‘É típico do stalinismo responder uma interpelação com várias acusações. O diretor da Biblioteca Mário de Andrade (BMA) lembra o promotor Vishinski, dos célebres Processos de Moscou: acusa sem provas e deslegitima qualquer opinião (‘Verdades a respeito da Mário de Andrade’, pág. A3, 4/6). Não sou seu opositor, mas simplesmente um usuário da Mário de Andrade. A violência das respostas dos senhores da BMA é que causa estranheza. Ainda bem que vivemos numa democracia, caso contrário…
Creio que a desinformação do comissário, digo, do diretor da BMA sobre o cotidiano da biblioteca se deve à tripla função que exerce: na editora da Unesp, como professor no campus de Araraquara e na direção da biblioteca. Isso explica o fato de nunca ter me visto na Mário, assim como eu nunca o vi. Recordo que, nos meus livros, sempre fiz questão de agradecer o apoio dos funcionários da biblioteca.
Mas o que interessa não é esse desencontro. Estou denunciando a destruição de uma biblioteca, a maior da cidade, que desde 1993 está abandonada pelo poder público. Isso não tem nenhuma relação com o calendário eleitoral, como acusou o ex-secretário de Cultura Marco Aurélio Garcia e repetiu de forma obediente o diretor da BMA. Eleitoral é responder uma crítica à biblioteca citando os CEUs. O que têm a ver os CEUs com a Mário de Andrade?
Os números apresentados pelo diretor são fictícios. Triplicou o número de consulentes? Basta qualquer cidadão entrar na biblioteca e ver que ela está mais vazia do que o estádio do Canindé em jogos da Lusa. E os setores fechados? E o quase desaparecimento dos bibliotecários? Centro de referência? Como, se o acervo está totalmente desatualizado? Lembra Pedro Nava, em ‘O Galo das Trevas’, e isso se aplica à BMA, ‘que -neste país de analfabetos formados e analfabetos mesmo-, em vez de ter um alto-falante na porta (da biblioteca) gritando -entrem para ler!-, possui pessoal impedindo, o mais possível, acesso ao seu acervo’.
Se um consulente procurar no terminal os livros que constam do acervo, nada encontrará, pois o catálogo não foi informatizado. Se for usar o xerox, é comum encontrar o setor fechado, pois falta papel, toner ou a máquina pode estar quebrada. Se precisar do setor de microfilmes, encontrará a mesma situação de abandono. Caso necessite de um periódico, é rotineiro encontrar o material semidestruído, sem nenhuma conservação. Isso quando o consulente recebe o material, pois o setor não tem funcionários suficientes para sequer transportar o material até a sala de consulta. Caso resolva buscar um livro publicado em 1995, por exemplo, também não encontrará. É compreensível que o diretor da Mário de Andrade ou o ex-secretário da Cultura não tenham passado por isso: afinal, não são pesquisadores.
O setor de livros raros foi esquecido. Hoje, pesquisadores brasileiros ou estrangeiros não têm mais acesso ao rico acervo. Ele está fechado, ou, como prefere a direção, o acesso foi restringido. Pode ser que, depois destas denúncias, volte a abrir -o que seria uma excelente notícia. Mas passou despercebido que os ladrões que roubaram o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, também assaltaram a Mário de Andrade. Quantos livros roubaram? Quais? A administração foi omissa? Foi aberto algum inquérito? Em caso positivo, qual foi a conclusão? Nada sabemos.
Em meio à enorme carência de recursos, é inexplicável financiar o Colégio de São Paulo. É essa a atividade-fim da BMA? Evidente que não. Mas acaba servindo para ampliar as bases políticas do diretor: sabemos como a intelectualidade nativa adora uma benesse, por menor que seja. Não causará estranheza que um desses beneficiados apóie entusiasticamente o diretor, louvando a sua administração e até o seu tino acadêmico. Mas isso não mudará em nada a situação de penúria da biblioteca.
Em face de tudo isso, cabe a apresentação de propostas. A primeira é a contratação de funcionários. A segunda é a ampliação das instalações. A terceira é a atualização do acervo (por que não propor à Câmara Municipal um projeto de lei prevendo o depósito legal na BMA dos livros editados em São Paulo? Isso certamente não resolve o problema, mas dá início ao processo de atualização bibliográfica). A quarta é a preservação urgente do acervo. A quinta é a divulgação das fontes lá existentes. A sexta é a criação de um setor de doações -quantas famílias não tem um enorme acervo que poderiam doar para a Mário? Bastava selecionar as obras mais significativas, enquanto outras seriam encaminhadas às bibliotecas distritais.
Parte dessas propostas envolve pequeno investimento, mas necessita de iniciativa, de uma política cultural que não temos. Porém a direção insiste nas suas promessas: ‘No ano que vem…’. Como no ano que vem? O término da reforma, que nem sequer começou, não era em 2003? O lamentável de todo esse episódio é que os donos da Mário, em vez de ficarem satisfeitos com a discussão sobre os destinos da biblioteca através da Folha -o que não é pouco-, responderam atacando e injuriando. Perderam uma excelente oportunidade para democratizar o debate sobre uma biblioteca tão importante no passado recente da nossa cidade. Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de ‘Jango, um Perfil (1945-1964)’ (editora Globo).’
Painel do Leitor, Folha de S. Paulo
‘Mário de Andrade’, copyright Folha de S. Paulo, 13/06/04
‘‘O texto ‘O futuro de uma biblioteca’, que Marco Antonio Villa publicou em ‘Tendências/Debates’ em 9/6, sobre a Biblioteca Mário de Andrade, revela ótica tendenciosa, em franca contradição inclusive com o diagnóstico exibido na reportagem de João Batista Natali publicada dois dias antes no caderno Ilustrada (‘Reforma deve resgatar Mário de Andrade’, pág. E4, 7/6). O ataque pessoal a seu diretor, o professor José Castilho Marques Neto, cujos esforços pela reconstrução da BMA são notórios, merece repúdio de todas as pessoas efetivamente preocupadas com a cultura, a pesquisa e o universo do livro no Brasil.’ Antonio Candido (USP), Ana Maria Martinez Corrêa (Unesp), Carlos Augusto Calil (USP), Haquira Osakabe (Unicamp), José Mindlin (bibliófilo), Marilena Chaui (USP), Maria Rita Kehl (psicanalista), Michael Hall (Unicamp) e Walnice Nogueira Galvão (USP) (São Paulo, SP)
‘Queremos parabenizar a Folha pela publicação de artigos que retratam com clareza o cotidiano do bibliotecário municipal. O Manifesto Unesco para as Bibliotecas Públicas (1994) diz: ‘Participação construtiva e desenvolvimento da democracia dependem tanto da educação adequada como do livre e irrestrito acesso ao conhecimento, pensamento, cultura e informação’. A Associação dos Bibliotecários Municipais de São Paulo endossa essa reflexão e acredita que a valorização e otimização do salário e do quadro de bibliotecários maximiza a qualidade do atendimento dado à comunidade em que estão inseridos.’ Olga Maria Storelli, presidente e Flávia da Silveira Lobo, vice-presidente da Associação dos Bibliotecários Municipais de São Paulo (São Paulo, SP)’