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Desde que o presidente Lula enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei que cria o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e suas seções nos Estados, a mídia, de modo geral, e parte expressiva da imprensa, em particular, não tem feito outra coisa senão desconstruir o projeto, cuja iniciativa é da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), entidade máxima da categoria; o governo foi apenas o meio.
Entre artigos e matérias sobre o assunto, naturalmente em sua esmagadora maioria contrários ao projeto, que chovem aos borbotões por todos os lados, um ou outro texto surge nos jornais a favor do CFJ. Por isso, trata-se de um ‘debate’ profundamente desigual. Assim, a premissa da eqüidade ou da isonomia no tratamento do tema passa ao largo desse debate.
Este artigo se propõe, na medida do possível, a analisar o comportamento dos meios acerca desse tema. Mais que defender uma posição sobre o assunto, ainda que isso seja inevitável, é necessário avaliar como os meios se comportam diante dessa controvérsia.
A liberdade de expressão que se defende, em contraposição ao projeto de lei, não passa de retórica dos donos dos meios de comunicação e seus representantes dentro e fora das redações. A prova mais contundente disso é que não se trava um debate acerca do projeto, mas sim se submete o tema a um verdadeiro massacre. É uma torrente contrária ao projeto, sem o mesmo espaço para os que são a favor, não necessariamente do projeto, mas do debate democrático em torno da matéria em pauta.
Liberdade de que e para quem, cara-pálida?
Ainda sobre a liberdade de expressão, ultimamente tão defendida pelos donos dos meios e seus representantes, cabe uma pergunta que não quer calar: liberdade de quem e para quem, cara pálida? Sim, porque os jornalistas escrevem e tratam a notícia a partir de uma pauta previamente definida.
A liberdade, em última instância, está vinculada a compromissos econômicos, sociais, culturais, políticos e ideológicos dos donos dos meios. Ou seja, a imprensa é de classe, ela defende os interesses dos patrões e dos que estão efetivamente no poder. Por favor, não confundam poder com estar no governo. São situações sensivelmente distintas.
Advogar o princípio da liberdade de expressão para atacar o projeto não parece um argumento consistente, sobretudo partindo de quem parte. E mais, atacar o presidente Lula dizendo que o governo começa a mostrar seu viés autoritário é uma farsa, pois cabe ao Congresso, ao debater o projeto, aperfeiçoá-lo e suprimir qualquer resquício de autoritarismo, se houver. No fundo, parcela dos que atacam o projeto o fazem por oposicionismo ao governo.
Via de regra, como é feita a cobertura pelos meios, por exemplo, do MST? Invariavelmente, essa cobertura é negativa e majoritariamente contrária ao movimento. Aliás, toda a cobertura dos meios aos movimentos sociais tem um viés profundamente preconceituoso e tendencioso. Os exemplos são infindáveis.
E a ‘cobertura’ internacional da imprensa brasileira? Essa é risível e atrelada aos interesses das potências. Dois livros deslindam essa assertiva: Deus é inocente, a imprensa não, de Carlos Dorneles, e O jornalismo canalha, de José Arbex Jr. Em ambos os livros os autores demonstram, com fatos e argumentos, os interesses por detrás da cobertura jornalística internacional e como são elas são feitas nos meios nacionais.
O dito e o não dito
Muito já foi dito e escrito contra o projeto. O que não é dito é que essas posições contrárias ao CFJ guardam em si posições inconfessas de interesses particulares. Para os donos dos meios o que está em jogo não é a liberdade de expressão ou de imprensa, até porque isso eles têm de sobra, mas sim os seus interesses negociais.
Quem manda no Brasil são os grupos econômicos de fora, associados a uma parcela da burguesia nacional. A esses nunca faltou liberdade para enganar, escravizar e envolver o país nas negociatas que, em geral, são lesivas à Nação e ao povo brasileiro.
