‘O assunto de todas as rodas bacanas do Brasil é o novo filme de João Moreira Salles, Entreatos, que descortina parte dos bastidores da campanha eleitoral finalmente triunfante de Luis Inácio Lula da Silva. O filme, obrigatório, vou logo avisando, é o melhor registro da rotina de um candidato a dono do poder. Há de tudo e de todos, como não poderia deixar de ser. Mas, sobretudo há Lula nu e cru, em variadas situações e condições, apesar do sempre presente controle de assessores, já que a câmera pede passagem em diversos momentos. É natural, afinal um mínimo de privacidade é fundamental, até para nós que estamos assistindo.
O melhor de tudo são os momentos em que Lula, que fala mesmo muitos palavrões como o brasileiro comum, que assume tomar uns ‘gorós’ como todo brasileiro comum, aparece sem o retoque dos marketeiros e a euforia própria de qualquer campanha para presidente da república. A extensa agenda o candidato encara com disposição e bom humor, tudo, desde refeições somente com guloseimas frias, dores da bursite intensificadas pelos agarrões de eleitores, as repetitivas demandas da mídia por entrevistas ou fotografias e até o incomodo figurino de gravata, camisas (mesmo aquelas feitas pelo estilista famoso – Ricardo Almeida não acertam o gosto do então candidato) e ternos. A disposição de Lula parece estar vitaminada pela segurança de seu destino, a vitória. Lula não desdenha de seu adversário, mas também não o teme em nada. Sendo Lula quem é, com sua origem e trajetória, todo esse contexto acaba por construir um quadro de beleza e dimensão transcendental. Para nós, jornalistas, fica um gosto de inveja a João Moreira Salles. Ninguém foi capaz de captar este quadro, nem nesta campanha, nem em outras, nem durante os anos do regime militar, nunca. Esta constatação expõe a inquietação de que limites existem para a mídia.
Por outro lado, do ponto de vista de conteúdo, de posturas e ideologias Entreatos é riquíssimo. Lula surge falando sobre diferencias do PT, compara-se equivocadamente com Walesa, manda às favas, ou melhor, para aquilo lá que começa com f…, a discussão acadêmica de estratégia e táticas para o PT. O filme distingue com clareza a formação do sindicalista que chegou a presidência, suas lutas cotidianas, seus prazeres mundanos e populares, seus sacrifícios cristãos e caseiros, e acerta em cheio quando aponta, e reconfirma na realização de pesquisa com telespectadores durante o último debate, de que Lula, sempre mais humilde, fala direto ao coração do brasileiro. Entende-se mais claramente a palavra de Lula do que de Serra.
João Moreira Salles, que ficou conhecido e carrega o estigma do episódio de ter ‘contratado’ um traficante com uma mesada com o objetivo de regenerá-lo, oferece ao País um documento com qualidade e técnica inquestionáveis. A pureza e importância de sua obra muito acrescentam a nosso processo de amadurecimento político-social. Certamente teremos desdobramentos com mais entrevistas, mais informações e isso é muito bom. Parabéns ao João e sua equipe.
P.S.: nestes dias de homenagens póstumas a Arafat, George Bush e Tony Blair unem vozes e prometem esforços para assegurar até 2009 o estabelecimento de um Estado Palestino. É surpreendente e não é pouco. Pode ser a solução do nó górdio que impede a paz no oriente médio. Esse propósito deve ser desanimador para os ‘críticos de pindorama’, que querem Bush apenas no papel de Asmodeu. Quem viver verá!’
Florência Costa
‘A intimidade política de Lula’, copyright Isto É, 20/11/04
‘Um Lula entre quatro paredes: brincalhão, que fala palavrões e emite opiniões políticas picantes. Reservado na sua vida pessoal, Lula abriu a intimidade de sua campanha presidencial, em 2002, para o cineasta João Moreira Salles. O ato de Lula valeu a pena. Fruto de 30 dias de filmagens, feitas pelo fotógrafo Walter Carvalho, o documentário Entreatos mostra cenas de
Lula nos camarins, nas salas de gravação dos programas, nos jatinhos, em casa, no barbeiro. As fitas de vídeo digital foram trancafiadas em um cofre, no mosteiro de Frei Betto (amigo e assessor de Lula). Na pré-estréia, na terça-feira 16, em São Paulo, Lula e seu lado ator fez a platéia rir e aplaudir. João Salles – que dirigiu com brilhantismo o documentário Nelson Freire, sobre o pianista brasileiro de fama internacional – repetiu a dose. Entreatos é lançado junto com outro documentário, de Eduardo Coutinho. Filmado também em 2002, Peões conta a história pessoal dos anônimos das greves do ABC e explica o nascimento do Lula de Entreatos: ambos formam um retrato antropológico dos operários, com seus sonhos e sua cultura, pelas bocas dos próprios e do mais famoso de todos.
