‘No começo, nos tempos áureos de Duda Mendonça e do ‘Lulinha Paz e Amor’, a mistificação era coisa de criancinha. A técnica publicitária tinha aquele tom carinhoso, infantilizador, suavizante, dos anúncios de sabão em pó, de xampu de camomila, de creme para as mãos à base de óleo de amêndoas.
Implantado o governo, percebeu-se que para ficar repetindo provérbios e obviedades não era preciso um grande cérebro publicitário: o do próprio Lula dava conta do recado, e passamos a viver a fase dos discursos em que qualquer gafe presidencial, no fim das contas, não tinha nenhuma importância, porque o resto do que Lula falava também não tinha importância nenhuma.
Nestes últimos tempos, a comunicação petista veio entrando em nova fase. Não mais a patranha publicitária, nem os truísmos de palanque, mas sim algo próximo da famosa ‘novilíngua’ de George Orwell, no seu romance ‘1984’. O Ministério da Paz cuida da guerra, o Ministério da Verdade divulga mentiras, o do Amor é a Polícia Política…
Não, o governo Lula não se parece com o regime totalitário descrito por Orwell. Mas é como se suas lideranças, em meio à crise, voltassem a táticas bem conhecidas dos tempos de militância -trotskista ou stalinista, não importa: o princípio básico é o de afirmar, com determinação férrea, num voluntarismo impermeável, sistemático e eufórico, o contrário absoluto do que acontece na realidade.
É assim que se fez circular a idéia de uma ‘conspiração das elites’ contra o atual governo: enquanto isso, Lula ouvia sugestões de Delfim Netto para novos cortes nas despesas públicas, conversava com Abílio Diniz em busca de mais sustentação política junto à ‘sociedade civil’ e continua garantindo aos bancos e aos megainvestidores, graças às taxas de juro em vigor, o maior mensalão do planeta.
É assim que, depois de sair da Casa Civil como um galo depenado, o deputado José Dirceu era apresentado como um vencedor, um campeão, o homem de mais prestígio em todo o governo. Se era, por que saiu? Mas podem ter certeza, companheiros: o ‘Zé’ na Câmara agora vai abafar.
É assim que o presidente Lula, ainda mergulhado nas ‘más companhias’ do PP, do PTB, do PMDB e do PL -partidos que não dá para chamar de esquerda-, adotou na terça-feira, num evento sindical em Luziânia um ‘look’ operário, de jaqueta sem gravata, como se, perseguido pela imprensa, reencontrasse num canto qualquer da biografia a velha aparência ‘ética’, ‘messiânica’ e ‘radical’ de tempos idos. O descolamento da realidade ia tomando o rumo da paranóia.
Foi então que o toque mágico de Duda Mendonça se fez novamente sentir. No discurso transmitido pela TV nesta quinta-feira, as enormidades de antes deram lugar ao suavíssimo estilo publicitário de omitir a verdade sem perder o carinho e a delicadeza jamais. Lula afirma que o Brasil irá derrotar a corrupção, graças aos esforços conjuntos do governo e da sociedade, da imprensa, da polícia federal e das CPIs. Mas não foi o seu governo que lutou como pôde contra a instalação de qualquer CPI?
Águas passadas, parece sugerir o presidente. O governo investe agora numa política de mãos estendidas para a sociedade.
Acredito que sejam limpas. Mas não impressiona bem o fato de que tenham mergulhado tão fundo no jogo da fisiologia parlamentar. Antes de serem estendidas à sociedade, as mãos do presidente serviram para afagar alguns dos setores mais excrementícios da política brasileira.
Costuma-se reclamar dos marqueteiros porque fazem propaganda política como se fosse anúncio de sabonete ou detergente. Na situação atual, isso talvez seja até um progresso.’
Zuenir Ventura
‘O joio do trigo’, copyright O Globo, 25/06/05
‘No seu pronunciamento de anteontem, em que citou a palavra ‘corrupção’ a cada um dos dez minutos em que falou, mas sem se referir às denúncias de que ela existiria dentro do próprio governo, o presidente Lula manifestou confiança em que a Polícia Federal e a CPI saberão ‘separar o joio do trigo, o bem do mal, a verdade da mentira’ e chegar à punição de qualquer corrupto, ‘venha de onde vier, seja adversário ou aliado’. Disse também ser falsa a impressão de que nesse terreno as coisas pioraram durante o seu governo, quando, segundo ele, o combate é que aumentou, levando mais de mil acusados à prisão e desbaratando redes bilionárias.
