Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Maria Augusta Vieira

‘Raras vezes, em toda a história, uma obra literária criou laços tão intensos de simpatia com o leitor como o Quixote de Miguel de Cervantes. Publicado em 1605 (a segunda parte é de 1615), em plena Espanha que atravessava seu meio-dia e já experimentava as repercussões nefastas da política de Felipe II, o Quixote pode ser considerado, em seus quatro séculos de existência, como um sol que nasce para todos, como disse, em certa ocasião, Augusto Meyer. O próprio Cervantes parece ter intuído a ampla difusão de sua obra. Na ‘Dedicatória’ ao Conde de Lemos, da segunda parte, ainda que em tom irônico e paródico, há a projeção ambiciosa de que as aventuras do engenhoso cavaleiro fascinariam variada sucessão de leitores, não apenas no Ocidente, mas também no Oriente. De fato, o Quixote foi traduzido para inúmeros idiomas e, como já se pôde comprovar, representa um espaço de convergência das mais variadas nacionalidades. Em 1997, foi organizado na Espanha um evento singular, que contou com mil pessoas de diversas origens sociais e culturais: dividido em diversas partes, o texto integral do Quixote foi traduzido para outros tantos idiomas, os quais foram lidos ininterruptamente, em estupenda dramatização do ato da leitura. Transpuseram-se as barreiras entre as línguas e – mesmo desconhecendo o coreano, o russo ou o finlandês – os ouvintes puderam partilhar dos encantos daquele gesto transcultural.

Certamente, a pluralidade dos leitores do Quixote não foi obra do acaso. Ao contrário, fez parte do projeto da composição de Cervantes. Por um lado, trata-se da história de um fidalgo decadente, que, antes de se tornar pretenso integrante da cavalaria, foi um leitor contumaz, cujo universo de referências era a literatura. Por outro lado, a voz narrativa estabelece um diálogo intenso com o leitor, de modo a envolvê-lo no emaranhado das aventuras, nas diversas perspectivas dos múltiplos personagens e no próprio modo de contar a história. No capítulo III da segunda parte, por exemplo, Sansão Carrasco – personagem que figura como leitor da primeira parte do livro, já publicada – em instigante conversa com Dom Quixote e Sancho sobre as aventuras, a autoria e a recepção da própria obra, aponta algumas de suas qualidades: ‘Tão clara é ela (a obra) que nada tem de dificultoso: as crianças a manuseiam, os moços a lêem, os homens a entendem e os velhos a celebram.’ Essa galeria de prováveis leitores, divididos pelas fases da vida, aparece de modo mais abrangente no ‘Prólogo’ da primeira parte, quando o suposto autor ou o padrasto de Dom Quixote – como ele próprio se define – esclarece quais são seus propósitos em relação ao eventual leitor, que pode ser engenhoso, melancólico, risonho, tolo, prudente ou discreto.

Pela perspectiva do autor, cada uma das espécies de leitores teria seu lugar garantido na obra, de maneira que ela pudesse agradar tanto ao mais refinado, preocupado com a construção engenhosa, quanto ao que se limita ao aspecto puramente anedótico da narração. Em rigor crítico, o propósito de atingir leitores tão diversos se subordina a um princípio de composição próprio do século 16, segundo o qual a naturalidade do estilo deveria ser privilegiada. A naturalidade evitaria a afetação e incorporaria à escrita elementos da fala – ‘escribo como hablo’ – o que certamente resultaria de criteriosa elaboração estilística. Ou seja, a naturalidade, no caso das andanças do cavaleiro manchego, explica-se sobretudo como efeito do texto sobre o leitor, sendo certo que toda sua armação decorre de complexas operações. Transcorridos 400 anos de existência do Quixote, essa naturalidade ainda pode ser testemunhada pelo leitor atual, seja ele mais ou menos informado acerca de questões literárias e históricas dos séculos 16 e 17 ibéricos.

Ao longo desses quatro séculos, portanto, a obra reuniu um universo amplo de leitores o que, conseqüentemente, multiplicou o número de suas interpretações. Nesse sentido, é interessante observar a pluralidade de feições assumida por sua fortuna crítica: mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades e as andanças de Dom Quixote e Sancho, em alguma medida, se ajustaram às novas épocas, adquirindo ‘novas qualidades’ (para lembrar o soneto de Camões), certamente não previstas e nem imaginadas pelo manco de Lepanto. No âmbito dessa variedade, seria possível destacar três grandes momentos que marcaram os modos de interpretação da obra. As leituras dos séculos 17 e 18, que poderiam ser consideradas como contemporâneas, encontraram nela obra de grande comicidade, produzida essencialmente pelo procedimento paródico em relação às novelas de cavalaria. A partir do século 19 e até meados do século 20, ocorreu um redirecionamento interpretativo, iniciado pelos românticos alemães, que observou o idealismo do cavaleiro, sua loucura sublime e, sem ignorar o estilo paródico, deu destaque para a novidade de sua construção, que insinuava o surgimento do gênero que viria a ser conhecido como romance. Em lugar do cavaleiro louco, repleto de comicidade, Dom Quixote foi levado a sério: seus desacertos, em lugar de provocar o riso, passaram a ser entendidos em perspectiva simbólica, possibilitando uma interpretação trágica, capaz de sintetizar questões normalmente associadas à problemática do homem moderno. Por volta de 1950, ocorreu nova orientação nos estudos cervantinos, que passaram a se preocupar com o resgate da comicidade e com a restauração de princípios de composição próprios da época do autor.