A seguir, a entrevista que os dois cineastas deram a ISTOÉ, com alguns dos
trechos (destacados em negrito) mais instigantes do filme, que, antes mesmo da estréia, no dia 26, já causa impacto na sensível arena política. Coutinho viu-se obrigado a tirar um depoimento de seu filme – uma personagem que fala que Lula bebia demais nos tempos do ABC. ‘Foi para protegê-la. Não por causa de Lula. Ele mesmo fala sobre bebida no filme do João’, explicou Coutinho. O candidato lembra que, ao sair da fábrica, costumava tomar ‘uns gorós’ e jogar futebol. O preconceito de classe ainda se revela firme e forte no Brasil. Afinal, como bem lembra João Salles: ninguém diz nada quando um empresário tomo uns uísques e depois vai jogar golfe. Já o peão…
ISTOÉ – Lula sempre se recusou a mostrar sua intimidade. Como conseguiu filmá-lo à vontade no bastidor da campanha?
João Moreira Salles – Preservar sua intimidade é uma das qualidades do Lula. Numa cultura política degradada, em que políticos usam sua família e sua religião, Lula não faz isso. Não é um filme sobre a intimidade do Lula, e sim sobre a sua intimidade política. Lula atua para a câmera, como qualquer personagem de documentário e fala sobre política. Já nas cenas da vida familiar percebi que o personagem não estava à vontade. E ele estava certo: o espaço privado não deve ser violado.
(Na cena em que é entrevistado por jornalistas estrangeiros, Lula os faz rir ao responder sobre o que teria aprendido em Cuba, que gostaria de aplicar no Brasil: ‘Nós também estamos querendo saber.’)
ISTOÉ – Lula já viu o filme? Gostou?
João – Não sei. Entreguei a fita há um mês para o Gilberto Carvalho (chefe de Gabinete da Presidência). Ninguém me ligou para dizer que gostou ou para pedir para tirar isso ou aquilo. Acho até que Lula não vai gostar. Fiz uma opção nesse filme: não usei o material público. Tirei uma coisa fundamental da personalidade política de Lula, que é o político que fala diante de 100 mil pessoas. Esse lado épico não tem no filme. Isso as pessoas já conheciam através de imagens da tevê. Tenho a impressão de que quando o Lula aceitou fazer o filme ele queria o registro da sua extraordinária capacidade de mobilizar multidões – o que é compreensível. Fiz um filme sobre uma campanha épica em que não há o épico.
ISTOÉ – As cenas dos bastidores – com Lula e seus assessores fazendo comentários privados – podem ter um efeito constrangedor hoje?
Eduardo Coutinho – A gente fez questão de lançar os dois filmes depois do segundo turno das eleições municipais deste ano. Acho que as pessoas que não gostam do Lula vão continuar não gostando. E as que gostam vão continuar gostando.
(No avião, Lula diz para José Alencar sobre a possibilidade de morar no Palácio da Alvorada: ‘Aquele Palácio é triste porque Fernando Henrique nunca jogou uma bola, não dança.’ Alencar emenda: ‘Nunca toma uns goles.’ Entre Marisa e Duda Mendonça, Lula diz que tem a frustração de não saber batucar com as mãos na mesa. Duda mostra que sabe e diz: ‘Em marketing político posso ser uma merda, mas em batuque e briga de galo eu sou bom.’ Lula responde: ‘Mas quem briga é o galo.’)
ISTOÉ – Qual a impressão sobre Lula no convívio diário das filmagens?
João – É o que está no filme. Nem sequer sei se o Lula que está ali é o seu Lula, é o Lula do Lula, o Lula da dona Marisa, o meu Lula. O interessante é o fato de Lula ser carne, osso, sangue, ambíguo, complexo, paradoxal, tudo ao mesmo tempo. O saldo da minha impressão foi positivo. Para começar, ele me deixou fazer o filme. Que outro político permitiria esse acesso aos bastidores a alguém que ele não conhecia antes? A alguém que não tem filiação ideológica e social semelhantes à dele – porque eu venho de um mundo que é o oposto absoluto da origem social do Lula. Ele não interferiu em nenhum momento no filme.