Como os donos dos meios pertencem à ínfima cifra de 1% dos brasileiros que acumulam quase 76% do Produto Nacional Bruto ou 45,3% do PIB brasileiro, é evidente que esses não vão querer nenhum tipo de controle social sobre os meios. Daí a enxurrada contra o projeto e o que ele propõe.
Mas por quê? Segundo os autores do estudo Os Ricos do Brasil – o terceiro de uma série sobre o tema – organizado pelo economista Márcio Pochmann, secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo, ‘os fatores midiáticos que reforçam a exclusão’ têm grande influência nesse debate. E acrescenta: ‘A publicidade que enaltece os valores do consumo, a novela da Globo que cristaliza as diferenças entre as classes sociais e o jornalismo que nem sempre aborda o assunto como deveria – até porque, como diz André Campos, é controlado, no Brasil, pelas mesmas famílias que ocupam o topo da pirâmide.’
A desinformação como fator de dominação
Pochmann lembra que o Brasil só viveu até agora sob dois tipos de combinações: autoritarismo político com crescimento econômico e democracia com baixo crescimento econômico. Nunca vivemos democracia com desenvolvimento e com igualdade de oportunidades para toda a população.
‘Ainda que a violência seja uma forma de expressão, e das piores, o Brasil – um país sem reformas, mas em guerra civil, como ostentam os índices de criminalidade – nunca assistiu a uma rebelião organizada das massas excluídas, embora sobrem motivos para que se demonstre insatisfação. O que faz dos brasileiros um povo tão pacato, termo que muitos gostam de usar? Não se trata propriamente de uma questão de calma ou paciência’, constata matéria de CartaCapital, nº 285, de abril de 2004.
Ainda segundo Pochmann, ‘alguém já disse, lá no século XIX, que o primeiro passo para mudar a realidade é conhecê-la’. A não informação gera um quadro de acomodação e cria as massas de manobra. (*) Estudante de jornalismo e assessor parlamentar do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar).’
Nelson Breve
‘Espião de Deus ou Pistoleiro de Aluguel’, copyright O Globo, 17/08/04
‘O jornalismo precisa de um reordenamento corporativo para servir melhor à sociedade. O melhor caminho para reestruturarmos a profissão, não sei. Mas o pior é fugirmos do debate, desqualificando os interlocutores e repelindo a idéia de um controle social externo, tal como fizeram e continuam fazendo setores do Poder Judiciário.
Tentava concluir o Curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP, no início da década de 90, sem saber direito o que fazer com o diploma. Das conversas com Sergio Gomes, um dos três professores que mais influenciaram minha formação profissional (os outros foram Carlos Chaparro e Cremilda Medina), incorporei um conceito, que simboliza perfeitamente o ideal que persigo na profissão desde que me formei, há mais de 10 anos: o jornalista é um espião de Deus.
Para tentar exercer essa função na sociedade, abandonei uma carreira bem sucedida de bancário. Alguns anos depois, já com experiência profissional, ouvi de um colega de trabalho outra expressão que se encaixa bem na visão crítica que tenho hoje do exercício dessa profissão: jornalista é pistoleiro de aluguel.
As duas definições têm gênese no conceito de justiça. Podemos dizer que o jornalista é pago para fazer justiça. Mas a visão de justiça do pistoleiro de aluguel é particular, segmentada. Mistura o julgamento dele próprio com a representação da realidade feita pelo contratante. Por outro lado, o espião de Deus tem mandato para buscar um senso de justiça mais abrangente: o bem comum. Ele está a serviço da justiça divina, da justiça para o equilíbrio da sociedade. Sua função é não deixar que os mais fracos sejam injustamente subjugados pelos mais fortes.
