Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Maria Clara R. M. do Prado

"O governo Lula deixou-se levar pela cólera e não pela razão ao cancelar o visto do jornalista William Larry Rohter Junior, do jornal americano ‘The New York Times’ e bani-lo do país. A reportagem, que levanta uma suposta preocupação da sociedade brasileira com um possível uso excessivo de bebidas alcoólicas do presidente da República, exacerbou os ânimos do Planalto e culminou em uma agressão à liberdade de imprensa. Usou uma legislação herdada da ditadura para expulsar um correspondente estrangeiro, um fato que tem apenas um precedente recente, durante o governo militar. Lula talvez tenha arranhado sua imagem de estadista respeitado pelo mundo ao agir como déspota de regimes autoritários tipicamente terceiro-mundistas, como Iraque ou Coréia do Norte.


A reação oficial foi claramente exagerada. Embora possa haver danos à imagem do governo, o fato de que o relato tenha sido publicado no ‘NYT’, o jornal mais influente do mundo, não significa que ela tenha mais credibilidade do que se fosse publicada por qualquer grande jornal brasileiro. A reverência diante do ‘deu no NYT’ já se tornou um emblema de provincianismo. As conseqüências da expulsão, levadas ao limite, são temerárias – criam incerteza sobre possíveis represálias do governo, mesmo à imprensa local, diante de reportagens que ele repute ‘ofensiva à honra’. Um desmentido público ao ‘NYT’ ou um processo judicial seriam mais que suficientes para encerrar o assunto. Desnecessária também a busca de conspirações ocultas – um cacoete de governos. O ministro do Planejamento, Guido Mantega, atribuiu o episódio a ‘grandes interesses empresariais contrariados’. O secretário Luiz Gushiken, a uma conspiração inspirada pelo governo americano.


A retirada do visto abriu o flanco do governo para desgastes desnecessários, como já vai se tornando uma tradição no governo Lula. Ontem, o porta-voz do Departamento de Estado, Richard Boucher, disse que a decisão do governo brasileiro ‘não está de acordo com o forte compromisso do Brasil com a liberdade de imprensa’. E a porta-voz do ‘NYT’, Catherine Mathis, questionou a base legal para a retirada do visto de Rohter e acenou com uma batalha judicial.


Não existem temas tabus para a imprensa. Os hábitos do presidente são assuntos de interesse público. Mas o ‘NYT’ fez um jornalismo de muito baixa qualidade ao publicar a peça ‘Hábito de bebericar do presidente vira preocupação nacional’, em total desacordo com o alto nível reconhecido de suas reportagens de fôlego. A aludida preocupação nunca existiu.


Arrogância e preconceito se encontram em doses elevadas no texto – sindicatos de trabalhadores são ambientes famosos pelo alto consumo de álcool. O repórter insinua que Jânio Quadros renunciou porque estava bêbado e que Lula se mantém distante das crises – o que não corresponde à verdade – provavelmente por causa de seu ‘apetite por álcool’. Insinuações deste tipo são o eixo da reportagem, cuja bandeira é levantar suspeitas de que o suposto gosto por ‘bebidas fortes’ estaria afetando a performance de Lula. Listar fontes não é uma condição absoluta em reportagens investigativas. Mas as citadas pelo ‘NYT’ não são boas referências, porque são extrema e reconhecidamente parciais. Não há praticamente um fato que o repórter tenha presenciado ou circunstâncias que fontes, mesmo não reveladas, tenham descrito em detalhes e que pudessem ser comprovadas por outras pessoas.


Até as gafes que o presidente comete foram debitadas ao prazeres do copo, como Lula ter se referido em uma solenidade da GM ao dirigente da Mercedes-Benz, quando se sabe que lapsos são normais. Como a imotivada incapacidade de alguns presidentes dos EUA, como Ronald Reagan, de brindarem ao povo certo – em visita ao Brasil no início dos anos 80, fez uma saudação à população da Bolívia. A apuração dos fatos foi preguiçosa demais para a ambição da reportagem. Nessas bases precárias, o que deveria ser informação de peso vira ofensa ou difamação. A indignação do governo brasileiro está correta, errada foi a saída encontrada para manifestá-la. Pois, no caso, a montanha de credibilidade acumulada pelo ‘NYT’ pariu um rato."



Luiz Garcia


"Ah, é? E o Churchill?", copyright O Globo, 13/05/04


"Algumas acusações são praticamente irrespondíveis. Ao negar que bate na mulher (ou no marido), freqüenta sites de pedofilia ou rouba doce de criancinha, a vítima já está irremediavelmente no prejuízo.