Por mais que o Quixote tenha sido estudado ao longo dos séculos, nas três últimas décadas, observa-se notável crescimento das pesquisas, as quais não se restringem ao mundo hispânico. Além de estudos especializados, constata-se crescente interesse em reedições e, particularmente, em contínuas traduções para os mais variados idiomas, como ocorreu recentemente com o lançamento de nova versão para o coreano (por ocasião do 11.º Colóquio da Associação de Cervantistas, realizado em Seul, em novembro de 2004). Observa-se movimento semelhante no Brasil. Afinal, passados 400 anos, o Quixote ainda é capaz de promover novas e novas questões, entre as quais se destaca a noção de que nem sempre a arte imita a vida. Ao contrário, nos idos de 1600, em algum lugar da Mancha, surgiu a idéia de que, em alguma medida, a vida pode imitar a arte.

Maria Augusta Vieira é professora de Literatura Espanhola da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autora de O Dito pelo não Dito: Paradoxos de Dom Quixote (Edusp) e de Dom Quixote: A Letra e os Caminhos, a ser lançado pela Edusp/Inst. Cervantes’



SHERLOCK HOLMES
Mathew Shirts

‘O último caso de Sherlock Holmes’, copyright O Estado de S. Paulo, 17/1/05

‘Existe, no mundo, todo tipo de cultivadores do Holmes, organizados em clubes. Um deles se chama o Sherlock Holmes Society of London; outro, ainda mais radical, pelo que entendi, The Baker Street Irregulars. O fanatismo pelo personagem é tamanho que alguns dos seus seguidores se recusam a mencionar o escritor Conan Doyle. Tratam o personagem como se fosse um detetive de verdade.

Soube disso na semana passada ao ler a fascinante reportagem de capa da edição de 13 de dezembro da revista americana The New Yorker – Circunstâncias Misteriosas: A Estranha Morte de Um Fanático por Sherlock Holmes. Escrita por David Grann, relata a história de Richard Lancelyn Green, o maior estudioso de Holmes de todos os tempos.

Green acreditava que finalmente havia resolvido o caso dos papéis perdidos. Estes consistiam em cartas e manuscritos de Conan Doyle, de valor estimado em US$ 4 milhões, e dizia-se que traziam uma maldição semelhante ao relatado no seu famoso livro (de ficção) O Cão dos Baskervilles.

Os papéis haviam sumido depois da morte de Conan Doyle em 1930 e, sem eles, escreve Grann, ‘ninguém conseguira montar uma biografia definitiva do escritor inglês – um empreendimento que Green estava determinado a realizar’.

Ao investigar o caso, Green descobrira que um dos cinco filhos de Conan Doyle, Adrian, havia roubado alguns dos papéis, mas morreu de enfarte antes de vendê-los, dando início à lenda da maldição.

Green buscou o paradeiro dos documentos durante anos até chegar à filha mais jovem do escritor, Dame Jean, que estava com muitos deles. Ela garantiu ao estudioso que pretendia deixá-los para a British Library quando morresse, o que acabou acontecendo em 1997. O estudioso esperou a transferência dos documentos, ansioso, mas nada. Até que, no ano passado, qual não foi sua surpresa ao abrir o Times de Londres de domingo e descobrir que seriam leiloados pela Christie´s por milhões de dólares. Os papéis iriam para as mãos de colecionadores particulares, o que impossibilitaria a realização da biografia definitiva de Conan Doyle.

Green tentou impedir o leilão. Procurou os clubes de sherlockianos para alardear que os documentos haviam sido roubados. Dizia, ainda, que podia provar a acusação.

Não vou contar tudo, inclusive porque a reportagem é longa e repleta de detalhes maravilhosos. Mas a história não termina aí. Corta para o dia 27 de março do ano passado. Chamada pela irmã do mr. Green (vale lembrar que isto não é ficção), a polícia londrina força a porta do estudioso e descobre o seu corpo caído no andar debaixo da casa com um cordão de sapato no pescoço.

Ele havia sido garroteado. Ao lado do corpo estava uma pista: uma colher de madeira, dessas de mexer molho de macarrão. A misteriosa morte do mr. Green parecia confirmar a maldição dos documentos de Conan Doyle e não poderia assemelhar-se mais com um caso fictício de Sherlock Holmes.

A polícia concluiu que fora suicídio. Mas há motivos para questionar tal conclusão. Em primeiro lugar, é bem difícil se autogarrotear. Mais ainda com um cordão de sapato. E, antes de morrer, Green telefonara a um repórter do Times de Londres para dizer que estava correndo perigo. Mandara também um bilhete enigmático à irmã, pedindo para guardar em segurança três números de telefone. Contara, ainda, a um amigo que havia ‘um americano’ que queria ‘derrubá-lo’. Como se não bastasse, Graan, o autor da reportagem da New Yorker, conseguiu localizar o tal americano – que vem a ser um alto funcionário do Pentágono, amigo de Donald Rumsfeld… Sim, o secretário de Defesa dos Estados Unidos.