Os jornalistas querem ser espiões de Deus, mas a estrutura social das redações acaba empurrando a grande maioria para a condição de pistoleiros de aluguel. Isso não é uma peculiaridade de países como o Brasil. Nem está relacionado ao maior ou menor grau de liberdades democráticas. A partir de uma pesquisa, feita na década de 1950, com 120 jornalistas de jornais de médio porte do Noroeste dos EUA, o sociólogo Warren Breed, da Universidade Tulane (Nova Orleans), concluiu que os donos ou responsáveis pelas publicações (publishers) exercem um controle efetivo sobre o que é publicado, usando mecanismos subliminares que produzem o conformismo das redações.
No artigo ‘Controle Social na Redação: uma Análise Funcional’, publicado originalmente em 1955 no volume 33 da revista Social Forces, ele mostra como é passada a orientação política no interior da redação, de que maneira os jornalistas a percebem e quais os motivos que os levam a aceitar passivamente essa situação. A conclusão de Breed é que só a pressão social sobre o publisher pode conduzir a uma imprensa mais livre e responsável:
‘A fonte de recompensas do jornalista não se localiza entre os leitores, que são manifestamente os seus clientes, mas entre os seus colegas e superiores. Em vez de aderir a idéias sociais e profissionais, ele redefine os seus valores até ao nível mais pragmático do grupo redatorial. Ele ganha, desse modo, não só recompensas ao nível do estatuto mas também a aceitação num grupo solidário empenhado num trabalho interessante, variado e, por vezes, importante. Assim, os padrões culturais da sala de redação produzem resultados insuficientes para as mais vastas necessidades democráticas. Qualquer mudança importante tendente a uma ‘imprensa mais livre e responsável’ deve provir de várias pressões sobre o publisher, que incorpora o papel decisório e coordenador’.
Quem conhece a realidade de uma redação e tem uma visão crítica do jornalismo sabe que as observações feitas por Warren Breed há quase 50 anos continuam extremamente atuais. O foca chega em uma redação, mira o jornalista de maior prestigio – a principal estrela do jornal, revista, rádio ou TV – e se pergunta: o que preciso fazer para chegar lá? Não estamos falando aqui de pessoas sem caráter ou mal-intencionadas. São jovens íntegros que sonham melhorar o mundo com suas reportagens. Mas, o que acontece quando as sugestões de pauta ou textos finais não passam pelo crivo dos chefes e editores? Sentem-se fracassados, sem entender bem onde está o problema.
O controle da redação é silencioso, subliminar. Um dia, o jovem repórter apura um caso que agrada o andar de cima e vira manchete principal. É a glória. Dignamente, ele encontrou seu espaço na redação, sendo cumprimentado pelos colegas e visto com admiração ou uma ponta de dor-de-cotovelo pelos concorrentes. Sem perceber, ou em uma estratégia consciente para alcançar os degraus de maior independência na profissão, se encaixou na matriz ideológica do comando da redação. Por gratidão, estima ou estratégia de sobrevivência, ele firma um pacto de lealdade com os superiores. Nada é explícito. No máximo, a recomendação da leitura regular dos editoriais.
Muitas vezes, o jornalista em ascensão trava negociações difíceis – e até consegue evitar alguns desequilíbrios e eventuais imparcialidades decorrentes da orientação editorial. Em outras, ele acaba encontrando argumentos para convencer a si próprio de que concorda com a orientação. As razões são várias: prestígio profissional, auto-estima, bens materiais, conforto da família, conquista da independência profissional, prazer de trabalhar em uma atividade empolgante etc.
O enquadramento é imperfeito, existem brechas para superar o bloqueio orientador. Depende muito da ousadia do jornalista e da personalidade das pessoas que estão nos postos chave da estrutura hierárquica. Um jornalista pode chegar ao ponto máximo da carreira com a convicção de que não precisou fazer nenhuma concessão aos seus princípios éticos. Mas, por apego a tais princípios, pode também bater de frente com os interesses de seus superiores ou do comando da redação.
São esses jornalistas, bloqueados ao longo da vida profissional, que defendem a criação de um mecanismo de controle social externo das redações. São tidos como fracassados pelos colegas que permanecem na vitrine da profissão. Visto por um lado, realmente são – não conseguiram se equilibrar na navalha das redações. Por outro, podem ser considerados rebeldes que não aceitaram o jogo escorregadio do controle social interno – orientado por quem manda, de fato, nas publicações e emissoras.
