‘Discutir a história da ditadura militar é um serviço para a consolidação dos valores democráticos, tão escassos no Brasil. Mais ainda quando uma novela é exibida no horário nobre e pela Rede Globo.
‘Senhora do Destino’, nos primeiros capítulos, tem esse mérito. Em um país sem memória, recordar a luta dos estudantes e dos jornalistas pela liberdade e contra a censura não é pouca coisa.
Evidentemente que ficção não é história. A descrição dos acontecimentos de 1968, no Rio, foi realizada de forma livre. A passeata apresentada no primeiro capítulo, a dos Cem Mil, foi em 26 de junho, já a visita da rainha Elizabeth 2ª ocorreu quatro meses depois, e o Ato Institucional nº 5 é de 13 de dezembro. Ao telespectador, parece que todos esses fatos ocorreram na mesma semana, ou até no mesmo mês. Isso é compreensível, pois a novela tem uma estrutura narrativa própria e não pretende ser, pelo que foi apresentado, uma minissérie histórica.
Porém, ao falar da repressão, induz a alguns equívocos. Um deles quando apresenta policiais militares conduzindo o jornalista preso para a Ilha das Flores. Quem levava os prisioneiros para lá eram militares da Marinha. Depois do AI-5 tinha mais presos sendo torturados no Centro de Informações da Marinha (Cenimar) do que em alguma delegacia carioca.
Outra passagem certamente vai gerar controvérsias: a do estupro da estudante. Se também é verdade que nas passeatas de 68 não houve nenhum caso desse tipo de violência, dezenas de mulheres sofreram abuso sexual nas prisões da ditadura. E muitas estudantes foram assassinadas nas ruas.
Outro ponto a ser destacado é a exposição da saga da migração. O deslocamento populacional do Nordeste para o Sudeste, desde 1930, superou em muito a entrada de imigrantes na região, ocorrida fundamentalmente nos 50 anos anteriores. Mesmo assim, as novelas sistematicamente tematizam a imigração espanhola, portuguesa e especialmente italiana.
Quantas vezes assistimos à luta entre italianos capitalistas e italianos anarquistas? Já a saga dos nordestinos foi ignorada, como se não tivesse importância histórica ou na formação da sociedade do Sudeste. São Paulo foi sempre vista como uma cidade italiana, isso quando numericamente a presença dos nordestinos foi sensivelmente superior. E mais estranho quando temos um presidente da República que também foi um pau-de-arara.
Como o ensino de história no primeiro e segundo graus é péssimo, ‘Senhora do Destino’ pode acabar tendo uma enorme importância pedagógica e política. Muitos alunos vão perguntar aos seus professores sobre a novela. E aí caberá aos mestres utilizar o material apresentado para suscitar discussões na sala de aula sobre democracia, ditadura, censura, tortura e liberdade de manifestação, entre tantos outros temas. O mesmo já ocorreu quando, em 1992, se exibiu ‘Anos Rebeldes’.
Se a novela tem méritos -vale acrescentar as belas cenas gravadas no sertão, lembrando em alguns momentos os clássicos do cinema novo-, todavia a Globo poderia ter mais cuidado na produção. O pau-de-arara parecia mais um caminhão levando um grupo rumo a um piquenique sertanejo, e a cachorra Baleia, ao ser enterrada, respirava como se estivesse correndo pela caatinga.
Contudo o momento mais constrangedor ficou a cargo de Marília Gabriela. A apresentadora faz o papel de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, valente proprietária do jornal liberal ‘Correio da Manhã’. Dona Niomar pode ter cometido alguns pecados na sua vida, mas, seguramente, não merecia esse castigo tão severo. Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de ‘Jango, um Perfil (1945-1964)’ (editora Globo)’
Cláudia Croitor
‘Marília Gabriela treme em sua estréia’, copyright Folha de S. Paulo, 2/07/04
‘Marília Gabriela, 55, trabalha na TV há 35 anos. Mais do que acostumada às câmeras, no entanto, a jornalista tremeu como uma novata ao dar início ao seu mais recente trabalho: interpretar Josefa, a dona de um jornal na primeira fase de ‘Senhora do Destino’, a novela das oito da Globo. Foi seu primeiro papel numa novela.
‘É como ser estreante em qualquer situação, dá uma insegurança, uma carência, toda hora você procura a aprovação de alguém’, disse a entrevistadora em entrevista à Folha, por telefone.
No entanto, Gabi não é propriamente novata. Estreou como atriz em 2001, no teatro, fazendo ‘Esperando Beckett’, sob a direção de Gerald Thomas. Mas diz que, na TV, a maior dificuldade foi lidar consigo mesma. ‘Eu olhava, olhava e estava me procurando… De repente, não sabia bem por que, eu estava me incomodando com a minha imagem. Até que me dei conta de que eu estava me procurando na Josefa e não me encontrava. Fiquei tranqüila e pensei que, se eu não estava me encontrando, é porque fiz um bom trabalho de composição.’
Aguinaldo Silva, autor de ‘Senhora do Destino’, escreveu o papel de Josefa já pensando em Gabi. Antes mesmo de ser convidada, a jornalista leu sobre o papel nos jornais. ‘Liguei para ele na hora. Quando me descreveu a mulher, fiquei entusiasmada. Eu topei, a princípio, apesar de estar envolvida com meu programa.’