Óbvio: sentir a necessidade de responder equivale, na impiedosa interpretação de quem ouve ou lê, a uma confissão de que a negativa era necessária. Logo, existia algum grau de plausibilidade na hipótese. E onde há fumaça…


A reportagem do correspondente do ‘New York Times’ sobre o rumor de que o presidente Lula bebe demais é, como já foi dito, uma frágil peça de jornalismo. O rapaz ouviu as pessoas erradas e, no máximo, sugeriu que o presidente gosta de beber, não que o faz excessivamente.


Certamente Lula não ingere nada parecido com a quantidade de champanhe e uísque que Winston Churchill mandava para dentro todos os dias, enquanto exercia uma liderança política, militar e diplomática que até hoje não encontrou paralelo.


O que poucos notaram é que o tema principal da reportagem não é o fato de que Lula bebe – e sim a afirmação de que há crescente preocupação no país com o suposto alcoolismo do presidente. Uma tese que o texto não prova.


Se houvesse a inquietação, existiria um clima de insegurança perigoso para o país, política e economicamente. Seria notícia importante. Mas ela simplesmente não cria raízes no texto do correspondente, leviano e estigmatizado pela má vontade. Ele chega ao extremo de associar as freqüentes gafes verbais de Lula ao suposto alcoolismo. Essa impressão não existe no Brasil: todo mundo sabe que o presidente tropeça na própria língua porque adora falar de improviso. E até hoje ninguém teve a piedade de lhe explicar que nada precisa ser mais cuidadosamente ensaiado do que a espontaneidade verbal.


Voltando ao ponto de partida, a acusação de alcoolismo faz parte do grupo das irrespondíveis, ou quase isso. E merecia, portanto, discretíssima reação. A carta do embaixador em Washington ao ‘Times’ dava conta do recado. Em Brasília, qualquer porta-voz ou aliado do governo diria apenas que bobagens não pedem comentário ou reação.


A enxurrada de declarações de protesto, a ameaça ridícula de se processar o ‘Times’ (a Advogacia Geral da União estaria incumbida disso) – tudo isso serviu apenas para dar ao problema uma dimensão inexistente e inconveniente.


Já a expulsão é uma tolice à parte, pela espetacular falta de inteligência que demonstra. De saída, eticamente incorreta: não há desculpa para que um governo democrático determine que jornalistas podem ou não podem trabalhar no país, porque não aprova o conteúdo de seus despachos.


E é politicamente desastrosa. Aos olhos europeus e americanos, aproxima Lula das antigas gerações de ditadores latino-americanos. Além disso, praticamente garante que o novo correspondente tenha, a priori , uma má vontade espetacular em relação ao Brasil e ao seu governo. Em todos os aspectos, a reação do Planalto é tiro no pé: uma apaixonada e radical defesa da sobriedade presidencial seria exatamente o que se esperaria ouvir se o país estivesse mesmo tremendo de aflição com os porres de seu presidente.


Protestar demais é sempre um erro, como disse Shakespeare em ‘Hamlet’, na boca da rainha Gertrude. Um bom conselho, como todos os que ele deu."



Sergio Leo


"Poder embriaga, mas dá dor de cabeça", copyright Valor Econômico, 13/05/04


"O jornalista do ‘The New York Times’, Larry Rohter, é um profissional competente, que ama o Brasil, tem até mulher brasileira, e nutre um indisfarçado preconceito contra o PT. Essa descrição, baseada apenas em comentários ouvidos em uma redação de jornal, é um pedaço de mau jornalismo, quase tão ruim quanto o texto condenável elaborado por Rohter e publicado no ‘Times’, noticiando uma (inexistente) preocupação nacional com o gosto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva por bebidas alcoólicas.


No meio jornalístico, e em bom português, o que Rother fez é conhecido como cascata, a começar pelo título. Não é segredo que, como disse o porta-voz do Planalto, o presidente, como a média dos brasileiros, gosta de destilados e fermentados. Mas, a não ser por perguntas eventuais, motivadas pela natural curiosidade do populacho sobre hábitos privados dos chefes de Estado, não se conhece nenhuma análise econômica séria, ou discussão política, em que se levantasse o temor de que o conteúdo dos copos bebidos pelo presidente estivesse afetando seu modo de dirigir o país. Os polêmicos Leonel Brizola, Diogo Mainardi e Cláudio Humberto Rosa e Silva, citados na ‘reportagem’, servem mais como exemplo da precariedade da apuração jornalística de Rohter que como porta-vozes de um suposto ânimo nacional.