ISTOÉ – No filme, José Dirceu parece querer parar as filmagens. Foi o momento mais tenso?
João – Foi no último dia, quando vimos que não estaríamos diante de Lula na hora do resultado da eleição. Seria terrível. A única coisa que vale nesse tipo de documentário é o acontecimento em tempo real. Na cena do Zé Dirceu é a hora em que ele toma conhecimento do filme, durante a preparação para um debate. Ele teve uma reação natural.
(Dirceu: ‘Está gravando isso? De quem é esse pessoal? Que João Salles?’ Gilberto Carvalho: ‘É de confiança, as fitas são guardadas no cofre.’ Dirceu: ‘Vai nessa… Se você soubesse o que eu tenho de outras campanhas não falava isso.’)
ISTOÉ – Foi gravado um total de 240 horas. Há algo revelador no que não está no filme?
João – Nem todas as imagens podem ser vistas agora. Só daqui a uns 40 anos. Não revelariam nada de extraordinário, mas são imagens que poderiam ser usadas pelos adversários ou por ele próprio. Eu não quero que o bruto do filme sirva para nenhum tipo de instrumentalização.
ISTOÉ – No filme Peões, Lula aparece como líder sindicalista, diferente do Lula de Entreatos. O piadista de 2002 surpreendeu?
João – Não, sempre soube que ele era assim. Não acho que o Lulinha Paz e Amor foi uma construção. Lula estava muito à vontade. Uma qualidade dele é não guardar ressentimentos. Gosto de como ele conta, rindo, a difícil rotina de operário. Não há raiva. Ele não chegou ao poder para se vingar.
(Lula conta que numa reunião do PT um xiita diz que gostaria de vê-lo de macacão. ‘Eu disse que daria meu macacão para ele e ele o seu paletó e gravata para mim. Só fala isso quem não conhece. Vai trabalhar numa fábrica para ver se é bom… Na hora do almoço, a gente tomava três goles de pinga, comia em 15 minutos e ía jogar bola. O macacão ficava melequento. Não tenho um milímetro de saudade da fábrica. Tenho saudade dos meus amigos.’ Suas piadas perpassam o filme todo, como na cena em que Lula brinca no telefone: ‘Companheiro Bush? Tudo bem?’ Em seguida, diante do argentino Luís Favre, marido da prefeita Marta Suplicy, Lula, em portunhol, finge que telefona para o ex-presidente da Argentina Eduardo Duhalde: ‘Hola, Duhalde. Quieres Favre de vuelta? Yo mandaré.’)
ISTOÉ – Vocês viram um pouco do Lula naqueles personagens e um pouco daqueles personagens no Lula?
João – Existe no meu filme e no do Eduardo a possibilidade de produzir uma antropologia do operário brasileiro. Lula faz no filme uma discussão preciosa do que são os sonhos e a cultura dos operários. Isso é extraordinário: querer usar terno e gravata é uma aspiração do operário, sim. É o direito de ascender. Há pessoas que vêem a sequência do Lula no filme falando no terno e na gravata e descrevem aquilo como o Lula se aburguesando. É desalentador. É não entender nada. É uma pena. Coutinho – Isso mesmo. Mas não quer dizer que pelo fato de o presidente ter sido peão não possa ser criticado. Antes de ir para o ABC, eu julgava que encontraria pessoas dizendo, com ressentimento: ‘Agora ele toma uísque, fica em ar refrigerado.’ Não encontrei. Um cara chamado Bitu diz: ‘Lula deve andar bem-vestido, faz parte.’
(Com seu barbeiro, Lula mostra sua vaidade: ‘Se minha mãe me visse, falava: `Eta baianinho jeitoso.’ Quando a figurinista Nazareth, ao lado de Marisa, elogia os nós que Lula dá em suas gravatas, ele comenta: ‘O nó do Serra estava horrível’ (no debate de tevê). E revela: ‘Sempre gostei de andar arrumado. É que peão não pode comprar muitas roupas, né? Passei 30 anos na fábrica e não me acostumei com o macacão. Mas três dias de gravata…’ Sobre a emoção ao comprar o TL azul-turquesa, quando era metalúrgico, Lula conta, rindo: ‘Entrei no carro, ele pegou na hora. Banco reclinado. Me senti um rei. Depois eu só progredi na vida.’)
ISTOÉ – O que vocês acham do governo Lula?