Mas o preconceito tem mão dupla. Os excluídos das redações consideram pelegos ou enquadrados – ou covardes, como qualificou o presidente Lula – os que permanecem na linha de frente da profissão. Por isso, querem impor-lhes um Conselho Federal de Jornalismo que rompa com a lógica do controle social interno, considerado lesivo aos interesses da sociedade. Querem que os meios de comunicação sejam democratizados e os espiões de Deus sejam libertados da condição de pistoleiros de aluguel.
Por outro lado, os profissionais das redações não aceitam ser controlados, principalmente por instituições partidarizadas e aparelhadas por pessoas afastadas da realidade profissional. Eles não se sentem representados por suas entidades sindicais e temem um dirigismo que, a pretexto de democratizar os meios, o controle da profissão sirva a interesses autoritários que desejam o cerceamento da liberdade de imprensa. Para os dirigentes das entidades sindicais, esse discurso serve apenas ao interesse dos patrões.
Esse é um assunto em que todos têm razão e que deveria ser debatido com racionalidade, sem preconceitos e sem suposição de má-fé na orientação das opiniões contrárias. É de interesse da sociedade que nós jornalistas consigamos encontrar um bom caminho para a auto-regulamentação da nossa profissão. A inabilidade – seguindo o postulado da boa-fé – do governo petista ao colocar a criação do CFJ em discussão no momento em que pipocam denúncias incômodas contaminou irremediavelmente o projeto. Criou um clima de desconfiança que interditou o debate, desviando o assunto do foco principal.
Nossa profissão precisa de um re-ordenamento corporativo para servir melhor à sociedade. As estruturas sindicais e associativas atuais estão contaminadas e dissociadas dos profissionais. Estes, consideram-se auto-suficientes para enfrentar o controle interno nas redações e tentam se convencer de que a orientação individual é melhor guardiã da ética que a consciência coletiva. O melhor caminho para reestruturarmos a profissão, não sei. Mas o pior é fugirmos do debate, desqualificando os interlocutores e repelindo a idéia de um controle social externo, tal como fizeram e continuam fazendo setores do Poder Judiciário.
Não podemos continuar fingindo ter uma liberdade que não temos. No início deste ano, repórteres da sucursal de Brasília de um grande jornal – aqui omitido para evitar constrangimentos – se queixaram de censura interna. Contaram a colegas que a menção de qualquer questionamento à política econômica conduzida pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, nas matérias produzidas pela Sucursal estava vetada pela direção editorial. Apesar da revolta, não houve uma queixa ao Conselho de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Ninguém ousa denunciar, porque todos querem continuar trabalhando nesse mercado cada dia mais afunilado. Isso é liberdade de imprensa? Nelson Breve é chefe da Sucursal de Brasília da Agência Carta Maior’
O Estado de S. Paulo
‘‘Miami Herald’ critica conselho de jornalismo’, copyright O Estado de S. Paulo, 10/09/04
‘Em editorial sob título ‘O Brasil deve rejeitar conselhos para regulamentar a imprensa’, o jornal The Miami Herald advertiu, ontem, que, sendo a imprensa livre ‘um precioso pilar de qualquer democracia’, a intenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de regulamentá-la é ‘perturbadora’.
Num texto de seis parágrafos, o jornal de Miami, na Flórida, resume o projeto de se criar o Conselho Federal de Jornalismo e adverte: o presidente Lula ‘deve entender um conselho, ou colégio, autoritário, como um modo de queimar a imagem de seu governo. É quase certo que ele não funcionará.’
Mais adiante, diz o editorial: ‘Colégios são instrumentos de intimidação e censura mais populares em democracias repressivas como a da Venezuela ou no regime totalitário de Cuba.’’