O que está excessivamente alto, e preocupa boa parte do país, é o nível da taxa de juros. É o que o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central vêm fazendo, sóbrios, o que desperta preocupação de uma considerável parcela da população, não os hábitos etílicos do presidente.


Outra parcela, que considera suportáveis pela sociedade os altos teores de desemprego e custos financeiros, também releva as normais concessões ao álcool eventualmente feitas pelo presidente após o futebol – e o expediente – na Granja do Torto, e se preocupa com possíveis concessões nos gastos públicos e na política monetária, provocadas pela ressaca de popularidade do governo.


O que preocupa a população, e não foi noticiado pelo ‘The New York Times’, mas pelo jornalista Ribamar Oliveira, deste jornal, é a maneira com que vem sendo feito o ajuste das contas públicas no país, desde o governo passado, um ajuste baseado em aumento de impostos e corte de investimentos em infra-estrutura, de qualidade tão questionável quanto as caipirinhas que o senhor Larry Rohter poderia ter tomado quando, talvez após uma divertida conversa em um boteco carioca, decidiu escrever o texto infeliz sobre inexistentes efeitos do álcool no governo.


A notícia do ‘New York Times’ depunha contra o jornal e o repórter, e desencadeou uma justa onda nacional de solidariedade ao presidente, vitimado pela arrogância da publicação que é considerada a mais influente do planeta. Por um raro momento, o presidente Lula teve de volta a quase unanimidade nacional em seu favor. Mas, para comprovar uma tendência que, essa sim, preocupa a elite brasileira, o governo mostrou mais uma vez uma incapacidade inexplicável para lidar com uma crise, e transformou um pequeno inconveniente em um problemão para o presidente.


O que está muito alto é o nível da taxa de juros


O jornal ‘O Globo’, que, na véspera, havia dedicado páginas para mostrar como era descabida a ‘notícia’ do ‘Times’, ontem apontava o autoritarismo da reação do governo, e o acusava, em editorial, de errar na dose. Na coluna de amenidades da rádio CBN, o bem-humorado Artur Xexéo se dizia envergonhado com a medida, classificada de ‘boçal’ por Carlos Heitor Cony. ‘A Folha de S. Paulo’, que havia publicado coluna virulenta contra Rohter, ontem lembrava que só ditaduras costumam tomar decisões semelhantes, e que o ‘Times’ já defendeu Lula, no passado.


A decisão de usar uma lei gerada pela ditadura militar para expulsar do país o jornalista que ousou fazer uma matéria irresponsável sobre o presidente deu maior repercussão à notícia infamante e gerou dezenas de notas internacionais ligando o nome Lula a termos como ‘borracho’ e ‘alcohol problem’. Revelou ao mundo uma surpreendente inabilidade do governo para lidar com os instrumentos jurídicos disponíveis, de punição contra excessos semelhantes.


Foi uma mostra de incompreensão sobre a natureza da imprensa e sobre a serenidade requerida dos governantes frente às críticas, mesmo as mais infundadas. Faz lembrar a decisão do presidente e general João Figueiredo, nos anos 80, de romper o próprio cordão de isolamento e chamar para briga estudantes de Florianópolis que o ofendiam com entusiasmo juvenil.


Há alguns anos, no mesmo New York Times, o economista Paul Krugman insinuou em artigo que o então recém-eleito presidente do Banco Central, Armínio Fraga, seria um especulador forçado para dentro do governo onde poderia se aproveitar da posição para interesses particulares. Foi uma acusação muito mais grave que a estúpida leviandade do senhor Rohter. Fraga, com elegância, anunciou que abriria processo, pelas leis americanas. Krugman pediu repetidamente desculpas públicas a Armínio, e, na Internet, chegou a classificar a coluna caluniosa ao brasileiro como um dos piores momentos de sua vida.


Com a retaliação a Rohter, o presidente e seu entorno mostraram que têm poder, e estão dispostos a usá-lo, com o que crêem ser bravura, até contra o jornal – e jornalista – que alguns políticos equivocadamente consideram uma extensão dos poderes do presidente George Bush. A falta de clareza sobre a real dimensão do episódio (a irrelevância da ‘notícia’ de Rohter, o escândalo de sua prepotente expulsão do país) assusta e traz maiores danos à imagem do Brasil e do presidente que milhares de notícias infundadas na imprensa internacional contra vícios ou virtudes do governo. A tentativa do senador Aloizio Mercadante, de criar uma saída honrosa para o Planalto, mostra que Lula tem amigos e bons conselheiros buscando um fim para mais essa crise – essa sim séria e artificialmente gerada por quem deveria evitá-las.


