim se passaram as coisas’. À fé, acrescenta-se então a asserção de verdade: a autoridade papal em pessoa garante a veracidade do filme. Não importa que depois a igreja tenha negado a história e se fechado em copas -essa é a versão que circulou e pegou.
Temos então uma operação de marketing como raras vezes se viu. Ela vende, em um nível, não propriamente um produto, mas um ato de fé. Não uma obra de arte, mas o que devemos receber como a própria verdade revelada.
No entanto, num outro nível, incômoda, lá está a trama fetichista a atazanar a glória eterna dessa operação perfeita. O sudário, o cálice etc, essas lembranças de procissão, de visitas a Aparecida, são versões primitivas desses ‘gadgets’ que a indústria cultural incorporou à operação comercial dos filmes: o carro do Batman, o bonequinho do E.T. etc.
Elas nos lembram de que esse ato de fé é uma operação comercial gigantesca, que ‘autenticidade’ é aquilo que cauciona essa operação, e que ‘Paixão de Cristo’ é nada mais que um produto hollywoodiano, de resto dos mais tradicionais.
Por conta da autenticidade, os atores usam o aramaico ou o latim. Tudo mais em matéria de autenticidade vem das convenções hollywoodianas: os carrascos romanos rindo a cada chicotada, as nuvens que se deslocam rapidamente, as quedas em câmera lenta. Santo Deus! É um filme ou uma clicheria? Em suas duas horas e pouco de duração, ‘Paixão’ não produz um instante de grandeza, ou de beleza, ou de talento.
É triste, no mais, a maneira como usa os recursos da montagem clássica para jogar o espectador contra os judeus e produzir, sim, o espetáculo mais anti-semita desde que Veit Harlan realizou ‘O Judeu Süss’, sob a supervisão de Goebbels.
A questão é que o anti-semitismo do filme, assim como o sadomasoquismo, não respondem a necessidades profundas. Eles entram, um pouco, como compensação à ausência atual de mito em torno de Jesus. Assim, ao encanto dos milagres ou mesmo da palavra de Cristo substituem-se os shows de chibata.
Toda essa dor hiperbólica é, como o uso do aramaico e do latim, sinal de autenticidade. Não o é, contudo, de verdade. Configura Jesus como um produto, não como o Salvador. Como produto e marketing, será um sucesso. Vide a bilheteria. Já a história, grande demais, escapa entre os dedos muito pequenos de Mel Gibson.’