O contrato de Gabi com a Globo, de início, foi apenas para a gravação dos primeiros capítulos. Mas, para voltar à emissora onde começou sua carreira de jornalista, no final dos anos 60, Gabi rescindiu seu contrato com o SBT, onde apresentou até abril o programa ‘De Frente com Gabi’.
‘Houve um recesso no começo de ano por parte de anunciantes na TV, e eu fui um pouco vítima disso. Pelo meu contrato com o SBT, eu estava produzindo meu próprio programa. No fim as expectativas não foram cumpridas, e eu estava gastando no programa um dinheiro que não tinha.’
Apesar de enfatizar que, mesmo atriz, não pretende deixar de lado a carreira de jornalista e apresentadora, Gabi desmente que estaria voltando ao jornalismo da Globo com um quadro de entrevistas no ‘Jornal Hoje’.
‘O meu contrato foi para a novela, só. O resto é pura especulação. Estou indo para Nova York, devo voltar só no final de julho e tenho algumas propostas para fazer teatro. Por enquanto, na TV, meu programa no GNT basta.’’
Cristina Padiglione
‘‘Senhora do Destino’ é novela honesta’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/06/04
‘De lencinho na cabeça, vestido surrado, sandálias pobrinhas, criança no colo e mais quatro guris à sua volta, Carolina Dieckmann está mais linda que nunca. Na tela da Globo é assim: sem-terra tem cara de Patrícia Pillar e retirante sofrida causa mais deslumbramento que modelo de São Paulo Fashion Week. O caminhoneiro que surge no caminho da pobre coitada para lhe dar uma carona é o ex-modelo Rodrigo Hilbert, a quem ninguém recusaria fazer companhia. Ninguém, menos Maria do Carmo, a heroína vivida por Dieckman na novela Senhora do Destino, que estreou anteontem na Globo.
Entrecortando imagens cinzas do cenário carioca no contexto do AI-5 com a luz amarelíssima da seca nordestina, o primeiro capítulo de Senhora do Destino deixou claro até aos mais desavisados que a novela das 9 já não era a mesma da semana passada.
A direção é honestinha, bem-feita e sem pretensões cinematográficas, o que seria uma tentação para qualquer diretor, diante dos temas aí apresentados pelo autor, Aguinaldo Silva. A cachorra Baleia, referência óbvia a Vidas Secas, é mais um tributo a Graciliano Ramos do propriamente uma tentativa de parecer Cinema Novo. A edição, repleta de cortes, e por isso mesmo mais ágil, não deixou dúvidas: ali está novela de fato, não minissérie ou filme.
E é novelão mesmo, na essência do significado de arrebatar massas. As chamadas da história já prenunciam o seqüestro da bebê de Maria do Carmo – que vai virar Suzana Vieira na segunda etapa. Por mais que o autor negue referências com o caso de Pedrinho, seqüestrado por Vilma em Goiás, é impossível não associar a ele o episódio da ficção. É argumento com comoção suficiente para conduzir os 200 capítulos que estão por vir.
O resultado aferido pelo Ibope para a estréia não nos deixa mentir. Com 51 pontos de média segundo a prévia na Grande São Paulo, Senhora do Destino obteve a melhor audiência entre as últimas seis estréias no horário. Rendeu1 ponto a mais do que a média consolidada do primeiro capítulo de Celebridade.
A direção de arte mostra sua cara com competência nas cenas que reproduzem os conflitos entre manifestantes e policiais nas ruas do Rio.
E Wolf Maya, que adora traçar perseguições com efeitos pirotécnicos e explosões de carros e lanchas em todo primeiro capítulo sob sua direção, usou a marca, dessa vez, para fins mais úteis ao enredo – até um estupro foi flagrado pelas câmeras durante a seqüência.
Foi por meio de Marília Gabriela, absolutamente convincente em cena, que o autor conduziu o enredo político de 68 na cabeça do público, sem deixar perdidos aqueles que nada sabiam sobre aqueles dias. E foi na voz de Luiz Carlos Vasconcelos (Sebastião), irrepreensível como de costume, que Aguinaldo Silva deixa claro sua proposta: indicar que havia, naqueles dias conturbados, gente completamente à parte de tudo aquilo, simplesmente tentando viver sua vidinha. Um diálogo entre ele e Dirceu (Gabriel Braga Nunes) cumpre esse propósito: ‘O tempo vai esquentar’, diz o jornalista. ‘É, o verão vem aí’, responde o motorista de dona Josefa.
Ao indicar quem fará o papel de quem na segunda etapa da novela, Wolf Maya preferiu não deixar margens para confusões na cabeça de sua platéia.
Consumou o expediente já no primeiro capítulo e espalhou a apresentação de cada um com edição ligeiramente clipada que mostrava a evolução do personagem por meio de quatro fotos. Bom trabalho de maquiagem, esse que leva Carolina Dieckmann a parecer Suzana Vieira e Gabriel Braga Nunes, a ser José Mayer.
Também clipada foi a edição que trouxe à tona personagens da época, como Vladimir Palmeira e o presidente Costa e Silva, com direito a imagens reais, colagens em preto-e-branco e, sobretudo, em linguagem ao alcance da grande audiência.’