Seria um alívio saber que tudo foi um grande equívoco, e que o presidente não concorda com uso de medidas de força contra os que usam a palavra para criticá-lo."




Rudolfo Lago


"O povo contra Larry Rohter", copyright Correio Braziliense, 13/05/04


"Tanto a reportagem de NYT como a reação do governo podem ser reflexos do fato de que Lula não respeita a chamada ‘liturgia do cargo’


Em 1983, a revista pornográfica americana Hustler publicou uma paródia de um anúncio de Campari usando como personagem o reverendo Jerry Falwell, um dos mais famosos pastores dos Estados Unidos. A paródia brincava com uma série de anúncios da bebida, que falavam sobre o ‘primeiro encontro’ de várias personalidades com aquele drinque vermelho. Na Hustler, a personalidade foi Jerry Falwell, que dizia que a sua ‘primeira vez’ (numa clara conotação sexual) tinha sido em um rendez-vous com a sua mãe.


É possível imaginar-se alguma coisa mais baixa, violenta, estúpida, imoral e ofensiva do que fazer uma brincadeira insinuando que um religioso teve uma relação incestuosa com sua mãe? Indignado, Falwell processou o editor da revista, Larry Flint. O processo é um dos mais famosos da Justiça americana. Embora ninguém discorde que a paródia feita pela Hustler foi abjeta, Larry Flint foi absolvido. Isso mesmo: absolvido. Com base na primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante a liberdade de expressão.


O processo está retratado no filme O povo contra Larry Flint, de Milos Forman. Impossível não lembrar do caso diante da decisão tomada pelo governo brasileiro contra outro Larry, o correspondente do New York Times, Larry Rohter. No final da tarde de terça-feira, o governo resolveu cancelar o visto do jornalista. Era uma represália à reportagem que Rohter publicou, em que dizia que o povo brasileiro está preocupado com o fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva exceder-se na bebida.


A reportagem de Rohter não chega a ser a paródia do anúncio de Campari. Mas é uma aula de como não se deve fazer jornalismo. É, como a brincadeira da Hustler, uma ofensa gratuita. Ocorre, porém, que a Constituição garante a liberdade de expressão. Não apenas a americana com a primeira emenda. A brasileira também. A lei tem instrumentos para conter abusos no exercício da liberdade de expressão. E o banimento não está entre eles. A expulsão é um exercício de força, um abuso de quem detém a autoridade. Resta buscar entender o que faz um presidente de esquerda, que também foi perseguido por governos autoritários, a agir assim.


Um dos mais antigos deputados do PT, das primeiras levas que aportaram em Brasília, parece ter pelo menos uma das chaves para explicar o que aconteceu. Para ele, é a mesma razão que faz com que interlocutores de Lula saiam às vezes do Palácio do Planalto achando que podem adaptar as palavras do presidente aos seus interesses particulares. Ou que pessoas se acorrentem a cadeiras no hall do edifício da Presidência porque exigem conversar com o presidente. O jeito simples de Lula está virando uma armadilha: o presidente não passa a sensação de estar no exercício do cargo mais importante do país.


Não cumpre, enfim, o que o ex-presidente José Sarney chamava de ‘liturgia do cargo’. A tal liturgia seria uma série de regras não escritas que marcam o exercício da Presidência. Uma espécie de distanciamento necessário, dada a natureza da função. No princípio, Lula menosprezou essa necessidade. Achava que, ao manter seus hábitos mortais, aproximava a Presidência do ser humano comum. Criava uma rara afinidade entre o povo e seu presidente. A idéia é válida, mas gerou a armadilha.


Primeiro, a intimidade diminui o respeito ao presidente. Segundo, a espontaneidade fez Lula aparecer seguidas vezes com copos de bebida na mão. Isso não torna ninguém alcoólatra, mas o presidente esqueceu-se que tudo o que acontece com uma celebridade multiplica-se. E ele, como presidente, é a principal celebridade do país. Alguém mal-intencionado uma hora faria a associação feita por Rohter. E isso já vinha se ensaiando há um bom tempo. Em qualquer reunião de pauta de qualquer jornal em Brasília.


Aí, vem a reação. O presidente que queria ficar parecido com o povo precisa agora dar uma demonstração clara de quem é que manda. De que isso aqui não é a casa da sogra. Que não é uma esculhambação. Que tem gente no comando. Etc, etc, etc. E vai para o extremo-oposto expulsando o jornalista. Se Sarney é um dos principais conselheiros de Lula, o presidente bem poderia tomar com ele aulas de ‘liturgia do cargo’."