Isso é verdade, tanto quanto o fato de que o presidente resistiu o quanto pôde a tomar providências saneadoras quando surgiram evidências de que o mal estava dentro de casa. Ainda bem que não repetiu na TV o que dissera antes com arrogância: que ninguém, além dele, tinha mais ‘autoridade moral e ética para fazer o que precisa ser feito neste país’.
Só para citar um exemplo, há um ano, quando o assessor parlamentar do Planalto, o influente Waldomiro Diniz, apareceu na televisão cobrando propina de um empresário de bingo, Lula se recusou a fazer o que precisava ser feito: afastar o superior imediato do acusado, José Dirceu. Teve que fazê-lo depois, praticamente por imposição de Roberto Jefferson.
Na mesma tentativa de tapar o sol com a peneira, Lula usou de todos os recursos para que não fosse instalada a CPI dos Correios, na qual diz confiar agora. Tomara que ela consiga realmente separar o joio do trigo, embora isso não vá ser fácil, diante da mistura que se formou. Como excesso de informação é ruído, ou seja, confusão, pode-se calcular o trabalho que terão os membros da comissão para apurar, processar e digerir tantos dados, alegações e desmentidos fornecidos por algumas dezenas de envolvidos.
Considerando que as versões são em geral conflitantes, contraditórias e cheias de ardis, quando não simples trocas de acusações e xingamentos, na maioria das vezes sem provas ou testemunhas, há o risco de só restar a palavra de uns contra a de outros, e a acareação, que é um instrumento muito relativo de aferição da verdade: ganha quem tiver melhor performance e mais cara-de-pau.
A CPI não pode chegar ao final sem conseguir expurgar o joio, mesmo sendo demais, e preservar o trigo, ainda que pouco, para que a opinião pública não saia mais uma vez frustrada, achando que nessa história toda só tem culpados e que, como sempre, eles vão se safar.’
Folha de S. Paulo
‘Lula na TV’, copyright Folha de S. Paulo, 25/06/05
‘Em pronunciamento em cadeia de rádio e TV, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva procurou sublinhar, anteontem, os esforços de sua administração no combate à corrupção e amenizar o tom beligerante que alguns representantes do PT vinham imprimindo a seus discursos na tentativa de fixar a fantasiosa versão de que estaria em curso um movimento das ‘elites’ e da ‘mídia’ para desestabilizar o governo.
O presidente foi claro no que tange ao papel da imprensa: ‘Feliz do país que tem uma imprensa livre e democrática que tudo pode acompanhar, fiscalizar e investigar.’ A assertiva é louvável não apenas por reafirmar os compromissos do governo com a plena vigência da democracia e das liberdades mas também por adicionar uma necessária dose de serenidade ao clima de confronto que alguns vinham fomentando.
Nesse sentido, foi sintomático o apelo para que o processo transcorra numa atmosfera de ‘colaboração e mão estendida’, a despeito das divergências políticas e de opinião.
Também elogiável foi a reiteração da necessidade de que as denúncias sejam investigadas a fundo, pois só assim a real dimensão dos fatos relatados poderá ser estabelecida, separando-se, como disse o presidente, o ‘joio do trigo, o bem do mal, a verdade da mentira’.
No mais, Lula lembrou o que já se sabia -que a corrupção não é um fato novo, mas um ‘pesadelo’ que atormenta o país de longa data. E procurou associar o noticiário sobre desvios e irregularidades ao fato de seu governo estar empenhado em desvendar quadrilhas e esquemas fraudulentos. Novamente as operações da Polícia Federal foram citadas como prova da disposição do Planalto de erradicar a corrupção.
Em mais uma de suas metáforas domésticas, Lula comparou o combate aos corruptos a ‘uma casa onde há muito tempo não se faz uma limpeza de verdade’ e comprometeu-se a não ‘jogar a sujeira para debaixo do tapete’. Se não chegou a alterar o rumo dos acontecimentos, o discurso mostrou um presidente cônscio da gravidade da situação e disposto a evitar que a crise degenere em radicalizações nefastas para o amadurecimento democrático do país.’