Coutinho – Votei no Lula e votaria de novo. Não tinha expectativas porque sou pessimista e acho o Brasil difícil. Eu esperava mais atos simbólicos. Mas é difícil mudar, governar.
João – O saldo sempre será positivo no governo Lula pelo fato de alguém como ele ter chegado à Presidência. Eu não tinha sonhos de ruptura. Me decepciona a idéia de que só há uma maneira de fazer as coisas, na economia. Teve derrotas simbólicas, como a do Fome Zero. Mas há virtudes também. O jogo está no meio. A partida vai terminar sem glória, nem apocalipse.
(Sobre a possibilidade de vitória, Lula comenta: ‘Vai ser muita responsabilidade. A partir de segunda-feira vão me cobrar tudo o que eu tenho falado… O meu medo é que a máquina conquiste a gente, ficar preso a uma agenda institucional… Os pais não conseguem cumprir todas as suas promessas a seus filhos e nem por isso deixam de ser bons pais’).’
Hugo Sukman
‘Carinhas que olhavam Lula saem da sombra’, copyright O Globo, 21/11/04
‘Dizem as cartilhas sociológicas que o trabalho na linha de montagem aliena o trabalhador, impessoaliza o trabalho. João Chapéu — um dos 21 personagens de ‘Peões’, o novo documentário de Eduardo Coutinho (de ‘Edifício Master’), sobre metalúrgicos do ABC que viveram as históricas greves de 1979 e 1980, quando Luiz Inácio Lula da Silva despontou como líder nacional — lembra emocionado de quando seu filho pequeno via um caminhão da Mercedes e exclamava: ‘Olha, pai, ali tem uma peça que você fez’.
A operária Elza guardou um exemplar da revista ‘Visão’ de 1979, na qual aparece numa manifestação, para mostrar aos filhos. Não os teve.
— Então mostro ao meu sobrinho — diz, orgulhosa de se ver parte da História e de cumprir o verso que, para ela, é o mais bonito do Hino Nacional, ‘Verás que um filho teu não foge à luta’.
Levando os objetivos de seu tipo de documentário às últimas conseqüências, ou seja, buscando exclusivamente histórias íntimas como a de João Chapéu e Elza, Coutinho acaba por encontrar trajetórias épicas.
— Sempre que vejo velhos filmes sobre grandes concentrações populares, de comícios como os de Getúlio, de Fidel, dos nazistas de Leni Riefenstahl fico interessado nas carinhas. Quem é aquele cara no meio da massa que sumiu? — diz Coutinho. — A pretexto das greves de 79 e 80 fui procurar pessoas que tivessem uma história de vida antes, durante e depois da greve.
‘Peões’ estréia simultaneamente a ‘Entreatos’, de João Salles
‘Peões’ estréia sexta-feira simultaneamente a ‘Entreatos’, o documentário de João Moreira Salles sobre a última campanha de Lula à Presidência. São filmes irmãos gêmeos, feitos em 2002 durante a campanha de Lula e devido à iminência histórica de um ex-operário chegar à presidência.
— Havia a possibilidade de fazer os filmes, então dei a idéia para o João: ele fazia o Lula, e eu fazia um filme sobre as carinhas que vi nos filmes que documentaram as greves — lembra Coutinho. — Levamos, na única vez que o vi pessoalmente, as duas idéias para o Lula, que falou, em primeiro lugar: ‘Minha campanha é histórica, perca ou ganhe’. No que estava certo. E uma segunda coisa: ‘Eu só existo porque existiram as greves do ABC’. Tínhamos dois filmes complementares.
Mas enquanto ‘Entreatos’ é, sim, um filme sobre Lula, os bastidores de sua campanha e a maneira com que o presidente representa a sua figura pública, ‘Peões’ é sobre os sindicalistas que se mantiveram anônimos, palavra usada por Coutinho no próprio filme, mas que agora na entrevista ele faz questão não de corrigir propriamente, mas de refinar um conceito tão fundamental em seus documentários.
— Anônimo ninguém é na sua comunidade. Então, embora eu a tenha usado no filme, é uma palavra ambígua. A expressão que uma vez um crítico francês usou para este tipo de personagem que uso é ‘homens ordinários’. A palavra ‘ordinário’ em francês não tem a conotação pejorativa que tem aqui no Brasil, de homem reles. Vamos então simplificar mais: é sobre homens comuns.
A busca desse homem comum, em ‘Peões’, deu-se a partir de três filmes que documentaram as greves: ‘ABC da greve’, de Leon Hirszman; ‘Linha de montagem’, de Renato Tapajós; e ‘Greve’, de João Batista de Andrade.