E mais não conto.

O que concluir dessa história? (Não lembra aquele jogo Detetive? O Mr. Green foi morto na sala com a corda por…)

Na verdade, não sei o que concluir. Faz pensar se a boa ficção não acaba virando realidade em algum momento. Filme, no mínimo, vai ser. E assim caminha a pós-modernidade.’



SER ESCRITOR
João Paulo Cuenca

‘Sobre a profissão, a rotina e a avó do cronista’, copyright Jornal do Brasil, 15/1/05

‘Liguei para desejar feliz Ano Novo a minha avó. A coroa não deu confiança e mandou logo a real, na fuça do cronista. ‘Meu filho, você está empregado?’ Não entendi a pergunta e pedi para repetir. ‘É, emprego… Você tem um emprego fixo?’ Respirei fundo e soltei de prima, sem preparar o terreno: eu escrevo. A senhora deu uma gargalhada que me fez afastar o ouvido do telefone. ‘Qual sua idade, meu neto?’ Respondi, como se ela não soubesse. ‘E você não acha que está velho demais para isso?’ A senhora sabe que é comum dizerem justamente o contrário? ‘Você já está na idade de acordar, tomar banho, se vestir e ir trabalhar todos os dias! Você não faz isso?’ Eu trabalho em casa… E foi outra gargalhada, desta vez interrompida por acessos de tosse. ‘Em casa? Trabalho? Mas isso não é trabalho, meu filho!’ Minha avó tem 82 anos. Não que isso faça diferença.

Semana dessas, encontrei com amigos de faculdade num chope de fim de ano. Todos eles seriam o orgulho da vovó: trabalham em grandes empresas, fazem doutorado e acertam o despertador para tocar de madrugada. Sou a exceção. Graduei-me em economia pela UFRJ depois de intermináveis seis anos matando aula para jogar bola, botão, truco, beber cerveja no Sujinho, tocar violão ou, para desespero da senhora, ficar em casa olhando para o teto. Meus colegas economistas consideram esse papo de escritor uma excentricidade e, surpresos com meu relativo sucesso, invariavelmente me recebem com um ‘tá famoso, hem?’ num tom entre a ironia e o escárnio. Para os economistas, sou um dândi louco que virou escritor. Para os colegas escritores, a formação em economia pega muito mal. Acham esquisito. Meninas estudantes de letras viram a cara, jornalistas engolem seco e platéias fazem muxoxo quando revelo minha formação universitária, como se estivesse confessando a todos um crime terrível, revelando a face oculta de um tarado.

Minha avó não sabe, mas há quase dois anos não piso num escritório. Apesar da vagabundagem na faculdade, sempre trabalhei. Cinco anos como economista, passando o crachá na roleta. Hoje, faço meus horários e não tenho hora para nada. Se não acordo cedo, escrevo até amanhecer. Meu computador fica ao lado da janela e escuto todo o tipo de barulho que ninguém escuta. Muitos deles não vêm da rua, ou aqui de casa. Posso ficar 12 horas sem comer e sair para almoçar sozinho entre os espelhos do Lamas, às dez da noite. É uma vida desgarrada e triste. Se o corpo sai de perto do computador, a cabeça não pára de maquinar. Dependendo do seu processo de criação, pode ser um inferno. Tenho saudade de quando tinha hora. Almoço com colegas no Centro, metrô lotado para voltar, jantar na mesa posta. Esse senso de coletividade e rotina se perdeu. Se eu ganhasse um algum, alugava sala na Av. Rio Branco com um computador e uma cadeira. Acordava cedo, café e banho tomado, e ia trabalhar. Porta sem placa trancada até as seis da tarde e depois, chope e casa. Anda cada vez mais difícil merecer o que se bebe e aquele chope de final de expediente no Centro desce como uma recompensa.

Com ou sem placa na porta, fato é que escritores se auto-titulam, daí a resistência da vovó. Qualquer vagabundo sobe num banco de praça, engradado de cerveja ou caixa de laranja e diz: ‘Sou escritor’. Junta um troco, publica um caderninho de xerox, abre uma página na internet e é isso. Rapidinho o populacho junta e acredita. E mesmo que não acredite, o sujeito continua sendo escritor. Ou então o mané, com medo que lhe chamem de cabotino, fecha os escritos num baú ou num arquivo de computador, joga um litro de álcool Pring, risca um fósforo e queima tudo sem mostrar para ninguém. Continua sendo escritor. E é bom que seja assim. Não acredito que o contato com a ‘máquina poética, o meio literário, a editora, a imprensa, os colegas, os agentes e os ninjas apicultores’, como disse outro dia o colega Nazarian, faça de um sujeito escritor diplomado. O escritor, antes de tudo, é um lunático que acredita que é um escritor. Dona Carmen que o diga.’