— Fizemos uma edição dos três filmes pegando apenas as cenas de multidão, onde se podia reconhecer as pessoas — diz Coutinho que, como em todos os seus documentários, expõe o processo de pesquisa para o espectador durante o filme.
Nesse processo, vê-se Coutinho mostrando as imagens ligadas ao movimento sindical de São Bernardo, para gente que ia reconhecendo ‘as carinhas’ e dando as direções de pessoas que participaram das greves de 79 e 80. Mais de 50 pessoas foram entrevistadas para que se chegasse às 21 que estão no filme.
— A conversa que não fosse afetiva saía do filme — diz Coutinho, à guisa de explicar os seus critérios na edição. — O eixo do filme pode ser político, mas o essencial era que passasse para o público e para mim o aquém e o além do político. Tem a mulher que fala do conflito entre fazer política e cuidar dos filhos. A vida é assim, afinal.
O tal homem comum, segundo Coutinho afirma escolado em experiências como ‘Santo forte’, ‘Babilônia 2000’ e ‘Edifício Master’ (no qual só ouvia histórias de ‘anônimos’), é aquele que elabora menos o discurso.
— O que eu não gosto das figuras públicas é que essas pessoas têm muito a perder. As pessoas que têm muito a perder têm que zelar pelo seu discurso. As pessoas comuns, não. Isso é essencial para a minha forma de fazer documentário. Se eu tivesse que fazer um filme como o do João, ia ter problemas com o ritual: aqui não pode fumar, aqui não pode entrar. Eu não tenho mais saúde para isso. O que é o negócio do João: paciência, perseverança, diplomacia e ousadia. Não tem que conversar com ninguém, como eu faço. Numa conversa entre Lula e Duda Mendonça, por exemplo, não tem que perguntar nada: são eles que estão falando e devem ser apenas captados.
Filme tem fundo político como ‘Cabra marcado para morrer’
É a segunda vez que as histórias humanas captadas por Coutinho têm um fundo político. A primeira foi em ‘Cabra marcado para morrer’, que começou a rodar em 1964, sobre camponeses que lutavam pela reforma agrária na Paraíba, cujas filmagens foram interrompidas devido ao Golpe Militar, e retomadas só em 1984. Coutinho foi em busca do que restou daquela gente, e encontrou uma sobrevivente, a camponesa Elisabeth.
— Tinha uma intenção política de resgate, claro, mas tudo se molda pelo singular, pelo coração e pela cabeça — diz Coutinho. — Em ‘Cabra’, eu queria me resgatar resgatando a Elisabeth. Eu era quase um fantasma, não fazia mais cinema, que era a minha vida. Se eu não fizesse aquele filme, estava morto. Como a coisa está engrenada, o processo político não podia estar fora. Mas ele é humanizado por aquela viúva, pelos filhos, na família, e aí acontece o que faz os meus filmes até hoje. Por isso o filme teve público: ninguém ligava na verdade para política, mas na grande mãe, na família estilhaçada, que é a família popular.
‘Greves de 1979 e 80 foram um troço extraordinário’
Mas o fundo político de ‘Peões’ é encantador, e mesmo ele concorda.
— O movimento social mais importante do século XX são as greves de 79 e 80, em si e pelas conseqüências. A greve histórica de 17, com o anarquismo, foi pouco, a Revolução de 30 foi brincadeira, afinal este é o país da conciliação, os caras-pintadas são de chorar de rir, a anistia é mais um movimento da sociedade. As greves de 79 e 80 foram um troço extraordinário na vida brasileira e, ao contrário de outro grande momento de ruptura como a Guerra do Contestado, os protagonistas estão vivos. No Brasil, a gente costuma deixar morrer todo mundo que tem histórias para contar. Os de ‘Peões’ estão vivos, então vamos ouvir suas histórias.
Histórias como a de Zélia, servente do sindicato que se orgulhava de ter começado a trabalhar lá em 1976 junto com Lula, ela como faxineira, ele como presidente. E que conta a história de um dia em que, com o sindicato cercado pela polícia, os militantes passam para ela um filme que ela tem que preservar. Ela esconde o filme na roupa, passa pelo cerco e, por isso, hoje existe ‘Linha de montagem’, um dos filmes que inspiraram Coutinho.
— Se eu falhasse, lá se ia a única história que a gente tinha — diz Zélia, tão consciente do seu pequeno, mas decisivo, papel na História.’